Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 36 - Setembro 2022

Domingueira da Saúde

A Revista Eletrônica Domingueira da Saúde está publicando dez artigos (2.10 a 4.12) sobre O SUS NA PROXIMA DÉCADA, de diversos autores, contribuição para os debates eleitorais e futuras políticas públicas sanitárias.



O SUS NA PRÓXIMA DÉCADA: REPENSAR O PAPEL DO MINISTÉRIO DA SAÚDE

Por Lenir Santos


Fui convidada a escrever na Revista Domingueira da Saúde, que está promovendo reflexões sobre a atuação do SUS na próxima década, com o tema a mim incumbido sobre o papel do Ministério da Saúde, os aperfeiçoamentos e mudanças que possam contribuir para enfrentamento dos desafios que batem à porta dos sistemas de saúde universais.

O SUS, criado na Constituição de 1988, artigo 198, é definido como o resultado da integração das ações e serviços públicos de saúde dos entes federativos, organizados de modo regionalizado e hierarquizado quanto a complexidade de serviços, descentralizado, integral e participativo. A Lei n° 8.080, de 1990 (Lei Orgânica da Saúde – LOS), dispôs sobre a sua organização e funcionamento, definindo o papel dos entes federativos incumbidos desse dever.

O SUS, de concepção originária da Reforma Sanitária, já se fez presente no Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), Decreto n° 94.657, de 1987, enquanto a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, gestava a constitucionalização da saúde como direito de todos e dever do Estado. Organizar um sistema interfederativo de saúde, de direção única em cada esfera de governo, gestão compartilhada, pondo fim à dicotomia assistencial e à centralização de competência, era a meta final.

A Lei n° 8.080, de 1990, por sua vez, dispôs sobre a competência comum e singular de cada ente federativo, em seus artigos 15 a 18, fortalecendo o papel do Estado-membro e de seus municípios, com transferência de recursos da União de forma global, fundada em critérios socioeconômicos, prestacional e de desempenho, sem o engessamento que foi sendo promovido pelo MS ao longo dos anos, por portaria.

Após a vinculação do Inamps ao Ministério da Saúde (MS) em 1991 e a sua extinção em 1993, muitas de suas atribuições – que deveriam ser revistas, reformuladas ou extintas – foram traspassadas para o Ministério da Saúde, com pouca crítica reformadora, assumindo o MS um papel mais inampiano do que o exigido pelo SUS. A casa velha foi morar na casa nova sem muita crítica quanto ao que demolir, mudar, alterar, reformar.

A começar pela tabela de procedimentos – até hoje vigente – a pautar as transferências dos recursos da União para Estados e Municípios, que de algum modo foram tratados como prestadores de serviços federais e não como entes federativos incumbidos do dever de garantir saúde para a população. O próprio modelo de auditoria do Inamps, que foi transferido para o MS, contaminou alguns avanços da Lei n° 8.080, de 1990. Assim a casa velha foi dominando a casa nova, com o MS adotando hábitos e costumes destituídos de visão de futuro exigida pelo SUS.

A medida que o tempo foi passando, consolidaram-se equívocos e erros, e insisto em dizer, a começar pela forma de transferência de recursos federais – que induziu o modelo de gestão estadual e municipal – que jamais observou os critérios do artigo 35 da LOS, tampouco os da Lei n° 8.142, de 1990, e atualmente não observa os da LC 141, de 2012, mantendo-se fiel a tabela de procedimentos e outros aspectos como a PPI (Programação Pactuada Integrada); a regramentos excessivos, muitas vezes inconsistentes e impossíveis de serem absorvidos pelos gestores da saúde, dada a sua profusão .

O SUS da Reforma Sanitária, bem como o disposto na LOS, impunha ao MS um forte papel de órgão nacional pensante, formulador, planejador, regulamentador; de monitoramento e avaliação; de identificação e divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da saúde, com formulação de política de saúde destinada a promover nos campos econômico e social a redução de riscos de doenças e outros agravos, como o meio ambiente, o saneamento básico, qualidade dos alimentos industrializados; formação de pessoal para o SUS etc.

Ao MS, nos termos da lei, cumpre o papel de coordenador nacional da vigilância sanitária, epidemiológica, nutricional; de planejamento estratégico, como exemplo, a indução de políticas de desenvolvimento técnico-científico, industrial da saúde; de identificação e gestão de riscos do SUS, identificação de matriz de risco e desenvolvimento de cultura de sua mitigação, pois riscos em saúde implicam danos à saúde da coletividade, ou seja, da vida.

No âmbito do planejamento estratégico, é do MS a produção de análises quantitativas e qualitativas, como o número de profissionais de saúde a serem formados em áreas específicas para atender o SUS), política salarial, seus impactos e fontes de recursos, evitando crises como o do piso da enfermagem, por exemplo. Políticas indutoras de superação dos vazios assistenciais nas regiões de saúde e da aplicação das emendas parlamentares no planejamento sanitário, por exemplo; atuação na falta de médicos em locais de dificuldade de sua fixação, com medidas conjunturais e estruturais, somente ocorrida vinte anos depois ; de formação de recursos humanos para a saúde pública em razão de suas necessidades; promoção de estudos sobre os custos da saúde, financiamento adequado, com propostas e ações concretas de superação de suas dificuldades. Orientar, monitorar e avaliar permanentemente a saúde digital e atuar de forma segura e robusta sistema de informações em saúde intercambiável com Estados e Municípios, com possibilidade de atuar um cadastro único, com proteção de dados, entre outros.

Ainda que se possa reconhecer que o MS atua em diversos dos campos acima mencionados, nem sempre o fez ou faz de modo satisfatório, articulado, integrado, com resultados concretos a inibirem crises ante a visão estratégica de longo prazo que antecipa problemas e aponta soluções.

Há ainda atribuições afeitas muito mais ao Estado-membro, como o relacionamento direto com os 5.570 municípios, inibindo a articulação direta do MS; a organização e funcionamento da região de saúde – caminho organizativo natural do SUS – priorizando a transferência de recursos pelos critérios da lei, pelo planejamento regional da saúde; o contrato organizativo da ação pública da saúde na região de saúde como relevante instrumental para o monitoramento e avaliação de desempenho e resultados do SUS regional.

O não cumprimento dos critérios de rateio do artigo 17 da LC 141, de 2012, tem consequências em toda a gestão do SUS pelo fato de, à luz do controle, ser tratado como um convênio, mitigando autonomias federativas. Os 12 critérios de rateio, sistematizados em três eixos : promoção de equidade; desempenho do ano anterior; e rede de serviços instalada, transformaria qualitativamente a forma de controle, monitoramento e avaliação do SUS, centrando-se muito mais na avaliação de desempenho qualitativa e induzindo correção de rumos e políticas públicas.

O envelhecimento populacional e a incorporação tecnológica requerem urgente planejamento de longo prazo para dimensionar custos e adoção de políticas específicas, como a educação para o autocuidado; alerta para o conceito de saúde e de consumo, dado que a incessante tecnológica acrítica põe em risco os princípios sanitários de sistemas públicos e universais, transformando equivocadamente saúde em objeto de consumo.

Importante criar na população uma cultura sanitária contra a implantação de um modelo de saúde de consumo. Hoje já se faz sentir no país marketing de grandes conglomerados de saúde a induzir a população a desejar consumir saúde e não a ser corresponsável pelos cuidados com a sua saúde e ter sentimento de pertencimento e solidariedade com o sistema público de saúde, que deve sempre ser universal e igualitário.

A incorporação de tecnologia precisa de novos paradigmas e forma de funcionamento para que as listas nacionais de medicamentos e de ações e serviços de saúde – Renases e Rename – sejam justas e sóbrias quanto a incorporação de novas tecnologias, uma vez que 75% das inovações não são de fato inovações, mas nova roupagem a encarecê-la. A discussão sobre rol taxativo e rol exemplificativo nos planos de saúde, exige providências urgentes no SUS em relação às suas próprias relações de medicamentos e serviços que precisam ser justas.

A atribuição do MS de direção e coordenação nacional, urge encontrar seu ponto de equilíbrio dado o SUS ser um sistema de compartilhamentos e interdependências federativas, exigente de cooperação permanente e obrigatória entre os entes para atender o seu modelo integrado, interdependente e interfederativo.

Para finalizar, ressaltamos que o MS precisa de uma revisão de seu papel estratégico no SUS para enfrentar os desafios que estão postos para os próximos dez anos, como a pandemia da Covid-19 demonstrou e talvez não seja a única, que apontam um futuro complexo para os sistemas universais de saúde, onde a incorporação de tecnologia tem um papel decisivo em razão de seus benefícios versus custos e que associada à longevidade, exige novas formas de pensar a saúde, novas estratégias de atuação, como a das corresponsabilidades entre profissional de saúde e usuário (por ultrapassada a figura ativa-passiva); transparência e sobriedade e reforço qualitativo da participação da sociedade na definição das políticas de saúde.


Lenir Santos, advogada, doutora em Saúde Pública pela Unicamp, professora colaboradora do Departamento Saúde Coletiva Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário – IDISA.



SAÚDE NÃO É GASTO! SAÚDE É INVESTIMENTO!

Por Francisco R. Funcia


A Associação Brasileira de Economia da Saúde convidou os economistas Bruno Moretti, Carlos Octávio Ocké-Reis, Erika Aragão, Esther Dweck, Francisco R. Funcia, Maria Fernanda Cardoso de Melo, Mariana Melo e Rodrigo Benevides para elaborarem uma proposta de Nova Política de Financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS), apresentado e debatido no seminário realizado pela ABrES em 22/07/2022 no auditório do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia.

O texto é composto por seis seções, além da introdução e das considerações finais: evolução recente do orçamento da saúde, diretrizes da nova política de financiamento do SUS, uma visão geral das mudanças fiscais propostas, a proposta setorial de novo piso de aplicação em saúde e outras medidas, a proposta fiscal e a proposta tributária.

Da leitura do documento é possível verificar que, diferentemente da ampliação dos gastos públicos que está ocorrendo em muitos países com o objetivo de promover o crescimento econômico e reduzir a desigualdade nesse período pós-pandemia, o governo federal brasileiro continua com a política de austeridade fiscal da Emenda Constitucional nº 95/2016 (iniciada em 2017), cujo impacto para o SUS tem sido a redução de recursos federais, estimada em quase R$ 60 bilhões no período de 2018 a 2023 (considerando a programação orçamentária para 2023 encaminhada ao Congresso Nacional).

O gasto total em saúde no Brasil é compatível com os verificados internacionalmente (9,6% do PIB), porém aqui a participação do gasto público (40%) é menor que o privado (60%). Além disso:

a) A regra do piso federal do SUS está congelada até 2036 no valor do piso de 2017 (atualizado
somente pelo IPCA), o que reduz os valor per capita da aplicação federal em saúde e impacta
negativamente a contribuição federal no financiamento da saúde nos Estados, Distrito Federal
e Municípios (pois cerca de 2/3 do orçamento do Ministério da Saúde são destinados a esses
entes subnacionaionais).
b) A participação federal no gasto público em saúde está em torno de 42%, enquanto a receita
disponível federal (conceito que corresponde ao valor dos tributos arrecadados pela União
após as transferências constitucionais para Estados, Distrito Federal e Municípios) é de cerca
de 57%.
c) As regras dos pisos federais do SUS a partir de 2016 foram vinculadas a 15% da receita
corrente líquida (EC 86/2015) e 15% da receita corrente líquida de 2017 congelado para o
período de 2017 a 2036 (EC 95/2016), o que representou redução de recursos para a saúde
no momento de crise econômica e sanitária – exatamente quando mais recursos são
necessários tanto para ampliar os serviços voltados ao atendimento das necessidades da
população, como para adotar uma política econômica capaz de retomar o emprego, a renda
e o crescimento econômico.

Desta forma o documento da ABrES apresenta como proposta a revogação da EC 95 e sua substituição por outra regra de controle das contas públicas e de cálculo do piso federal do SUS, este último com uma regra de transição que considerasse a média dos valores empenhados em 2020 e 2021, acrescidos da variação do IPCA, de um fator equivalente ao crescimento da renúncia de receita para planos de saúde e despesas médicas observados nos últimos anos (que foi maior que o crescimento de recursos para o SUS) e de um fator que contemple a maior participação da população idosa em relação ao conjunto da população (que demanda tratamento mais especializado e custoso).

Além disso, a proposta da ABrES tem por objetivo ampliar a participação do gasto público consolidado em saúde para 60% do gasto total e o gasto federal no mínimo a 3% do PIB.

SAÚDE NÃO É GASTO! SAÚDE É INVESTIMENTO!
SAÚDE É DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO! (Art. 196 da CF)


Nova Política de Financiamento do SUS/Texto elaborado para Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES)




OUTRAS DOMINGUEIRAS