Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
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Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 39 - Novembro 2019

Novo modelo de financiamento da Atenção Primária à Saúde pactuado na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) em 31 de outubro de 2019: proposta de roteiro para reflexão, debates e demais providências para o cumprimento da Constituição Federal, da legislação e das normas infralegais que regem o Sistema Único de Saúde (SUS) – PARTE 2 (FINAL)

Por Francisco R. Funcia


Esta Nota é a segunda (e última) parte da proposta de roteiro para reflexão, debates e demais providências para o cumprimento da Constituição Federal, da legislação e das normas infralegais que regem o Sistema Único de Saúde (SUS) sobre o novo modelo de financiamento da atenção primária à saúde (NMFAPS), cuja primeira parte foi publicada na edição anterior da Revista Domingueira da Saúde.

Se o contexto da nota anterior foi a desconsideração, por parte do Ministério da Saúde e da Comissão Intergestores Tripartite, do requerimento do Conselho Nacional de Saúde para que não houvesse pactuação entre os gestores da NMFAPS antes da discussão por parte dos conselhos de saúde, a presente nota tem como “pano de fundo” a recente edição da Portaria do Ministério da Saúde, referente àquela pactuação.

Sob a ótica da legalidade, visto que, no setor público, os gestores podem fazer somente o que a lei autoriza, e em complemento ao afirmado na nota publicada na edição anterior da Revista Domingueira da Saúde, pactuar o NMFAPS na CIT e, depois, publicar a respectiva portaria são atos parcialmente em consonância com a legislação, porque são providências insuficientes “para que esse novo modelo possa ser efetivado, uma vez que se faz necessário refletir e debater com o controle social para a deliberação pelo Conselho Nacional de Saúde em obediência ao que disciplina sobre essa matéria a Constituição Federal, a Lei 8080/90, a Lei 8142/90 e a Lei Complementar 141/2012”.

Reiteramos (e ampliamos) os comentários apresentados no final da nota publicada na edição anterior da Revista Domingueira da Saúde, com o objetivo de subsidiar a reflexão, debate e deliberação dos conselhos de saúde (nacional, estaduais e municipais), as plenárias de saúde, as entidades e movimentos de saúde, os pesquisadores sobre o NMFAPS no contexto da situação estrutural do SUS e de seu (sub)(des)financiamento acelerado recente. Assim sendo:

1)Legalidade e eficiência da gestão? Houve o estabelecimento de fluxos de processos de trabalho por parte do Ministério da Saúde envolvendo o Conselho Nacional de Saúde, procedimento necessário para o cumprimento das exigências legais no processo de elaboração da proposta no NMFAPS, que foi pactuada na CIT em 31 de outubro de 2019?

2)Acesso universal ou cobertura universal de saúde? Considerando que consta, tanto nos slides “powerpoint” do arquivo da apresentação da proposta do NMFAPS feita pelo Ministério da Saúde na CIT, e que serviu de base para essa pactuação tripartite, como na notícia do site do Ministério da Saúde - Seminário Internacional sobre Financiamento da APS acontecerá dia 13 de novembro, em Brasília. Especialistas vão discutir o modelo brasileiro e o adotado em outros países (Disponível em http://aps.saude.gov.br/noticia/6155), a presença ativa de técnicos do Banco Mundial na elaboração dessa proposta do NMFAPS, e não apenas no desenvolvimento de estudos que pudessem subsidiar os dirigentes e técnicos do Ministério da Saúde na formulação das políticas de saúde brasileiras, cabe a pergunta: qual é o pressuposto dessa proposta do NMFAPS – sistema universal de saúde (acesso universal) ou cobertura universal de saúde?

3)Como fica a Universalidade, integralidade e equidade? Como será garantida a linha de cuidados em saúde baseada nos princípios e diretrizes constitucionais da universalidade, integralidade e equidade com a mudança de critérios de rateio para a transferência de recursos do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estaduais e Municipais de Saúde para as ações de atenção básica/primária, no contexto da ênfase no cadastramento dos usuários, da produtividade e do desempenho das equipes?

4) Como foi calculada a cifra de 50 milhões de brasileiros não atendidos? A propaganda veiculada que reproduz o discurso oficial de que 50 milhões de brasileiros, que precisam do SUS, não recebem atendimento público está fundamentada em qual base de dados? Muitos gestores questionavam a base de dados de atendimento realizado pelo SUS, sob a alegação de que estavam subestimadas e que muitos atendimentos não eram registrados – como pode, agora, essa mesma base de dados ser considerada a referência para reduzir os recursos a serem transferidos para Estados, Distrito Federal e Municípios, tendo somente os gestores a garantia de compensação para o ano de 2020 (curiosamente, ano eleitoral nos municípios)?

5) Os municípios terão que alocar ainda mais recursos próprios para a saúde? Segundo a concepção do NMFAPS, é possível inferir que, para não deixar a população desprovida de serviços de saúde e, portanto, para atender os usuários não cadastrados pelas equipes das secretarias municipais de saúde, os municípios terão que alocar uma proporção maior de recursos próprios no financiamento do SUS? Para atender a população não cadastrada que procurar os serviços municipais de saúde, no contexto do baixo crescimento econômico brasileiro já projetado para 2020 e 2021 e a consequente queda de receita pública, o NMFAPS fará com que os municípios, a partir de 2021, tenham que alocar mais que 25% das receitas próprias no orçamento municipal da saúde (quando o piso é de 15%), o que significa ampliar sua participação no financiamento das despesas totais em saúde no Brasil para além dos atuais 31% (o que representa 2,5 vez a mais da participação municipal em 1991) para compensar a redução da União dos atuais 43% (visto que o Estado não deverá ampliar sua participação dos atuais 26%)? Os candidatos a prefeitos que disputarão as eleições municipais em 2010 já sabem que a entidade nacional de representação dos Secretários Municipais de Saúde (assim como a das secretarias estaduais) pactuaram esse NMFAPS que resultará nisso?

6) Haverá redução de recursos fundo a fundo para Estados, Distrito Federal e Municípios sem nenhum tipo de compensação? Não há previsão de compensação para perda de recursos decorrente de mudança estrutural da política de atenção e do respectivo financiamento. Por exemplo, a extinção do PAB fixo proposta no NMFAPS representará uma redução de despesas do Ministério da Saúde de aproximadamente R$ 3,4 bilhões em 2020 (equivalente aos oito meses de maio a dezembro) e anual de R$ 5,1 bilhões a partir de 2021, recursos esses que eram integralmente transferidos fundo a fundo para Estados, Distrito Federal e Municípios; a reestruturação do Programa Mais Médicos (que será denominado de Médicos pelo Brasil), como é possível inferir dessa nova denominação (foi retirada a palavra “mais”), reduziu as áreas atendidas (portanto, população coberta), o que significou uma redução de despesas de R$ 3,5 bilhões para R$ 2,3 bilhões (queda de 30%). Em outros termos, somente considerando esses dois exemplos, os municípios terão que alocar adicionalmente em conjunto recursos próprios no valor de R$ 6,3 bilhões anuais para manter os serviços que já estão sendo prestados à população, por causa dessa redução do financiamento federal.

7)Como o NMFAPS pode anunciar mais recursos para Estados, Distrito Federal e Municípios se as despesas primárias da União estão submetidas ao teto da EC 95 e o piso federal do SUS congelado nos níveis de 2017, com possibilidade de redução ainda maior se as novas Propostas de Emendas Constitucionais (PEC’s) encaminhadas pela equipe econômica do governo federal (pelo ministro Paulo Guedes acompanhado do Presidente Bolsonaro na entrega feita ao Presidente do Senado) forem promulgadas pelo Congresso Nacional em 2020? Haverá redução do financiamento federal do SUS porque essa deve ter sido a “lição de casa” encomendada para todos os formuladores de políticas setoriais (ministérios) – é possível inferir essa determinação com base nas ações e declarações do Ministro da Educação, na Reforma da Previdência e em várias medidas relacionadas ao Ministério da Saúde, como é o caso desse NMFAPS. A queda real dos recursos federais alocados para o SUS está ocorrendo desde a promulgação da EC 95/2016: o piso per capita (referência para a disponibilidade orçamentária) passou de R$ 574,85 em 2016 para R$ 553,02 em 2020 (ambos a preços de 2019). Em termos de proporção da receita corrente líquida da União, a despesa empenhada passou de 14,96% em 2016 e 15,77% em 2017 para cerca de 14,0%. Em outros termos, houve queda na alocação de recursos federais por habitante para a saúde e uma proporção menor da receita corrente líquida tem sido gasta pelo governo federal em saúde.

8) Então, como decorrência do ponto anterior, para que o NMFAPS proporcione mais recursos que antes para Estados, Distrito Federal e Municípios, é preciso que o Ministério da Saúde responda: qual área de atenção à saúde perderá recurso para esse fim? Quais foram os estudos que resultaram nos parâmetros apresentados nos slides para o estabelecimento desses novos critérios de rateio para transferências de recursos federais somente para o financiamento da atenção básica/primária, sem incluir outras ações na perspectiva de uma concepção de sistema único de saúde (baseado no acesso universal)? Ou, há estudo que demonstre a possibilidade de ampliar recursos para o financiamento da atenção básica/primária em saúde sem retirar da vigilância em saúde, da assistência farmacêutica, da assistência hospitalar e ambulatorial e da alimentação e nutrição (que são as outras subfunções orçamentárias)?

9) Qual é o objetivo do MS em desconstruir um modelo pactuado na CIT, baseado nas transferências do PAB fixo e no financiamento das equipes de saúde da família, fruto de processos conjuntos de avaliação e revisão realizados nas última décadas, e reduzir o financiamento da atenção básica? Trata-se de pergunta a ser respondida de forma fundamentada pelo Ministério da Saúde. Foi publicada em 14 de novembro de 2019 a Nota Técnica (NT) do Cosems-SP (disponível em https://www.facebook.com/322099977842831/posts/2690560704330068/), que trouxe referências importantes para a reflexão e debates nos conselhos de saúde sobre o NMFAPS.

9.1) Primeiramente, em termos de gestão, ao resgatar o princípio da legalidade que deve estar presente na formulação da política de saúde: a NT alerta para que se atenda à necessidade “de redução das desigualdades regionais expressas no Orçamento da Seguridade Social (tal como SUS), que será prejudicada tendo em vista que o novo modelo se propõe basicamente a remunerar com base em cadastro de pessoas, medidas diametralmente opostas ao que determina os critérios de rateio estabelecidos pelas leis orgânicas do SUS ratificadas pela Lei Federal nº 141/2012. (...) Ademais, o PAB fixo possibilita a implementação das ações da Atenção Básica previstas nos Planos Municipais de Saúde, sem o engessamento comum nos repasses federais”.

9.2) Em seguida, em termos do impacto negativo desse novo modelo de financiamento da atenção primária à saúde para os municípios do Estado de São Paulo, destacando aqui apenas o critério de “capitação ponderada”: a NT alerta que, “a partir de 2021, se não houver alteração na quantidade de pessoas e equipes cadastradas na APS, os municípios do Estado de São Paulo poderão perder aproximadamente 732 milhões de reais na substituição da somatória do repasse do PAB FIXO, ESF, NASF e Gerentes pela ‘Capitação Ponderada’. Este volume representa aproximadamente 47% dos recursos federais projetados para repasse aos municípios paulistas em 2019 para APS. Isto porque, hoje, a variável determinante é que somente 36% da população do Estado possui cadastro nas UBS”.

9.3) Em complemento ao item anterior: a NT alerta ainda que “as simulações do Ministério da Saúde e CONASEMS tecem a mesma comparação, considerando o cadastramento na meta máxima por tipologia municipal para cada equipe, e mesmo assim, neste cenário ideal, a perda para o conjunto dos municípios paulistas na Dimensão da Capitação Ponderada seria de aproximadamente 423 milhões (mais de 25% das projeções de recebimento para 2019) atingindo 391 municípios (ou 61% do conjunto de municípios) na substituição da somatória do repasse do PAB FIXO, ESF, NASF e Gerentes pela ‘Capitação Ponderada’ “.

9.4) Essa NT trata também dos impactos dos outros critérios. O fato é que o estudo reforçou a necessidade da reflexão e debates mais amplos, inclusive tecnicamente, porque as perdas variam segundo metodologias de projeção, que representam premissas a serem assumidas e, portanto, não foram disponibilizadas para a criação de outros cenários possíveis de projeção. Sem isso, os Conselhos de Saúde (inclusive o Conselho Nacional de Saúde, a quem caberá deliberar sobre esse NMFAPS pactuado na CIT e com a respectiva portaria já publicada) não terão elementos para analisar essa proposta. Seria muito importante que estudos semelhantes ao produzido pelo Cosems-SP fossem feitos e publicados para subsidiar esse debate e a deliberação do CNS, pois não basta acessar individualmente o “simulador” disponibilizado pelo Conasems para esse fim, como está demonstrado nessa NT.

Portanto, o Ministério da Saúde precisa apresentar com urgência a fundamentação técnica desse novo MMFAPS, incluindo os diferentes cenários de projeção e as respostas para os quesitos formulados anteriormente e outros que venham a ser apresentados pelos conselhos de saúde, pesquisadores movimentos e entidades de saúde. Afinal, a próxima (e última) reunião do Conselho Nacional de Saúde ocorrerá no início de dezembro – sem a deliberação do CNS, o NMFAPS não poderá ser efetividade a partir de 2020, em respeito ao princípio da legalidade que deve reger as decisões dos gestores públicos.


Francisco R. Funcia, Economista e Mestre em Economia Política pela PUC-SP.





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