Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
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Conselho Editorial
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Nelson Rodrigues dos Santos
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ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 34 - Setembro 2019

NOTA TÉCNICA: MEDIDA PROVISÓRIA N. 890, DE 2019. ANÁLISE JURÍDICA.

Por Lenir Santos


Requerente: Conselho de Secretários Municipais da Saúde (Cosems), SP

I - Introdução
O Conselho de Secretários Municipais de Saúde (Cosems), do Estado de São Paulo, consulta o Instituto de Direito Sanitário Aplicado – IDISA a respeito da Medida Provisória n. 890/2019, no tocante aos seus efeitos quanto às competências dos Municípios em relação aos serviços de atenção primária[1] em saúde e as do Ministério, em face das normas que determinam ser a atenção primária atividade de competência municipal.

A referida Medida Provisória n. 890 tem por finalidade incrementar a prestação de serviços médicos em locais de difícil provimento ou alta vulnerabilidade e fomentar a formação de médicos especialistas em medicina de família e comunidade, no âmbito da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde - SUS, e, ainda, autoriza o Poder Executivo federal a instituir serviço social autônomo denominado Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde - Adaps.

Na Exposição de Motivos que acompanhou a MP, o Governo Federal justifica que as medidas “visam corrigir distorções na distribuição de médicos bolsistas de residência em medicina geral e de família e comunidade em municípios participantes do Programa Mais Médicos e nos municípios do entorno, de forma a priorizar a fixação de médicos em municípios de difícil provimento ou alta vulnerabilidade no País”. Nesse contexto, o serviço social autônomo criado pelo Governo tem como objetivo principal executar o Programa Médicos pelo Brasil, especialmente na contratação de médicos e alocação de nos municípios selecionados. De imediato causa estranheza a criação de figura jurídica de direito privado para executar o Programa ao invés de ser um braço auxiliar do Ministério da Saúde (MS), uma vez que o Programa público deve ser executado pelo órgão que o cria, podendo contar com entidade para auxiliá-lo. Disso falaremos mais adiante.

Com a criação da Agência, pretende o Governo Federal garantir a segurança jurídica à execução do Programa Médicos pelo Brasil, conforme dispõe o item 9 da Exposição de Motivos da MP nº 890, de 2019, nos seguintes termos:

A execução do Programa via Adaps, portanto, busca conferir: i) segurança jurídica à execução da política, com a oportunidade de se estabelecer um vínculo empregatício regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943) e a possibilidade da instituição de pagamento por desempenho e exigência de patamares mínimos de qualidade assistencial, por meio do contrato de gestão; e ii) sustentabilidade econômica para a sua implementação, com a criação de um serviço social autônomo, com personalidade jurídica de direito privado, estrutura administrativa enxuta e modelo de governança que permite a observância do interesse público, com parte dos membros do Conselho Deliberativo e Fiscal sendo indicados pelo Ministério da Saúde.

A entidade a ser criada deverá celebrar contrato de gestão com o Ministério da Saúde, nos moldes do ajuste celebrado com o serviço social autônomo, Associação das Pioneiras Sociais, Lei n. 8.246, de 1991, por meio do qual estabelecerá a relação de parceria e fomento com o Poder Público, para a execução do Programa Médicos pelo Brasil e, na qualidade de entidade civil, terá quadro de pessoal próprio, sob regime celetista, e recrutamento por meio de processo seletivo público, prevista na MP a possibilidade da cessão de servidores do Ministério da Saúde por período limitado.

Os objetivos do Programa Médicos pelo Brasil são: a) promover o acesso universal e igualitário da população às ações e aos serviços do SUS, especialmente nos locais de difícil provimento ou alta vulnerabilidade; b) fortalecer a atenção primária à saúde, com ênfase na saúde da família; c) valorizar os médicos da atenção primária à saúde, principalmente no âmbito da saúde da família; d) aumentar a provisão de médicos em locais de difícil provimento ou alta vulnerabilidade; e) desenvolver e intensificar a formação de médicos especialistas em medicina de família e comunidade; e f) estimular a presença de médicos no SUS.

A finalidade da Adaps, conforme estabelece a Medida Provisória sob referência, é atuar na saúde da família; nos locais de difícil provimento ou alta vulnerabilidade; na valorização da presença dos médicos na atenção primária à saúde no SUS; na promoção da formação profissional, especialmente na área de saúde da família; e na incorporação de tecnologias assistenciais e de gestão relacionadas com a atenção primária à saúde.

Em breve síntese, estão reproduzidas acima as disposições principais da MP, os objetivos do Programa Médicos para o Brasil e alguns aspectos da Adaps, a quem compete administrar o Programa, lembrando que dentre as definições que ela traz, está o de locais de alta vulnerabilidade como sendo os Municípios com alta proporção de pessoas cadastradas nas equipes de saúde da família e que recebam benefício financeiro do Programa Bolsa Família, benefício de prestação continuada ou benefício previdenciário no valor máximo de dois salários-mínimos, nos termos do disposto em ato do Ministro da Saúde.

II – Análise da MP à luz das diretrizes organizativas do SUS e das competências dos entes federativos no tocante a atenção primária

Preliminarmente, é fato notório a falta de médicos nos municípios de difícil acesso, baixo desenvolvimento, locais de alta vulnerabilidade socioeconômica, como as periferias brasileiras nas grandes cidades e locais de difícil acesso. Isso levou o Poder Legislativo a editar a Lei n. 12.871, de 2013, que criou, dentre outros, o Programa Mais Médicos para o Brasil. Em substituição ao Programa acima mencionado, foi editada a Medida Provisória em análise. Esses vazios de profissionais médicos, infelizmente, têm origem, desde o nascimento do SUS pela falta de cumprimento do inciso III, do art. 200, da Constituição, que não cuidou da formação de médicos para o SUS, em especial para a atenção primária.

Ambos os Programas, visam prover os territórios municipais, com vazios de profissionais, de médicos e incrementar a formação de recursos humanos para a atenção primária, tanto que a Lei n. 12.872, de 2013, trouxe novos enfoques para a residência em medicina geral de família e comunidade e agora a MP dispõe sobre a especialização na área.

Importante destacar a descentralização das ações e serviços de saúde (art. 198, I, da CR), diretriz constitucional que deve pautar qualquer programa que envolva a realização de serviços no campo da atenção primária em saúde. Lembramos, ainda, que sendo finalidade do Programa Médicos pelo Brasil prover médicos para preencher os vazios assistenciais mencionados na MP 890, importante adotar como estratégia, o apoio ao município para a superação estrutural dessa carência, ao lado de intervir na prestação de serviços médicos mediante a contratação de médicos para os municípios de modo conjuntural se insere no campo da cooperação interfederativa, ínsita ao SUS, conforme inciso VII do art. 30 da Constituição da República (CR).

Importante frisar esse aspecto, pelo fato de a Constituição definir como diretriz do SUS a descentralização, a Lei n. 8.080, de 1990, em seu art. 7º, IX, preconiza a descentralização político-administrativa das ações e serviços de saúde, com ênfase na descentralização dos serviços para os municípios, o que ficou conhecido como municipalização da saúde, e, ainda, o disposto no seu art. 18, I.

Não custa lembrar que o papel da União, dentre outros, foi e ainda é, o de promover a descentralização das ações e serviços de saúde para as unidades federadas; cooperar técnica e financeiramente com os municípios para suprir necessidades de saúde; promover a equidade federativa, nos termos do art. 30, inciso VII, não devendo prestar serviços no território municipal, especialmente na atenção primária, precípuo papel do município, mas sim com ele cooperar financeira e tecnicamente. Qualquer forma de recentralização de serviços de atenção primária em saúde representaria uma violação à Constituição (art. 198, I) e a Lei n. 8.080, de 1990, ainda que isso não esteja no escopo da MP que pretende suprir os vazios mencionados. A criação de programas federais e estaduais visem apoiar os municípios em suas dificuldades estruturais se inserem no âmbito da cooperação técnica e financeira, preservada, sempre, a execução dos serviços pelo próprio município; por isso é importante ressaltar que o Programa previsto na MP 890 tem por finalidade prover vazios assistenciais municipais, sem violar a diretriz constitucional da descentralização, o que precisa em sua prática ser respeitada.

Os serviços de atenção primária em saúde são a representação primeira do SUS-Estado no território municipal, a qual tem por finalidade promover a saúde das pessoas; cuidar da pessoa em suas necessidades curativas de maneira direta ou mediante referenciamento; ordenar a rede de atenção à saúde, dentre outros, cabendo aos Município, pelos seus órgãos e entidades públicas, essa execução, Há nessas ações, atividades próprias do Estado, tanto que a EC 51 e a EC 63 e a Lei n. 11.350, de 2006, que dispõe sobre os agentes comunitários de saúde e de endemias, impõe que seu vínculo de trabalho deve ser direto com a administração pública (direta ou indireta), fazendo pressupor ser a atenção primária em saúde uma atividade eminentemente pública para dar sentido à determinação da lei inserta em seu art. 2º de vínculo direto entre o Poder Público[2] e o agente comunitário de saúde.

Art. 2º O exercício das atividades de Agente Comunitário de Saúde e de Agente de Combate às Endemias, nos termos desta Lei, dar-se-á exclusivamente no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, na execução das atividades de responsabilidade dos entes federados, mediante vínculo direto entre os referidos Agentes e órgão ou entidade da administração direta, autárquica ou fundacional.

Diante dos requisitos essenciais da atenção primária ser o primeiro vínculo do cidadão com o SUS, que, por sua vez, tem na atenção primária, a primeira presença pública dos serviços de saúde no território. Caberia muitas outras considerações sobre a natureza jurídica da atenção primária em saúde quanto tratar-se de atividade que deva ser desenvolvida tão somente pela Administração Pública Direta ou Indireta, sendo serviço público que não comportaria a sua terceirização por conter poderes típicos do Estado, como os voltados para a proteção quanto à riscos de agravo mediante ações de prevenção e promoção, próprias do Poder Público, como as vigilâncias, e não tão somente atividades curativas (assistenciais), também franqueadas a iniciativa privada. Por fim pode-se dizer ser a atenção primária em saúde a primeira presença do Estado-SUS no território, cabendo-lhe, primordialmente, prevenir riscos e promover a saúde das pessoas e ainda gerir o seu itinerário terapêutico.

Nesse sentido, devemos considerar que o papel da Adaps é o de auxiliar a União na execução do Programa Médicos pelo Brasil, respeitada a competência municipal para a gestão direta da atenção primária no seu território, a qual deve ser integralmente preservada.

III – Natureza jurídica da pessoa jurídica denominada de serviço social autônomo

O serviço social autônomo é uma modalidade de atuação conjunta e cooperada entre o Poder Executivo e entidade civil sem fins lucrativos na realização de atividades não privativas de Estado e, especialmente, no provimento de serviços de interesse público diretamente ao cidadão.

Trata-se de uma entidade na qual a parceria estado-sociedade é autorizada diretamente pela lei, que estabelece as condições da relação cooperada. Por essa razão, é tratada pela doutrina jurídica nacional como entidade com vínculo paraestatal com o Poder Público, pelo fato de a cooperação público-privada não decorrer da vontade e decisão do Poder Executivo, mas por reconhecimento direto e ato do Poder Legislativo.

Como exemplo, podem ser citadas as entidades civis de serviço social e formação profissional vinculadas ao sistema sindical - os serviços sociais autônomos (SSA) do “Sistema S” - as quais, a própria Constituição da República, reconhece como parceiras e lhes garante o fomento a partir de fonte de recursos de origem parafiscal, oriundos das tributações da folha de salário das empresas que representam. (Art. 240 da Constituição e art. 62 do Ato das Disposições Transitórias).

Essas entidades são, em geral, associações civis organizadas por confederações nacionais de trabalhadores para a prestação de serviços direcionados para público específico, ou seja, para atendimento aos empregados das empresas que tributam.

Por não integrarem a administração pública, são habilitadas apenas a auxiliar o governo na implantação de políticas públicas, por meio da execução de atividades e prestação de serviços na área social; não podendo exercer competências públicas descentralizadas, em especial, aquelas que demandem o uso de poderes estatais privativos, tais como, a direção de políticas, programas ou projetos públicos; regulação; regulamentação; fiscalização; certificação; aplicação de penas e sanções; dentre outros similares.

A lei que concede o status paraestatal do seu vínculo com o Poder Público estabelece requisitos de suas relações de cooperação com o Poder Público que podem envolver a garantia de financiamento público de origem fiscal ou parafiscal, a administração e a permissão de uso de bens públicos, dentre outros recursos.

Como não há, no ordenamento jurídico nacional, norma legal que discipline a formação dos vínculos paraestatais, esses formatos apresentam grande variabilidade e respondem, em geral, às especificidades típicas do caso concreto. O certo é que essas entidades civis de cunho associativo, constituídas para atender às disposições de comando legal específico, culminam por não se enquadrarem no universo público e no universo privado, caracterizando-se como um modelo híbrido de atuação estatal – instituído de forma conjunta entre particulares e Poder Público; com competências privadas, mas de interesse público; regido pelo direito privado, mas com vantagens e condicionantes impostas pelo direito público. Daí serem nominadas paraestatais e figura jurídica de estrutura inominada no Código Civil e na Constituição.

O estatuto jurídico da entidade com vínculo paraestatal observa as normas do Direito Civil que regem as pessoas jurídicas de direito privado, observadas as disposições da lei específica que estabelece o vínculo paraestatal com o Poder Público. (Na MP 890 não há menção à figura associativa do Código Civil).

As entidades associativas denominadas de serviços sociais autônomos são civis e não se submetem às normas constitucionais de direito público impostas à Administração Pública, especialmente as estabelecidas nos artigos 37 a 43. Não estão obrigadas a prover seu quadro de pessoal por concurso público; a observar os procedimentos de licitação nos seus contratos de compra de bens e serviços; assim como prestar contas de sua gestão de forma direta aos órgãos de controle interno e externo do Poder Executivo Federal, fazendo-o de forma indireta.
Os SSAs, em geral, têm o financiamento público ou parafiscal assegurado pela lei, sendo que podem dispor, adicionalmente, de outras fontes de receitas, oriundas de prestações de serviços e de mutações patrimoniais; fontes próprias de geração de receitas e de doações e legados.

Não constituem uma forma de descentralização administrativa de competências públicas e, portanto, não integram a Administração Pública indireta. Na qualidade de colaboradoras do Poder Público, gozam de plena autonomia administrativa e financeira e não se submetem à supervisão da Administração Direta que incide sobre as autarquias, fundações e empresas estatais nos termo do Decreto-Lei 200, de 1967.

Têm seus estatutos sociais aprovados por decreto e adquirem personalidade jurídica com a inscrição do seu ato constitutivo no Registro Civil de Pessoas Jurídicas (geralmente sob a forma de associações civis ou fundações privadas). Em caso de extinção, os legados, doações e heranças que lhe forem destinados, bem como os demais bens que venha a adquirir ou produzir, serão incorporados ao patrimônio da União.
Realizam processo seletivo para contratação de empregados e elaboram e publicam um manual próprio de compra de bens e serviços.

Entendimento do STF sobre essa modalidade de entidade jurídica, adotada em outras unidades da Federação, durante a apreciação da ADI nº 1.864-9, os Ministros evitaram nominá-la como serviço social autônomo[3] e a consideraram “de natureza “pirandeliana”[4], “entidade instituída com o fim de auxiliar o Poder Público, com atuação paralela à do Estado em regime de cooperação, sendo mero auxiliar na execução de função pública”. Na oportunidade, destacaram os Ministros da Suprema Corte que a característica de ser “auxiliar” não deve ser “só uma palavra na norma – não pode, verdadeiramente, a entidade assumir o serviço e não exercer a função de auxiliar o Estado na prestação de serviço”.

No conjunto dos SSAs beneficiários de contribuições parafiscais, destaca-se um subconjunto especial, cujas finalidades estatutárias não estão relacionadas com a prestação de serviços sociais direcionados a grupos sociais, mas à promoção do desenvolvimento de setores da economia (SALGADO, 2012)[5]. Compõem esse subgrupo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE[6], o Serviço Social Autônomo Agência de Promoção de Exportações do Brasil - Apex-Brasil[7], autorizada pela Lei Federal nº 10.668, de 14 de maio de 2003.

Na linha da APEX-Brasil, foram criadas, em seguida, a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial – ABDI (Lei Federal nº 11.080, de 30 de dezembro de 2004), todos destinatários de alíquotas das contribuições parafiscais destinadas aos Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), para o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), para o Serviço Social da Indústria (SESI) e para o Serviço Social do Comércio (SESC).

Em 2013, no rastro, da APEX-Brasil e da ABDI, foi criado o serviço social autônomo Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural – ANATER (Lei Federal nº 12.787, de dezembro de 2013), para atuar como promotora da execução de políticas de desenvolvimento da assistência técnica e extensão rural, mediante a celebração de parceria com o Poder Público e destinatária de fomento financeiro para a realização de suas atividades, desta feita sem qualquer vínculo com o Sistema S[8].

Diferentemente dos demais SSAs e de outras entidades paraestatais presentes no ordenamento jurídico nacional, tanto a APEX-Brasil, a ABDI quanto a ANATER, são entidades com natureza jurídica insuscetível de enquadramento nas figuras jurídicas previstas no Código Civil, no Decreto-Lei nº 200, de 1967 e na Constituição Federal. Em seus documentos constitutivos não há referências se seu substrato jurígeno é associativo, fundacional ou empresarial. Apesar de serem entidades com personalidade jurídica de direito privado, foram constituídas pelo Poder Público sem a participação de pessoas físicas ou jurídicas privadas e fora da administração indireta do Estado e, portanto, sem vinculação para fins de supervisão ministerial com a administração direta.

Têm características próprias de entidades públicas, como a representação majoritária do Governo em seu Conselho de Administração; presidentes nomeados pelo Chefe do Poder Executivo, tal como nas empresas e fundações estatais; e ausência de participação de membros do setor privado no seu ato de constituição.

O vínculo dessas entidades com o Poder Público é operacionalizado pela celebração de contrato de gestão de parceria e fomento, onde são estabelecidos compromissos e metas de desempenho institucional a serem alcançados pelo SSA e, concedidos recursos públicos financeiros a título de fomento público à sua atuação.

Suas finalidades estatutárias não estão relacionadas à prestação de serviços sociais à grupos profissionais ou à população em geral, mas ao apoio ao Governo na execução de políticas públicas.

IV - Sobre a Adaps

A Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde – Adaps foi prevista na Medida Provisória nº 890, de 2019, como um serviço social autônomo com estatuto jurídico concebido nos mesmos moldes da ANATER, ABDI e APEX-Brasil, ou seja, como uma entidade civil sem fins lucrativos, de interesse coletivo e de utilidade pública.
O enunciado de sua finalidade, conforme disposto na referida MP, segue orientação similar à das finalidades definidas em lei para a APEX-Brasil, ABDI e ANATER, de promover a execução de políticas de desenvolvimento:

(...) promover a execução de políticas de desenvolvimento da atenção primária à saúde, em âmbito nacional com ênfase:
I - na saúde da família;
II - nos locais de difícil provimento ou alta vulnerabilidade;
III - na valorização da presença dos médicos na atenção primária à saúde no SUS;
IV - na promoção da formação profissional, especialmente na área de saúde da família; e
V - na incorporação de tecnologias assistenciais e de gestão relacionadas com a atenção primária à saúde. (art. 6º da MP nº 890, de 2019).

As competências estabelecidas para a Adaps, pela MP nº 890, de 2019, demarcam que a entidade deverá atuar na área da atenção básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, na linha da complementariedade, mediante prestação de serviços à população; desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa e extensão; implementação de programas e ações de qualificação profissional; e promoção do desenvolvimento e incorporação de tecnologias assistenciais e de gestão relacionadas à atenção primária.

Além disso, a Adaps deverá executar o Programa Médicos pelo Brasil, em articulação com o Ministério da Saúde (e não o contrário, subvertendo a ordem do papel do criador do Programa).

Sobre as competências atribuídas pela MP nº 890, de 2019, à Adaps, cabem comentários. Em primeiro lugar, discute-se se uma entidade privada, não integrante da administração pública direta ou indireta, ainda que constituída pelo Poder Público, pode ou não prestar serviços de atenção básica à população, em regime de complementariedade à atuação das redes próprias do SUS. Essa é uma questão não pacificada juridicamente, ainda que existam organizações sociais realizando tais serviços. Releva anotar que o regime da complementaridade no SUS, na forma do disposto no art. 199, § 1º da Constituição e art. 24 da Lei Orgânica da Saúde, não se presta a esse tipo de atividade, uma vez que deve pressupor a existência no mundo privado de serviços assistenciais que faltam na área pública, tanto que a norma é um parágrafo do artigo 199 da CR que trata da liberdade da iniciativa privada de atuar na área da saúde assistencial podendo participar do SUS de modo complementar, mediante contrato, quando as suas disponibilidades forem insuficientes para o atendimento da população, nos termos do art. 24 da Lei n. 8.080, de 1990.

A atenção básica, como dito acima, é mais que um serviço assistencial; é mais que uma porta de entrada por caracterizar-se, como a primeira presença do Poder Público na saúde com o objetivo de prevenir riscos de agravos (princípio da segurança sanitária do art. 196 da Constituição); de promover a saúde; de recuperá-la nos aspectos que envolvem baixa complexidade tecnológica, tendo ainda o caráter de ordenadora da rede de atenção para que a diretriz da integralidade seja cumprida, referenciando seus usuários quando necessário; responsável, também, pelos registros iniciais da história clínica do usuário; deve atuar nos domicílios do cidadão pelos agentes comunitários no sentido da prevenção e promoção da saúde e prevenir riscos mediante a atuação dos agentes de combate a endemias, dentre outros. Suas características levam ao entendimento de que a atenção primária em saúde é atividade própria do Estado, devendo ser exercida pelos aparatos estatais de atuação do SUS, estando presente em sua ação o poder de autoridade do Estado. Desse modo a Adaps somente poderia atuar como auxiliar do MS na execução do Programa que visa minorar carências estruturais dos municípios, de modo temporário até a sua superação, ainda que de longo prazo.

Por isso a competência atribuída à Adaps, pela Medida Provisória sob análise, de executar (e não de auxiliar) programa de governo, como se órgão ou entidade pública fosse nos chamam a atenção. Nesse sentido, o inciso III do art. 7º da MP inverte os papeis, ao prever que cabe à Adaps executar o programa público Médicos pelo Brasil e que caberá ao Poder Público manter-se articulado, responsabilizando-se pela orientação e supervisão da atuação da Adaps.

Conforme os entendimentos de Ministros do STF mencionados neste documento, o papel da Adaps, na qualidade de entidade privada paraestatal, deve se circunscrever ao apoio ao Poder Público na implementação de programas, projetos e ações de governo, não podendo substituir os órgãos governamentais na sua responsabilidade de coordenar, gerenciar e executar esses programas, ainda que em regime de colaboração com entidades privadas.
Quanto ao estatuto social da Adaps, destacam-se a seguir, algumas das principais determinações constantes da MP nº 890, de 2019:
a)sistema de governança constituído por um conselho deliberativo, uma diretoria-executiva e um conselho fiscal;
b)estatuto social aprovado pelo Conselho Deliberativo, embora a Medida Provisória, por diversas vezes faça menção a matérias que devem ser aprovadas “em regulamento”, o que, salvo melhor juízo, implica que deve ser regulamentada pelo Chefe do Poder Executivo (vide art. 9º, parag. único; art. 10, §2º; 12, §2º);
c)supervisão da gestão da Adaps pelo Ministério da Saúde (como se ela fosse uma entidade integrante da administração indireta do Governo Federal);
d)fiscalização do contrato de gestão pelo Tribunal de Contas da União, como se fosse entidade que integra a Administração Pública direta ou indireta, o que não é o caso;
e)regime de pessoal por ser pessoa jurídica de direito privado, é o da Consolidação das Leis do Trabalho, precedida de processo seletivo público e que observe os princípios da impessoalidade, moralidade e publicidade.

O disposto no art. 8º da MP prevê dentre os recursos que financiarão a Adaps, aqueles que podem advir de ajustes com entidades privadas para prestação de serviços, permitindo a indagação sobre que serviços serão prestados pela Adaps para o setor privado, mediante remuneração, requerendo ainda esclarecimentos quanto à participação no Conselho de Deliberação, de pessoa jurídica representante dos serviços privados, sendo que a atenção primária no SUS é atividade pública própria da Administração Pública, da qual não há participantes privados. Qual seria o sentido de haver pessoa jurídica privada representante do setor privado, se eles não são participantes da atenção primária em saúde?

O art. 30 da MP nº 890, de 2019, autoriza a cessão especial de servidores do Ministério da Saúde para a Adaps, pelo prazo de até dois anos, a contar da data de criação do SSA e, também, nos termos do art. 61 da Lei nº 13.844, de 18 de junho de 2019.

É preciso comentar o artigo 23 da referida norma, que estabelece que a Agência deverá realizar a contratação de profissionais médicos, sob o regime celetista, por meio de processo seletivo, “para incrementar a atenção primária à saúde em locais de difícil provimento ou alta vulnerabilidade”.

O dispositivo conduz ao entendimento de que Adaps não prestará serviços de atenção básica propriamente ditos, até porque estaria ferindo o princípio constitucional da descentralização do SUS; seria ela, então, uma intermediadora de mão-de-obra para as secretarias de saúde responsáveis pela prestação de serviços de atenção básica?

Caso a resposta seja afirmativa, a medida, constitui, portanto, uma legalização da terceirização de pessoal dentro administração pública direta - em desrespeito ao inciso III do caput do art. 37 da Constituição Federal – terceirização que vem sendo combatida pelos Tribunais de Contas e Ministérios Públicos. Sendo a Adaps uma entidade privada, muito próxima do modelo das organizações sociais, qualificadas pelo Poder Executivo Federal à luz da Lei nº 9.637, de 1998 , não haveria diferença entre os ajustes de terceirização de pessoal celebrados pelas secretarias de saúde e a entidade, daqueles que atualmente têm sido firmados e questionados pelos órgãos de controle.

Realmente causa preocupação o modelo jurídico escolhido pelo Poder Executivo para ser ela a executora de Programa público, o que poderá, salvo melhor juízo, dar ensejo a ser uma mediadora de mão-de-obra; como entidade de apoio, auxiliar da execução de políticas públicas do Ministério da Saúde na área da atenção primaria, seria mais prudente ser uma pessoa jurídica pública, ainda que com personalidade jurídica privada, como é o caso da fundação estatal, prevista no inciso IXX do art. 37 da Constituição.

O Programa atual é meritório, necessário para o SUS e deve ser louvada a intenção da continuidade e aperfeiçoamento do Programa anterior. Contudo, não pode ser concebido em bases jurídicas que possam ser questionadas e nem deixar vulnerável o município em sua competência plena de gerir as atividades de atenção primária em saúde.

São preocupantes alguns aspectos, como a que se refere à atividade da Adaps como complementar à do Município. Atividade complementar no SUS, conforme mencionado acima, o regime da complementaridade do § 1º do art. 199 da Constituição, tem outros pressupostos e características, nos termos do art. 24 da Lei 8.080, de 1990. Melhor enquadrar essa atividade no papel supletivo, tanto do Estado em relação aos municípios, como o da União em relação a ambos, nos termos do inciso VII do art. 30, da CF, que se constitui como um dever público de suprir vazios, carências, omissões, disfuncionalidade e ainda atuar para atender situação de urgência e emergências coletivas. Isso sempre deve ocorrer em regime de cooperação técnica e financeira, de modo temporal, devendo haver políticas públicas de superação dos motivos conjunturais. A intermediação de uma pessoa jurídica privada não deve ser para gerir o programa, mas sim para apoiar o MS, o qual, por sua vez, deve manter articulação de modo direto com os entes federativos cooperados.

O Programa não tem prazo de duração, o que o pressupõe ser indeterminado; não tem metas para superação a longo prazo do grave problema de fixação de médicos nos municípios em locais de difícil provimento ou alta vulnerabilidade. O fomento à formação de médicos especialistas em medicina de família e comunidade contribuirá para que tal especialidade cresça, mas como provê-los ao longo do tempo nesses locais, não há indicativos. Não tendo prazo, a cessão que sempre se faz por um ano, será renovada periodicamente.

Há características da Adaps que não são admitidas em entidades privadas, como vínculo direto com o Tribunal de Contas, quando deve ser indireto; supervisão institucional do Ministério da Saúde, própria das entidades públicas; limite prudencial de contratação de pessoal, ínsito aos entes e entidades públicas e empresas públicas dependentes do orçamento público; cargos de direção e de assessoramento, próprio de entidade pública. Inconsistências que deveriam ser objeto de atenção doo Congresso Nacional, sob pena de questionamento judicial poder levá-la a ser considerada uma autarquia.

V – Considerações Finais

  1. Não há dúvida quanto à essencialidade do Programa proposto pela MP 890, de 2019 e a responsabilidade do Ministério da Saúde de prover médicos em municípios em locais de difícil acesso e alta vulnerabilidade.

  2. Há necessidade de o Programa conter metas e prazos para a superação dos problemas que visa enfrentar e isso é necessário para a melhor organização e funcionamento do SUS nos municípios.

  3. O modelo jurídico escolhido da Adaps para executar o Programa deixa dúvidas quanto à sua adequação jurídica, podendo haver questionamentos por pressupor ser uma intermediadora de mão de obra em relação aos municípios, numa atividade que tem como fundamento a cooperação insterinstitucional, conforme preconiza o art. 30, VII, da Constituição da República. Ou poderá, ainda, ser considerada uma entidade autárquica por diversos aspectos, como ser a executora de Programa público, manter vínculo direito com o TCU, submeter-se a supervisão ministerial, ter cargo de direção e assessoramento, dentre outros.

  4. Não há clareza quanto às receitas de origem privada da Adaps em razão da prestação de serviços ao setor privado: quais seriam os serviços prestados à iniciativa privada no desempenho de atividade auxiliar do MS no desenvolvimento do Programa; nem o porquê de haver em seu corpo diretivo pessoa jurídica representante do setor privado numa atividade essencialmente pública, devendo ser explicitado.

  5. Há mais de 300 emendas à MP, o que também significa, que muito poderá ser alterado em seus termos.

  6. O importante é preservar a diretriz constitucional da descentralização das ações e serviços de saúde para os municípios; atuar o Ministério da Saúde em seu papel de definidor de normas e diretrizes gerais das políticas de saúde pactuada na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), sem executar serviços de competência municipal; cooperar técnica e financeiramente com o município, mediante a aplicação equitativa dos critérios de rateio dos recursos financeiros, nos termos do art. 17, Lei Complementar n. 141, de 2012, que visa corrigir as disparidades regionais e as desigualdades federativas municipais; definir metas e prazos para programas que pretendam corrigir falhas estruturais do SUS, ainda que de longo alcance, para a sua superação, como a de prover médicos em locais de difícil acesso e grande vulnerabilidade social, contribuindo, assim, para a melhoria do funcionamento do SUS, sem ferir princípios e diretrizes constitucionais.

Campinas, 23 de setembro de 2019


[1]A Portaria do MS n. 2.436, de 2017, dispõe ser a atenção primária em saúde e atenção básica sinônimas. Art. 1º Parágrafo único. A Política Nacional de Atenção Básica considera os termos Atenção Básica - AB e Atenção Primária à Saúde - APS, nas atuais concepções, como termos equivalentes, de forma a associar a ambas os e as diretrizes definidas neste documento.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html.
[2]A redação do artigo 2º da Lei n. 11.350, de 2006, padece de má técnica legislativa pelo fato de mencionar vínculo direto com o agente público e órgão ou entidade da administração pública direta, autárquica e fundacional. O vínculo funcional se dá, na realidade, tão somente entre o servidor ou empregado público e o ente federativo municipal ou entidade da administração pública indireta, autárquica e fundacional.
[3]Não pode o Estado-membro legislar sobre direito civil e inovar os modelos jurídicos ali estabelecidos.
[4]Com base nos votos do Ministro Sepúlveda Pertence (fl. 176) e Ministra Carmen Lucia, (fl.158) na ADI 1.864-9 Paraná, Serviços – Acordão de 08.08.2007,
[5]Salgado, Valéria. Manual de Administração Pública Democrática. Campinas: Saberes Editora, 2012.
[6]O SEBRAE foi criado pela lei nº 8029, de 12 de abril de 1990, a partir da desvinculação do Centro Brasileiro de Apoio à Pequena e Média Empresa – CEBRAE da Administração Pública Federal.
[7]A Apex-Brasil era uma “agência” do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – Sebrae, criada pelo Decreto nº 2.398, de 21 de novembro de 1997. O mencionado decreto não deixa claro se era uma unidade do Sebrae ou uma entidade subsidiária. Por força da Lei nº 10.668, de 2003, passou a configurar-se como um serviço social autônomo independente.
[8]Destaque-se, ainda, a criação, pelo Governo Federal, do Serviço Social Autônomo Associação das Pioneiras Sociais, instituído sob a forma associativa, nos termos da Lei nº 8.246, de 22 de outubro de 1991, que nada obstante ser chamado de SSA, trata-se de uma outra modalidade de entidade paraestatal, fora do Sistema S - não tem finalidade de formação profissional, não se vincula ao sistema sindical e não faz jus a contribuições parafiscais.


Lenir Santos, presidente do IDISA, Advogada e Doutora em saúde pública pela Unicamp




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