Apresentação
A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.
Editores Chefes
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Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado
ISSN 2525-8583
Domingueira nº 37 - Novembro 2025
Índice
Relatório da OMS sobre doenças negligenciadas aponta ações que interessam ao Brasil
Por Fernando Aith
A Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou no último dia 22 de outubro o Relatório Global sobre Doenças Tropicais Negligenciadas 2025, o terceiro de uma série que monitora o progresso em direção às metas de 2030 estabelecidas no Roteiro para Doenças Tropicais Negligenciadas 2021-2030. O relatório apresenta um panorama abrangente das conquistas e desafios globais relacionados às doenças tropicais negligenciadas (DTNs) em todas as seis regiões da OMS.
Doenças tropicais negligenciadas são doenças bastante relacionadas à pobreza e que impõem um fardo humano, social e econômico devastador a mais de 1 bilhão de pessoas em todo o mundo, predominantemente em áreas tropicais e subtropicais, entre as populações mais vulneráveis e marginalizadas.
Em geral, são doenças infecciosas, como a leishmaniose, hanseníase e malária, que afetam desproporcionalmente populações de baixa renda, especialmente em países em desenvolvimento. Elas são consideradas negligenciadas por receberem pouca atenção e interesse político e também por atraírem pouco investimento de pesquisa e desenvolvimento, embora tenham alto impacto na saúde individual e coletiva.
Além do relatório sobre o impacto e as ações que vem sendo tomadas para enfrentar as doenças negligenciadas no mundo hoje, o documento também traz um roteiro de ações a serem adotadas até 2030. O roteiro elaborado pela OMS para 2030 define metas e estratégias específicas para cada doença negligenciada ali destacada, sendo fruto de um amplo debate onde estão representadas as vozes de toda a comunidade de DTN.
O texto também reforça as atividades específicas desenvolvidas pela OMS para cada doença, organizando um programa de ação dedicado a todas as DTNs e fomentando a colaboração entre fabricantes de produtos farmacêuticos, parceiros de P&D, organizações filantrópicas, autoridades nacionais de saúde e a própria OMS.
Esse esforço coordenado é fundamental para uma redução da carga global das DTNs e o Brasil, como país diretamente interessado no tema e com boas capacidades para a adoção de medidas voltadas ao enfrentamento das doenças negligenciadas, deve atentar para este movimento e ocupar um protagonismo que lhe é natural neste debate global.
Destaques do Relatório Global sobre Doenças Tropicais Negligenciadas 2025
O relatório e o roteiro de ação estão baseados em três pilares estruturantes:
1. Aceleração das ações programáticas;
2. Intensificação das ações e planos transversais;
3. Mudança dos modelos operacionais atuais e implementação de ações que facilitem a apropriação, pelos países, de todas as etapas do processo de inovação, produção e acesso a medicamentos para doenças negligenciadas.
Além destes três pilares que estruturam o relatório e pautam as ações a serem tomadas até 2030, vale destacar alguns pontos essenciais trazidos pelo Relatório:
Redução no número de pessoas que necessitam de intervenções contra DTNs: Em 2023, 1,5 bilhão de pessoas necessitaram intervenções contra DTNs. Este número representa 122 milhões a menos do que em 2022 e uma redução de 32% em relação à linha de base de 2010.
Redução da carga da doença: Entre 2015 e 2021, a carga da doença caiu de 17,2 milhões para 14,1 milhões de DALYs (anos de vida ajustados por incapacidade), enquanto as mortes relacionadas a DTNs (Doenças Tropicais Negligenciadas) diminuíram de uma estimativa de 139 mil para 119 mil.
Aumento do número de pessoas tratadas: Em 2023, 867,1 milhões de pessoas foram tratadas para pelo menos uma DTN, cerca de 18 milhões a mais do que em 2022.
Eliminação de DTNs: Em 2024, sete países foram reconhecidos pela OMS por terem eliminado uma DTN.
Progressos transversais: Os avanços incluem maior integração na implementação da quimioterapia preventiva, adoção mais ampla de estratégias integradas para DTNs cutâneas, maior inclusão de DTNs em estratégias, planos e pacotes de serviços essenciais nacionais de saúde e a adoção mais ampla de diretrizes para o manejo de deficiências relacionadas a DTNs.
Pesquisa e inovação: Em 2024, a OMS lançou um processo para definir as prioridades de pesquisa e desenvolvimento para as DTNs e pré-qualificou seis novas formulações de medicamentos, um ingrediente farmacêutico ativo e uma nova vacina contra a dengue.
Medicamentos e outros produtos de saúde: Até o final de 2024, 19 tipos diferentes de medicamentos para DTNs foram doados por 12 fabricantes; dos quase 30 bilhões de comprimidos e frascos entregues aos países desde 2011, 1,8 bilhão foram destinados a tratamentos somente em 2024. No mesmo ano, a OMS facilitou a aquisição de mais de 1 milhão de testes de diagnóstico para cinco DTNs.
Advocacia e parcerias: Em 2024, as DTNs permaneceram visíveis em fóruns globais, como a Assembleia Geral das Nações Unidas, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e o G7 e o G20; parcerias foram estabelecidas ou renovadas com a Gavi, a Aliança de Vacinas (sobre a vacina contra a raiva) e com o Fundo Global de Tecnologias Inovadoras em Saúde (sobre o acesso a medicamentos, vacinas e diagnósticos).
Sustentabilidade: Em 2024, 14 países africanos haviam desenvolvido planos nacionais para fortalecer a sustentabilidade da prestação de serviços relacionados às DTNs.
Roteiro de ações para tratamento das DTNs até o ano de 2030
Além do diagnóstico preocupante, embora positivo em alguns aspectos, apresentado pela OMS, o documento também traz um roteiro de ações para serem adotadas até o ano de 2030.
O roteiro para 2030 abrange um conjunto medicamentos voltados ao tratamento de doenças e grupos de doenças que afetam desproporcionalmente pessoas que vivem na pobreza, predominantemente em áreas tropicais e subtropicais.
Embora os recursos para DTNs muitas vezes não sejam compatíveis com a vasta necessidade, o documento destaca o fato de que as intervenções para DTNs são um dos melhores investimentos em saúde pública global. Nesse sentido, o roteiro tem dois objetivos principais: permitir que os governos nacionais assumam a liderança na implementação de intervenções contra as DTNs, fornecendo marcos claros e abordagens transversais específicas para cada doença.
O roteiro inclui também o incentivo à comunidade global e partes interessadas – doadores, empresas farmacêuticas, parceiros de implementação, organizações não governamentais e instituições acadêmicas – a aumentar seus compromissos para superar as DTNs na próxima década. De forma geral, espera-se que o roteiro incentive três mudanças fundamentais na abordagem para o combate às DTNs:
- adoção de indicadores de impacto em vez de indicadores de processo e aceleração da ação programática;
- deixar de adotar programas isolados e específicos para doenças e passar a integrar estes programas aos sistemas nacionais de saúde, bem como intensificar abordagens transversais centradas nas necessidades das pessoas e das comunidades e;
- mudar os modelos operacionais para facilitar uma maior apropriação dos programas pelos países.
Desafios a serem enfrentados
O relatório da OMS destaca o progresso lento na redução de mortes por doenças transmitidas por vetores, na expansão do acesso à água, saneamento e higiene, e na proteção das populações contra gastos catastróficos com saúde, revelando lacunas persistentes em uma resposta multissetorial harmonizada.
Também persistem lacunas na garantia de relatórios de dados completos sobre todas as DTNs e na coleta de informações desagregadas por gênero. As conclusões de uma avaliação qualitativa do progresso em direção às metas do roteiro identificaram necessidades e prioridades essenciais em quatro dimensões: diagnóstico, monitoramento e avaliação, acesso e logística, e advocacia e financiamento.
Os programas para DTNs continuam sendo severamente afetados pela redução da disponibilidade de financiamento. A ajuda oficial ao desenvolvimento diminuiu 41% entre 2018 e 2023, ressaltando a necessidade de priorização, mobilização de recursos domésticos e foco estratégico em intervenções de alto impacto.
Oportunidade para o Brasil
O Brasil, como um país de dimensões continentais, que sofre com as doenças negligenciadas e que possui uma capacidade considerável para pesquisa e desenvolvimento de tecnologias de saúde voltadas ao enfrentamento destas doenças, tem uma oportunidade ímpar para assumir protagonismo global na condução de soluções universais e eficazes para dengue, malária, febre amarela, leishmaniose, zika e várias outras.
Como apontado pela OMS, a redução do financiamento internacional para o enfrentamento das doenças negligenciadas exige que os países aumentem os seus recursos internos destinados a este problema de saúde.
O Brasil deve assumir o seu papel neste movimento global que lhe interessa diretamente e assumir o protagonismo que o tema lhe insere naturalmente, dada a prevalência destas doenças em nosso território e considerando a existência do Sistema Único de Saúde e de um crescente complexo econômico e industrial em saúde.
Organização Mundial de Saúde. Ending the neglect to attain the Sustainable Development Goals: A road map for neglected tropical diseases 2021–2030. Disponível em: https://www.who.int/teams/control-of-neglected-tropical-diseases/ending-ntds-together-towards-2030
Fernando Aith, Professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Paris. Diretor do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP