Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 32 - Setembro 2019

PROJETO DE LEI ORÇAMENTÁRIA 2020 DA UNIÃO: A COMBINAÇÃO DA EC 95 COM A POLÍTICA ECONÔMICA DE GUEDES FAZ MUITO MAL PARA A SAÚDE (1ª Parte)

Por Francisco R. Funcia


O Projeto de Lei Orçamentária 2020 (PLOA 2020) da União, composto pelo Orçamento Fiscal, pelo Orçamento da Seguridade Social e pelo Orçamento de Investimentos das Empresas Estatais conforme determina a Constituição Federal, foi encaminhado ao Congresso Nacional pela equipe econômica do governo federal comandada pelo Ministro da Economia Paulo Guedes.

Trata-se de um dos instrumentos do planejamento do setor público brasileiro, responsável por apresentar a estimativa da receita e fixação da despesa para a execução durante o exercício de 2020, abrangendo a programação do Poder Executivo, Poder Legislativo, Poder Judiciário e Ministério Público. Compete aos deputados e senadores analisar a programação detalhada da receita estimada e da despesa fixada durante a tramitação nas Comissões do Congresso Nacional, para então votar preferencialmente até o final do exercício de 2019 – em alguns anos passados, isso ocorreu somente no ano subsequente.

Essa programação se encontra em vários anexos nas mais de quatro mil páginas desse projeto de lei, inclusive propor emendas parlamentares individuais e de bancada. O objetivo deste artigo é analisar a programação orçamentária de 2020 do Ministério da Saúde, com base no projeto de lei completo (com mensagem, texto da lei e anexos) disponibilizado no site do Senado Federal, bem como no material disponibilizado pelo Ministério da Saúde na apresentação feita para a Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (Cofin/CNS), da qual é integrante pelo segmento dos gestores, na reunião de 30 de agosto de 2019 realizada em Brasília.

Para isso, a análise foi subdividida em três partes: a primeira trata da contextualização, de caráter sintético, para abordar alguns aspectos agregados do financiamento do SUS para 2020 como uma das condicionalidades do processo de alocação de recursos orçamentários e financeiros da programação do Ministério da Saúde; a segunda parte destaca os valores orçamentários de algumas das despesas programadas pelo Ministério da Saúde à luz da distribuição interna desses recursos, bem como da comparação com os valores alocados no ano anterior (ou anos anteriores, para alguns casos); e, por fim, na última parte, nas considerações finais, indicar o que a proposta orçamentária do Ministério da Saúde para 2020 evidencia como prioridade, por ser a primeira elaborada por esse novo governo que tomou posse em 1º de janeiro de 2019.

A primeira parte da análise da proposta da saúde no PLOA 2020 está apresentada neste artigo.

1ª Parte

Contextualização
A Emenda Constitucional 95/2016 (EC 95) foi concebida a partir da Proposta de Emenda Constitucional 341/2016 (PEC 341) e da PEC 55 que tramitaram e foram aprovadas respectivamente na Câmara dos Deputados e no Senado Federal durante o 2º semestre de 2016. Dentre os objetivos da EC 95, dois devem ser destacados: iniciar o processo de desvinculação dos pisos federais da saúde e educação e combater a crise fiscal mediante a eliminação do déficit primário para resgatar o superávit primário por meio do teto de despesas primárias até 2036 nos níveis de 2016. Em outros termos, a solução da crise fiscal ficou concentrada na redução de despesas primárias.
A partir do início de 2019, a nova equipe econômica do governo federal comandada pelo Ministro Guedes radicalizou a política fiscal centrada na EC 95, por meio da combinação da redução das despesas primárias com recessão econômica. Essa combinação agravou a crise fiscal com elevados valores de déficit primário, por causa dos efeitos negativos dessa política sobre a receita pública – afinal, metade da carga tributária incide sobre a produção e consumo, cuja dinâmica tem sido negativamente afetada pela recessão econômica.
O Gráfico 1 revela que a crise fiscal está relacionada tanto ao comportamento recente da despesa pública, como também da receita pública (que esteve acima da despesa até 2013, com crescimento mais que proporcional às despesas até 2005 , estagnação entre 2006 e 2013 e inversão da situação comparativa somente a partir de 2014).

Gráfico 1
Receita Líquida e Despesa Total da União (% do PIB) – 1997 a 2018

É importante destacar dois momentos recentes específicos de instabilidade nesse período analisado: a crise financeira internacional em 2008 (a partir do qual houve redução do superávit fiscal) e a crise política e econômica nacional em 2014 (a partir do qual teve início a política econômica recessiva, aprofundada a partir de meados de 2016 com a PEC 341 e a PEC 55 que resultaram na EC 95.

Fica evidenciado que a recessão econômica, ao reduzir o nível de atividade econômica (queda ou baixo crescimento do PIB), gera dois efeitos simultâneos: diminuição da receita como proporção do PIB e aumento da despesa como proporção do PIB.

Os efeitos negativos da recessão econômica para o financiamento das políticas públicas foram agravados pelo teto de despesas primárias estabelecido pela EC 95, que impede o efeito multiplicador do gasto público para compensar a falta dos investimentos privados no cenário recessivo e, assim, contribuir para a recuperação da dinâmica econômica nos termos das teorias econômicas de Keynes e Kalecki.

O financiamento federal do Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido prejudicado pela combinação de recessão econômica e EC 95 (queda do piso federal da saúde e teto de despesas primárias), cujo processo de desfinanciamento (conceito que expressa a retirada de recursos já insuficientes do SUS) decorrente dessa “dupla explosiva” prosseguirá em 2020, como se pode deduzir da análise da programação orçamentária federal da saúde para o próximo exercício.

A Tabela 1 ilustra a queda do piso federal do SUS como proporção da receita corrente líquida a partir de 2018, quando se inaugura o cálculo pela regra geral da EC 95, que “congela” até 2036, em termos reais, o valor do piso federal da saúde que valeu para 2017.

Tabela 1
Piso Federal do SUS - ASPS como proporção da Receita Corrente Líquida a partir da EC 95

O piso federal do SUS como proporção da RCL teve redução continuada a partir de 2018 – estimado em 13,74% para 2020. Confirma-se, assim, o que os especialistas da área de economia da saúde têm alertado desde a tramitação da PEC 341 e da PEC 55 durante o segundo semestre de 2016: nenhum centavo adicional do crescimento da receita federal até 2036 será alocado para o financiamento do SUS e, pior, há queda do piso como proporção da RCL.

Com isso, o piso federal do SUS totaliza em 2020 perdas acumuladas em R$ 29,0 bilhões (a preços de 2019) desde a vigência da EC 95, em comparação ao parâmetro de 15% da RCL (EC 86), conforme Tabela 2. Isso representa cerca de 25% da estimativa de empenho para 2019 (R$ 119,0 bilhões) realizada pelo Ministério da Saúde (durante a apresentação do PLOA 2020 feita na Cofin/CNS).

Tabela 2
Piso Federal do SUS - ASPS em comparação ao parâmetro de 15% da RCL da EC 86

A Tabela 3 ilustra a queda do piso federal do SUS (em termos reais), total e per capita.

Tabela 3
Piso Federal SUS ASPS e Empenho ASPS per capita (a preços de 2019)

Os valores per capita do piso federal e do empenho ASPS (a preços de 2019) têm apresentado queda: respectivamente, R$ 553,02 e R$ 561,07 estimados para 2020. Trata-se do efeito esperado do “congelamento” do piso diante do crescimento demográfico em torno de 0,8% ao ano, que ocorrerá até 2036, se não houver a revogação da EC 95.

A segunda parte desta análise será apresentada na próxima edição da Revista Domingueira da Saúde e destacará os valores orçamentários de algumas das despesas programadas pelo Ministério da Saúde para 2020, à luz da distribuição interna desses recursos, bem como da comparação com os valores alocados no ano anterior (ou anos anteriores, para alguns casos).


Francisco R. Funcia é Economista e Mestre em Economia Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professor de História do Pensamento Econômico, Desenvolvimento Socioeconômico e Economia do Setor Público da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde (CNS).





OUTRAS DOMINGUEIRAS