Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

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ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 31 - Setembro 2021

Índice

  1. Os transplantes em tempos de pandemia do SarsCov2 - por Carmino de Souza

Os transplantes em tempos de pandemia do SarsCov2

Por Carmino de Souza


Certamente, todo o sistema de saúde foi fortemente impactado pela pandemia do SarsCov2, o novo coronavírus. Sabemos que, passada parcial ou totalmente a pandemia, teremos um enorme “rebote” no volume de atendimentos à saúde. Tenho manifestado uma particular preocupação com a área de oncologia, pois sabemos que o tempo corre contra os pacientes neste campo. A redução significativa das ações de rastreamento, de diagnóstico (o mais precoce possível) e tratamentos cirúrgicos, radioterápicos, quimioterápicos ou imuno-quimioterápicos, trará prejuízos intangíveis aos pacientes. Neste artigo, vou discutir um pouco o impacto da pandemia sobre nosso programa de transplantes.

Temos no Brasil um robusto e competente programa de transplantes tanto de órgãos sólidos como de tecidos. O Brasil tem sido um dos países com o maior número de transplantes no mundo, comparável a muitos países desenvolvidos. O SUS, que tem mostrado sua fundamental importância no enfrentamento da pandemia, também tem papel decisivo neste campo da medicina, altamente especializado.

Milhares de pacientes, em 2019 cerca de 30 mil, se beneficiam de maneira decisiva destes procedimentos.

A maioria destes pacientes são atendidos no sistema público de saúde, sem qualquer ônus. São transplantes de rins, fígado, coração, coração-pulmão, pâncreas, medula óssea e córnea realizados em todo o País, sem contar com transplantes menos frequentes e alguns experimentais realizados em entidades de excelência de assistência ou universitárias. A participação da sociedade fazendo as doações de órgãos e tecidos de maneira altruísta, mesmo em momentos de grande dor familiar, tem permitido o constante incremento deste programa. Importante lembrar que, preferentemente, ser doador de órgãos e tecidos, deve ser declarado em vida e a família deve ser informada desta vontade.

Os pacientes transplantados de órgãos sólidos, hoje em torno de 80 mil, foram muito mais afetados pelo SarsCov2, de acordo com estimativas baseadas nos dados de dois dos maiores centros de transplante renal do País.

Aproximadamente, 10% dos pacientes foram infectados.

Sabemos que as taxas de mortalidade pela Covid-19 (doença causada pelo SarsCov2) na população geral está entre 2 e 2,5%. Nos pacientes transplantados, entretanto, a letalidade está entre 20 e 25%1. Estas taxas de letalidade somente serão estabilizadas com a vacinação em massa destes pacientes, altamente vulneráveis.

Em relação à realização de transplantes durante o período de pandemia, dados do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais mostram uma redução média de 38% no número de transplantes quando comparamos o ano de 2020 com 2019. A maior redução foi relacionada ao transplante de córnea (>50%), seguido dos órgãos sólidos (20%) e medula óssea (TMO) (18%)2. A queda nas taxas de doação e de transplantes de órgãos com doador falecido não foi tão grande como se temia e variou entre as regiões e de acordo com os períodos de maior gravidade regional da pandemia.

Já os transplantes de rim com doador vivo e de córneas, por serem procedimentos habitualmente eletivos, foram suspensos por períodos variados na maioria dos estados, tendo, assim, uma queda maior. Houve redução de 24,5% na taxa de transplantes renais, sendo de 17,2% nos transplantes com doador falecido e de 59,6% nos com doador vivo. A queda foi enorme no Nordeste (em torno de 80%). A taxa de transplantes renais retrocedeu 11 anos, voltando à taxa obtida em 2009. A queda na taxa de transplantes renais com doador falecido foi maior do que a queda na taxa de doadores efetivos, possivelmente relacionada à dificuldade de envio de rins não utilizados em alguns estados, por restrições na malha aérea.

É interessante observar que o número de transplantes renais com doador vivo (440) é o menor dos últimos 36 anos (em 1984 foram 495 transplantes renais, com doador vivo).

Outro aspecto é a alta percentagem de transplante renal com doador vivo não parente e não cônjuge (9,7%). Os transplantes hepáticos tiveram diminuição global de apenas 9%, sendo de 9% com doador falecido e de 13,2% com doador vivo. A taxa de transplante cardíaco teve redução de 16,7%, e foi igual à obtida no primeiro semestre de 2014. A redução na taxa de transplante de pulmão foi de 38,7% e retrocedeu também ao ano de 2011. O transplante de pâncreas apresentou redução de 12,5% retrocedendo ao ano de 2018. Houve redução de 52,7% na taxa de transplante de córnea com retrocesso para meados dos anos de 1990. O transplante de medula óssea também foi afetado, tendo tido redução de 17,6%, sendo de 21,1% para o autólogo (do próprio paciente) e de 13,3% para o alogênico (doador compatível com o paciente). A lista de espera para transplante renal cresceu 6,2%, enquanto o ingresso em lista caiu 32% e a mortalidade em lista aumentou 27%, talvez em decorrência do maior risco de exposição ao SarsCov2 devido a necessidade de realização de hemodiálise.

A lista de espera para o transplante de córnea cresceu 38% e o ingresso em lista caiu 37%. Para os demais transplantes de órgãos, as variações no número de pacientes e nas taxas de ingresso e de mortalidade em lista não foram tão grandes. No fígado, por exemplo o número de pacientes e a taxa de ingresso em lista de espera caiu de 13% e 19%, respectivamente, e a mortalidade em lista aumentou 5%.

Portanto, durante a pandemia o programa de transplantes foi globalmente afetado para todos os tipos, mas foi devastador para alguns grupos.

Todos estamos trabalhando para que tudo volte ao normal e que possamos retomar o círculo virtuoso deste fundamental programa de saúde pública brasileiro. Os transplantes são procedimentos salvadores e insubstituíveis para um enorme contingente de pacientes. Temos que resgatar este programa e aumentar a esperança de vida e qualidade de vida aos pacientes que deles dependem.

♦1 Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado. Registro Brasileiro de transplantes, ano XXVI n0 4, 2020;

♦2 Sistema informatizado do Ministério da Saúde/CETs – Centrais Estaduais de Transplantes/INCA/TabWin, 2021.


Carmino Antonio de Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020


Fonte: Artigo publicado no site Hora Campinas em 06 de setembro de 2021.




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