Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 38 - Outubro 2022

Domingueira da Saúde

A Revista Eletrônica Domingueira da Saúde está publicando dez artigos (2.10 a 4.12) sobre O SUS NA PROXIMA DÉCADA, de diversos autores, contribuição para os debates eleitorais e futuras políticas públicas sanitárias.



O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE NA PRÓXIMA DÉCADA: A INTERSETORIALIDADE NA SAÚDE

Por José Carvalho de Noronha


É certo que prever significa somente ver bem o presente e o passado enquanto movimento: ver bem, isto é, identificar com exatidão os elementos fundamentais e permanentes no processo. No entanto, é absurdo pensar numa previsão puramente “objetiva”. Quem faz previsão tem, na realidade, um “programa” que deve ser levado ao triunfo; e a previsão é, exatamente, um elemento desse triunfo.
(Gramsci, Previsões e perspectivas, in Notas sobre Maquiavel)

De maneira instigante faz alguns anos que o debate sobre as políticas de saúde no Brasil tem se centrado no debate sobre o financiamento e a organização do sistema de cuidados de saúde e não tem se focado numa abordagem mais ampla sobre a determinação social do processo saúde e doença. E isso apesar da Constituição brasileira de 1988, portanto há 34 anos, estabelecer de maneira absolutamente clara:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Aliás, desde o Século XIX que a determinação social esteve presente na avaliação das condições de saúde dos povos e de maneira enfática reafirmada na criação da OMS em 1948, que definiu Saúde como um “estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. Sem aprofundar o debate conceitual da diferença entre determinação e a listagem de “determinantes”, a própria OMS instituiu em 2005 a Comissão de Determinantes Sociais da Saúde, cuja contraparte brasileira foi estabelecida por decreto presidencial logo em seguida em 2006.

Esses “determinantes” referem-se às condições nas quais as pessoas nascem, crescem, trabalham, vivem e envelhecem e o conjunto de forças e sistemas que formam as condições da vida diária. A estrutura social e econômica, as relações de propriedade, poder e cultura que definem as classes sociais em disputa no capitalismo são absolutamente centrais para estabelecer os padrões de saúde de uma determinada sociedade.

Desde a queda da União Soviética, o capitalismo liberal triunfava solitário. Com a sombra do socialismo real, foram necessárias concessões na forma de um estado do Bem-Estar Social na da macroeconomia keynesiana. Ensinou Polanyi (2000), “Embora as condições sob as quais esse empreendimento ocorreu o tornassem inaplicável aos países ocidentais, a simples existência da Rússia Soviética provou ser uma influência incisiva”. Removida esta ameaça, pôde o neoliberalismo triunfar e com o fim do socialismo real colocou no polo em que ficava o sonho comunista, a socialdemocracia.

O que antes era um meio-termo virou um extremo, e a solução intermediária foi o social-liberalismo. Diante da crise de 2008, todas as certezas econômicas começaram a ser removidas, o que não havia sido solapado então, foi desmantelado com a pandemia da Covid-19, e a crise econômica a ela associada. O capital se viu novamente sob ameaça e o consenso neoliberal começou novamente a ser substituído, ao menos nos países centrais, pelo paradigma keynesiano.

O Brasil que saiu da ditadura militar adotou modelos entre o social-liberalismo e o neoliberalismo aberto. Apesar de ferrenhamente combatido pela direita – a ponto da direita radical hoje instalada no poder enxergar uma ameaça comunista –, o país não foi capaz sequer de estruturar um Estado de Bem-Estar Social efetivo. Se a ideia entrou no texto constitucional, tão logo promulgada a Constituição já se ouviam discursos de que tais direitos não cabiam no orçamento. Se o espírito de 1988 constitucionalizou uma utopia, a queda do muro de Berlim, logo em seguida, afastou o sonho. A ideia de um estado de direitos nunca deixou de sofrer ataques sistemáticos desde então. O último e mais notável foi a Emenda Constitucional Nº 95/2016, que estrangulou o financiamento de políticas de saúde, educação e outras ações governamentais e que, junto com as igualmente mencionadas Regra de Ouro e Lei de Responsabilidade Fiscal, compõe o tripé de regras fiscais autoimpostas.

O impacto no desenvolvimento do país, na geração de empregos, nas políticas segurança alimentar, de educação, ambiente, habitação, de proteção social se traduziu na estabilização e degradação das condições de saúde. A pandemia da Covid 19 com toda a centralidade que provocou sobre os sistemas de cuidados de saúde, das medidas de proteção individual, às vacinas e cuidados ambulatoriais e hospitalares, teve que ser fortemente complementada por políticas de estímulo à atividade econômica e garantia de renda mínima às populações mais vulneráveis.

No processo de reconstrução que o Brasil terá que enfrentar na próxima década, ou como muitos têm dito, caminhar para a construção de um Brasil que nunca existiu, teremos que integrar o conjunto de políticas econômicas e sociais. A volta ao mapa da fome, a degradação de nossas estruturas educacionais e ambientais, a persistência de graves déficits de moradia e saneamento básico requererão para a próxima década esforços coordenados, além do fortalecimento do SUS. Em 2011, reuniu-se no Rio de Janeiro a Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde que lançou a consigna de “Saúde em todas as políticas” chamando para ação intersetorial integrada (OMS, 2011).

Outro aspecto relevante decorre do aumento da longevidade e do predomínio de condições e doenças de longa duração que requerem uma integração mais específica do sistema de cuidados. A integração mais direta também não passou ao largo da Constituição quando integrou a Saúde no sistema de Seguridade. O amparo à velhice e aos deficientes requer políticas compensatórias de renda e acesso a serviços básicos a nível local, como alimentação, transporte, reabilitação física e profissional e políticas de acessibilidade. O SUS e Sistema Único de Assistência Social não poderão mais andar de mãos separadas nem nacional, nem localmente.

Passados seis anos do golpe parlamentar que derrubou a Presidenta da Dilma Rousseff, interrompendo um ciclo de avanços sociais, e terminados quatro anos de retrocessos, espera-se que quando essas linhas estiverem sendo lidas já estejamos trilhando novos caminhos. Para uma dolorosa travessia de transição. Pois uma década será ainda pouco para abrirmos as sendas para um novo Brasil.

Como concluí com alguns colegas em capítulo de livro lançado na Conferência Latino-Americana de Ciências Sociais – CLACSO, no México em junho deste ano, em alusão ao centenário da Semana Arte Moderna de São Paulo,
“Em 2022, completam-se dois séculos desde que o herdeiro da corte portuguesa declarou o Brasil independente. Até hoje, poucos momentos houve um momento de verdadeira independência, pois a nação nasceu subalterna. A república brasileira foi proclamada por um marechal monarquista. A (pseudo) ruptura com as oligarquias se deu com um oligarca. É preciso transpor o velho que ainda não sucumbiu, mas já é necessário apontar o novo. O novo é decolonial e descolonizado. O capitalismo e o colonialismo têm que ser superados por um novo pensar. A saúde é um direito de todos e é preciso desmercantilizá-la. A vida precisa se desmercantilizar. E sob a influência do pensamento crítico latino-americano e das ideias anticapitalistas pretendemos apontar o sonho da hipótese comunista e neste sendeiro fundar Pindorama.”(Noronha, JC et al 2022).


José Carvalho de Noronha Médico da Fundação Oswaldo Cruz,pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde (Lis/Icict), consultor do Proqualis,membro do Accreditation Committee da Joint Commission International, do Conselho Consultivo do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde - CEBES, do Conselho Empresarial de Saúde e Medicina da Associação Comercial do Rio de Janeiro. Coordenador Adjunto da Associação Latino-Americana de Medicina Social e Saúde Coletiva. Consultor de Relações Internacionais do Consórcio Brasileiro de Acreditação de Sistemas e Serviços de Saúde.




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