Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 34 - Agosto 2020

Índice

  1. A saúde do trabalhador na conjuntura 2020 – SUS e COVID-19 - por Nelson Rodrigues dos Santos
  2. Boletim Cofin/CNS 2020/08/19 - por Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke

A saúde do trabalhador na conjuntura 2020 – SUS e COVID-19

Por Nelson Rodrigues dos Santos


1. A COVID-19 NA CONJUNTURA GLOBAL QUE NOS ENVOLVE: - SÍNTESE

A julgar pelas informações explicitadas sobre a evolução da economia global após a 2ª guerra mundial – há 75 anos – os pilares, estruturas e processos do modelo econômico e processo produtivo/distributivo, evoluíram e consolidaram-se a ponto de resistirem e/ou reciclarem-se perante 6 a 12 meses dos distanciamentos sociais parciais e parcelados, destinados a conter o adoecimento e mortalidade pela COVID-19, até o advento da vacina. Por óbvio o absurdo concentracionismo atual na economia global, teria plenas condições de ceder, estrategicamente, uma desconcentração controlada delimitada à reprodução do modelo dominante pós-2ª guerra, incluindo seus últimos 30 anos da globalização financeira especulativa.

Está posto o desafio das fontes para financiamento da complexa estrutura do processo produtivo e consumidor de bens e serviços, priorizando os básicos, sem redução da eficácia dos distanciamentos sociais imprescindíveis no controle da pandemia. É aparentemente o que no momento se passa, sob variados formatos, na grande maioria dos países europeus, do oriente e sudeste asiático, Canadá e outros. No bojo desse processo, algo aparentemente inédito: além de anteriores diagnósticos e proposições de princípios e desejos, esboçam-se iniciativas e movimentos da sociedade e representações no Estado, subjacentes e/ou iniciais, mas voltados para alternativas menos contemporizadoras e preservadoras do modelo pós-2ª guerra e atual globalização financeira especulativa. Ilustrando: a) inédita aprovação pelos 27 países da União Europeia de gigantesco “pacote” de desenvolvimento sustentável igualitário no continente, e início da tributação do “império” da informática,
b) cinco países europeus articulando um pacote de desestímulo à especulação e depósitos em paraísos fiscais, c) aprovação na Câmara de Deputados do Chile de taxação de 2,5% das fortunas dos 1% mais ricos visando a elevação da renda mínima na emergência, d) iniciativas similares em países do sudeste asiático, etc.

O poder federal dos EUA, na condição de governo da maior potência econômico-financeira mundial, corre o risco de bancar o desgaste político, ao não priorizar desde o início o distanciamento social e demais intervenções públicas no controle da COVID-19. No Brasil a resposta federal presidencial similar colide com realidade interna diversa onde um dos ângulos conflitantes é evocado pelo ministro da Economia, em pleno avanço da COVID-19: “acabou o dinheiro”, “não há alternativa”, “com renda mínima garantida ninguém vai trabalhar”, radicalmente ortodoxa nem tampouco permeável ao debate de estratégias, temporárias ou não, de fontes adicionais como: tributações progressivas, efetivo controle da taxa de cambio, da financeirização do orçamento público (1/2 do Orçamento Geral da União comprometido com os serviços da dívida) , das sonegações, renúncias fiscais, desperdícios no processo produtivo, auditoria e renegociação da dívida pública, etc.

As iniciativas globais anteriormente referidas – subjacentes e/ou iniciais -- e aparentemente inéditas, salvo equívocos ou imprecisões de análises históricas, podem estar significando acumulação de respaldos e forças apontadas para um “neo-keynesianismo”, que não seja o mero saudosismo ou “modernização” do New Deal de 1930 nos EUA, nem dos Estados de Bem Estar Social pós-1945; talvez, uma reação “por dentro” do acirramento das contradições na globalização, uma “janela histórica” na direção da humanização e construção da cidadania perante novos processos de trabalho, relação Sociedades-Estados e novos internacionalismos? -- Questões em análise e debate mundial, nos dias de hoje, mais explicitado nas tensões, prospecções e articulações no âmbito da União Europeia.

2. O SUS, OS PLANOS PRIVADOS E A SAÚDE DO TRABALHADOR

Aspectos dos esforços acumulados em 30 anos:

Sabemos que os gestores e os profissionais do SUS, federais, estaduais e municipais, desde os serviços comunitários até os mais especializados, acumularam nesses 30 anos e continuam acumulando riquíssima experiência e competência no esforço de realização da Atenção Integral à Saúde, Universal e Equitativa. Uma acumulação permanente mas tensa, conseguindo índices resolutivos elevados somente em condições excepcionais: - algumas centenas de microrregiões ou localidades em todo o território nacional, com enorme esforço e persistência de gestores e equipes multi-profissionais regionais, municipais, micro-regionais, e de unidades de saúde, muitas vezes em parceria com núcleos universitários na área da saúde. São verdadeiras “ilhas” onde as diretrizes do SUS ganham concretude, visibilidade e admiração.

Nessas “ilhas” de realização mais plena do SUS, podemos constatar a construção na atenção básica, de uma resolutividade de 80-90% das necessidades de saúde da população coberta, com acesso assegurado aos 10-20% restantes nos serviços ambulatoriais e hospitalares mais complexos. Esses e inúmeros outros avanços a favor dos direitos à saúde, são objetivamente expostos e documentados nas mostras de experiências bem sucedidas nos congressos dos conselhos nacional e estaduais de secretarias municipais de saúde - CONASEMS e COSEMS. Além da atenção básica pelos agentes comunitários e demais profissionais de saúde, essas “ilhas” do SUS emergem também na saúde mental (CAPS), urgência/emergência (SAMU), nos serviços mais complexos como transplantes, na saúde do trabalhador (CEREST), na AIDS, na hemoterapia(Hemocentros), na vigilância em saúde/suporte epidemiológico, nas imunizações, nos medicamentos de alto custo, nos protocolos de condutas técnicas, nas centrais reguladoras para atendimentos mais especializados e ainda na profícua relação com as melhores instituições públicas de ensino e pesquisa em saúde. Porém são exceções que há 30 anos não conseguem transformar-se na regra, por simples descompromisso federal, em sua pequenez no financiamento e na opção pela construção do “modelo SUS”. Nosso per-cápita no financiamento do SUS está entre 1/6 e 1/5 do praticado nos países com bons sistemas públicos de saúde. A persistência dessas “ilhas-exceções” é a primeira e grande constatação positiva nos mais de 30 anos do SUS, que inacreditavelmente persistem semeando futuro no seio do predomínio de graves distorções estruturais, comprovadas na prática cotidiana.

Quatro Lembranças Ainda Pendentes na Política de Saúde do Trabalhador:

1 - Antes das mobilizações pela reforma sanitária o palco das lutas pela saúde do trabalhador girava em torno da legislação trabalhista e previdenciária centradas nas doenças e acidentes de trabalho. Nos anos 80, durante a construção da concepção do SUS, ficou entendido que a saúde do trabalhador, enquanto cidadão, deveria iniciar no âmbito da Atenção Básica universal de qualidade, obviamente extensiva aos trabalhadores formais e informais (hoje mais numerosos). Os centros regionais de saúde do trabalhador – CEREST já vinham se organizando e expandindo por iniciativas sindicais, municipais, e estaduais, antes dos debates constitucionais. A experiência municipal e estadual acumulada na Atenção Básica até o final dos anos 80, apontava para um positivo salto pós-constitucional de expansão e qualificação, que adviria do esperado apoio federal. Porém, no decorrer dos anos 90, além da grande frustração com a participação e suporte da esfera federal, predominou no cenário do SUS um esforço redobrado dos gestores descentralizados, para a inclusão de metade da população até então excluída, cujo atendimento lastreado no princípio da Universalidade, e com os parcos recursos disponíveis, foi postergando na prática, a implementação das diretrizes da Integralidade e Equidade.

2 - Paralelamente, a potência das mobilizações sociais pré-constitucionais, incluindo o movimento sindical, arrefeceu com a vitória constitucional, e nesse processo as centrais sindicais, perante o recuo federal no SUS, optaram pelos planos privados indiretamente subsidiados pelo Estado. Desde então a luta social pelo SUS vem se delimitando aos Conselhos de Saúde, CONASEMS, CONASS, ao Movimento da Reforma Sanitária e outros entes, com resultados reconhecidamente constrangedores perante a diretrizes constitucionais. Sem a efetiva mobilização dos trabalhadores incluindo os segmentos médios da sociedade e direções sindicais, estabiliza-se a tendência do SUS pobre para os pobres e seus serviços mais complexos e sofisticados disputados também pelos 20 a 25% não pobres. Mesmo com o apoio mais incisivo do Ministério da Saúde à Atenção Básica a partir de 1994, desde então a efetiva cobertura e resolutividade nesse decisivo nível de atenção, não vem conseguindo produzir o necessário impacto estratégico para induzir a construção do modelo constitucional. O eixo básico desse modelo implica claramente na prevenção das doenças, assim como nos diagnósticos e tratamentos precoces, que na sua plenitude totalizariam 80 a 90% da atenção integral à saúde. Essa expectativa inicial para a Saúde do Trabalhador, junto a ampla e eficaz rede de CERESTs, permanece, por enquanto frustrada. Hoje, o grande impacto negativo para o SUS constitucional, é o largo predomínio dos diagnósticos e tratamentos tardios evitáveis e seus altos custos, após esperas de meses até mais de ano para consultas, exames, tratamentos, e cirurgias de média e alta complexidade. Essa distorção ocorre sobre a altíssima produtividade anual do SUS, por volta de 3 bilhões de ações na Atenção Básica, 2 bilhões na média e alta complexidade e 1 bilhão nos procedimentos diagnósticos e terapêuticos complementares.

3 - Os 20 a 25% da população brasileira, beneficiários dos planos privados de saúde, dos mais baratos aos mais caros – perto de 50 milhões -- são atendidos na rede privada credenciada pelas empresas de planos: consultórios, clínicas de diagnósticos e terapias, hospitais e alguns hospitais públicos fundacionais. Para tanto as empresas de planos e seguros privados e seus clientes, gozam de renúncia fiscal no IRPJ/IRPF, cujo valor total ultrapassa o valor total do lucro líquido legalmente declarado do conjunto dessas empresas. Assim o Estado banca a rentabilidade desse ramo empresarial. Esse é um dos poucos setores do mercado que aumentaram o faturamento na crise financeira desde 2015, responde por mais da metade dos gastos de saúde no país (mais que o SUS), para atender seus beneficiários com gasto per-cápita 4 a 5 vezes maior que o destinado aos restantes 75 a 80% da população não usuária de planos privados. Nos 20 a 25% beneficiários dos planos privados constam a elite social, a classe média-alta e a classe média-média; nesta terceira faixa estão alojadas as direções sindicais e a parte dos trabalhadores públicos sindicalizados contemplados com um co-pagamento institucional do seu plano privado de saúde, assim como os dirigentes de todas as direções das centrais e federações sindicais e seus filiados das categorias de trabalhadores mais tradicionais e organizados. Desde o início do SUS, seus pleitos de assistência à saúde alinham-se ás vantagens negociadas anualmente junto à Justiça do Trabalho no dissídio salarial, entre elas, as dos contratos coletivos de planos privados de saúde.

4 - Há um interstício entre, de um lado, as lutas sociais democráticas da sociedade nos anos 80 contra a ditadura e por uma Constituição Cidadã, vitoriosa com a sua promulgação em 1988, e de outro lado, na prática, as estratégias “de Estado”, a partir dos anos 90, para o modelo econômico e modelo social, pressupostamente constitucionais. O que restava das direções e lideranças sindicais nos anos 80, várias clandestinas na ditadura, participavam positiva e consistentemente nas militâncias pela reforma sanitária brasileira, inclusive de eventos históricos como os simpósios nacionais de políticas de saúde na Câmara do Deputados, a 8ª Conferência Nacional de Saúde em 1986, a Comissão Nacional da Reforma Sanitária e a própria Assembleia Nacional Constituinte. Já nesses debates e posicionamentos, com base nos sistemas públicos de saúde mais avançados, ficava claro não ser possível bom sistema público de saúde somente para os mais pobres, pelo fato do seu poder de pressão no Estado ser também pobre, o que nos 30 anos do SUS, ano a ano foi sendo comprovado pelo seu sub-financiamento federal e pelo financiamento federal indireto dos planos privados. Nos anos 80, com o nome “Medicina de Grupo”, os planos privados iniciavam no ABC paulista e no Rio de Janeiro.


Nelson Rodrigues dos Santos, médico, doutor em saúde coletiva, foi secretário executivo do CNS, secretário executivo do CONASS, diretor do MS por diversas vezes, foi do PIASS, foi das AIS, do SUDS, das universidades estadual de Londrina; da UnB e Unicamp.



Boletim Cofin/CNS 2020/08/19

Por Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke




















Francisco R. Funcia, Mestre em Economia Política pela PUCSP, Professor e Coordenador-Adjunto do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS e Consultor Técnico do Conselho Nacional de Saúde.

Rodrigo Benevides, Economista (UFRJ) e mestre em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ.

Carlos Ocké, Economista e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde - ABrES.




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