
Apresentação
A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.
Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos
Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado
ISSN 2525-8583
Domingueira nº 32 - Outubro 2025
Índice
- SUS: 37 ANOS - por Lenir Santos
SUS: 37 ANOS
Por Lenir Santos
Em 19 de setembro de 2025 várias entidades, Poder Público, indivíduos, mídias, dentre outras, comemoraram os 35 do Sistema Único de Saúde (SUS). Pode-se dizer que o aniversário do SUS virou uma polemica desnecessária, incomum, altamente equivocada, uma vez que a certidão de seu nascimento é a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, conhecida como Constituição Cidadã, ocorrida em 5 de outubro de 1988, dia em que foi publicada no Diário Oficial da União. E lá estavam os artigos 198 e 200. Neste mesmo dia, no ato solene de sua promulgação, Ulysses Guimarães levantava em suas mãos o primeiro exemplar da Constituição que devolveu ao país o direito ao voto direto. Um orgulho e uma honra inesquecíveis.
A Constituição Cidadã criou a Seguridade Social, artigo 194, dando vida a três direitos sociais: a saúde, a previdência e a assistência social. O primeiro, de acesso universal e gratuito; o segundo, sob a forma do Regime Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e o terceiro, a assistência social, garantida a quem dela necessitar e de caráter não contributivo.
O direito à saúde, instituído no art. 196, se fazia acompanhar da criação do sistema público de saúde, expresso no art. 198:
As ações e os serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (...)
Por sua vez, o art. 200 definiu as competências constitucionais do SUS.
Vivíamos a Primavera Brasileira com as Diretas Já que mobilizou o país para a democracia e o voto direito. Nesse mesmo período, em 1987, foi criado o Programa dos Sistemas Descentralizados e Unificados de Saúde (SUDS), pelo Decreto n° 94.657, de 20 de julho de 1987, que permitiu, mediante convênios entre a União e os Estados, a unificação dos serviços de saúde e garantiu o acesso universal à população, abandonando o caráter contributivo.
No mesmo ano do convênio SUDS, a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) foi instalada (fevereiro de 1987) para dar ao país uma nova Carta Constitucional e por fim ao regime ditatorial que assolou o país por 24 anos.
Foi naquele momento que os ideais da Reforma Sanitária puderam ser debatidos na ANC visando garantir saúde como direito de todas as pessoas e dever do Estado brasileiro. Vários eventos durante a tramitação da ANC foram fundamentais para a aprovação da saúde como direito e a criação de um sistema público para garanti-lo às pessoas, como a Emenda Popular da Saúde, assinada por mais de 55 mil pessoas, com as principais demandas da Reforma Sanitária. Na Comissão da Ordem Social foram aprovados os princípios do SUS como sistema único, descentralizado e universalizado e a participação social.
Em 17 de maio de 1988 o Plenário do Congresso, então com as prerrogativas de uma Assembleia Nacional Constituinte, aprovou o texto dos artigos 196 a 200, o direito à saúde e o SUS, com suas diretrizes e competências.
Na época, a Folha de S. Paulo publicou em 18 de maio de 1988 matéria de capa: Constituinte unifica saúde e introduz o chamado sistema único para a administração dos serviços públicos, exigindo que cada esfera de governo mantenha uma direção sanitária que seja a única responsável pelo controle e planejamento das ações e serviços de todas as suas entidades de saúde.
Assim, em 5 de outubro nasceu no âmbito da Constituição Cidadã o Sistema Único de Saúde, o SUS. Tem-se, portanto, que o SUS está no corpo da Constituição, não tendo sido criado em 19 de setembro de 1990, quando foi sancionada, pelo Presidente Collor, com 13 vetos, a Lei n° 8.080, de 1990 que dispõe sobre a organização do SUS. Um governo neoliberal que defendia o enxugamento do Estado.
Comemorar o seu nascimento em 1990 é negar a brava luta histórica da população brasileira para inserir na Constituição o direito à saúde e um sistema público de saúde. Não foi a lei ordinária que lhe deu vida, mas sim a Carta Suprema de 1988. Comemorar seu aniversário a partir da lei é diminuir a sua importância constitucional ao descer de seu patamar de origem, que é a Constituição.
A lei ordinária dispôs sobre a sua estrutura organizacional. Uma lei elaborada e discutida pelos integrantes da Reforma Sanitária que precisou ser negociada todo o tempo com o Governo Collor que defendia um projeto de governo neoliberal e a lei que regulamentava normas constitucionais de bem-estar social, por contrária ao seu modelo de governo, recebeu 13 vetos, dentre eles, os que tratavam da participação social, do acesso universal e igualitário, da transferência interfederativa de recursos, da criação do fundo nacional de saúde.
Além do mais, a lei que reformulou a Administração Pública Federal do Governo Collor e dispôs sobre o Ministério da Saúde, foi regulamentada pelo Decreto n° 108, de 1991, que criou a Secretária Nacional de Assistência à Saúde com três departamentos, sendo um deles, o Departamento do SUS, transformando o SUS em um departamento, com o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) dispondo sobre a Norma Operacional Básica n° 1/91 que definia o SUS como um convênio entre os entes federativos e a União, além de manter a lógica da assistência baseada na doença.
Comemorar o SUS constitucional a partir da sua regulamentação por lei, é, cabe reiterar, diminuir a sua relevância constitucional, abdicar da luta pela sua inserção na Constituição, que lhe dá supremacia à lei. É diminuir a importância de seu nascimento em sede constitucional. A luta para alçar o SUS à Constituição fica esquecida, minimizada, se assim se fizer.
Era comum à época chamar os bravos defensores do SUS, como Sérgio Arouca, como lobistas da saúde, em contraste, no campo das ideias, aos lobistas dos serviços privados que atuavam a favor dos vetos à lei. O SUS tem expressão constitucional, nasceu na Constituição, pontualmente nos artigos 198 e 200, não merecendo ser diminuído e ignorada a sua luta histórica.
Não se pode olvidar que a implantação do SUS se deu em um governo neoliberal, que não queria que a saúde fosse de acesso universal e igualitário.
Por isso é um erro histórico diminuir a relevância de um SUS constitucional ao se comemorar não o seu nascimento, mas sim a edição da lei infraconstitucional, cuja finalidade era regulamentar o que já estava criado. Esse fato enfraquece a sua importância, nega e distorce a sua história, lembrando mais uma vez que a lei foi sancionada por um governo neoliberal – que jamais daria vida ao SUS, tanto que vetou 13 de seus dispositivos, dentre eles o da participação da comunidade.
Que em 2028 estejamos comemorando os 40 anos do SUS!
Lenir Santos, é advogada, doutora em Saúde Pública pela Unicamp, professora colaboradora da Unicamp e presidente do Idisa (Instituto de Direito Sanitário Aplicado)