Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 40 - Novembro 2019

O PISO FEDERAL CONSTITUCIONAL DA SAÚDE CONDICIONADO A QUEBRA DA “REGRA DE OURO” NO PROJETO DE LEI ORÇAMENTÁRIA DA UNIÃO DE 2020.

Por Francisco R. Funcia, Carlos O. Ocke-Reis e Lenir Santos


O objetivo da presente nota é destacar um aspecto que nos chamou a atenção na análise preliminar do orçamento do Sistema Único de Saúde inscrito no Projeto de Lei Orçamentária da União de 2020 (PLOA 2020): o fato do piso mínimo da saúde, em seu valor total, ter um grande percentual condicionado à autorização legislativa e quebra da “regra de ouro” (expressão que significa não realizar operações de crédito que excedam as despesas de capital).

Se o valor fosse baixo, como algumas vezes ocorreu, não teria chamado a atenção de todos. Mas, o montante é de R$ 36 bilhões, o que não é pouca coisa: corresponde a um quarto ou mais do gasto mínimo federal constitucional com o SUS (R$ 121,3 bilhões) para 2020.

Pelo inusitado e pelos riscos que encerram cifra tão expressiva estar sob essa condição, faz-se necessário um alerta aos legisladores que terão a incumbência de aprovar o PLOA 2020 e, posteriormente, aprovar ou não, nos termos do inciso III do art. 167 da Constituição, a quebra da vedação Constitucional ali definida.

Esse dispositivo constitucional estabelece a vedação de “realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta”. Em outros termos, o governo federal está condicionando a execução orçamentária e financeira das ações classificadas como despesas correntes ao aumento da dívida pública.

Trata-se de uma situação que pode ser caracterizada como um pedido do governo federal para o Congresso Nacional adotar uma gestão fiscal irresponsável, nos termos da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), mediante execução orçamentária e financeira deficitária bem maior que os observados a partir de 2015.
A Tabela 1 apresenta os valores agregados do Orçamento Fiscal e do Orçamento da Seguridade Social do PLOA 2020.

Tabela 1
Projeto de Lei Orçamentária da União 2020 - Orçamentos Fiscal e da Seguridade Nacional

É possível deduzir da análise da Tabela 1 que:
a)O déficit do OSS é financiado com o superávit do OF: situação que sempre existiu, na medida que as receitas vinculadas ao OSS são menores que as despesas; porém, esse déficit será menor (de R$ 333,85 bilhões para R$ 82,25 bilhões) se houver redução de 20% das despesas fixadas no OSS (de R$ 1.248 bilhões para R$ 996,77 bilhões);
b)Cerca de 21% da receita estimada no OF (ou R$ 367,03 bilhões) refere-se a operações de crédito condicionadas à autorização do Congresso Nacional, enquanto não há esse condicionamento de receita no OSS;
c)Cerca de 8% da despesa fixada no OF (ou R$ 115,43 bilhões) tem a execução orçamentária e financeira condicionada à autorização do Congresso Nacional para a realização de operações de crédito (emissão de títulos da dívida pública) para o financiamento de despesas correntes, enquanto que, no OSS, cerca de 20% tem essa execução condicionada à mesma autorização;
d)Desta forma, o governo quer passar para a sociedade que os gastos da seguridade social (saúde, previdência e assistência social) são elevados e causadores do déficit público, o que não condiz com a realidade.

Contudo, é importante destacar que houve superávits sucessivos até 2013 e que a situação deficitária das contas públicas federais teve início em 2015 e se agravou a partir de 2016, período em que a política econômica foi marcada pela recessão (2015 e 2016) e baixo crescimento do PIB (2017 e 2018) – como consequência, a receita federal caiu e a despesa federal aumentou.

O Gráfico 1 ilustra essa situação.

Gráfico 1
Evolução da Receita Líquida e Despesas do Governo Federal 1997-2018 (% PIB)

Esta situação analisada do PLOA 2020 da União também caracteriza o orçamento federal da saúde, cujos recursos condicionados são de R$ 36,0 bilhões, que representam cerca de 27,2% do orçamento federal 2020 para saúde. Desta forma, cerca de:
A)R$ 99 bilhões - Programação no Órgão 36000 - Ministério da Saúde (inclui Reserva de Contingência), correspondente à soma das ações e serviços públicos de saúde (ASPS) classificadas segundo a Lei Complementar 141/2012 com as demais despesas de saúde não classificadas nessa tipologia legal (não ASPS);
B)R$ 37 bilhões - Programação do “Órgão” 93000 que está sob supervisão das unidades orçamentárias do Ministério da Saúde, correspondente à soma das ações e serviços públicos de saúde (ASPS) classificadas segundo a Lei Complementar 141/2012 e com as demais despesas de saúde não classificadas nessa tipologia legal (não ASPS) e condicionada à autorização legislativa para emissão de títulos (que representa rompimento com a “regra de ouro” da LRF que estabelece que a receita de capital não pode ser utilizada para pagamento de despesas correntes):
C)(A+B) TOTAL = R$ 136 bilhões (ASPS + não ASPS)

Portanto, considerando que o piso federal ASPS é de R$ 121,3 bilhões, o PLOA 2020 está em desacordo à Lei Complementar 141/2012: afinal, uma parte das despesas não está alocada no Ministério da Saúde por ter a sua execução condicionada à autorização específica do Congresso Nacional (que ocorrerá após 1º de janeiro de 2020) para descumprimento da “regra de ouro” – pagamento de despesas correntes com receita oriunda de operações de crédito decorrentes da venda de títulos da dívida pública (ou seja, com aumento da dívida pública).

O Quadro 1 apresenta, para exemplificar, algumas ações cujas despesas serão financiadas mediante o aumento da dívida pública se o Congresso Nacional aprovar posteriormente:

Quadro 1
Ações Orçamentárias selecionadas da Saúde, conforme Órgão 36000 e Órgão 93000

Essas e outras despesas correntes com execução orçamentária e financeira financiada por operações de crédito (venda de títulos da dívida pública) estão condicionadas à aprovação do Congresso Nacional durante o ano de 2020, conforme consta no PLOA 2020 (página 4807 do Projeto de Lei do Congresso Nacional N° 22, DE 2019, disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8002257&ts=1567544146852&disposition=inline - Acesso em 04/09/2019) transcrita a seguir (mais precisamente no terceiro item):
“Para fins de seleção das programações constantes do Órgão 93, listadas no Quadro 9 anteriormente apresentado, além do critério ser despesa corrente primária, conforme estabelecido no caput do art. 20 do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2020, foram utilizados os seguintes critérios:
• Despesas que tenham utilizado, em exercícios financeiros recentes, receitas com emissão de títulos públicos para seu custeio e possam legalmente ser programadas com essa fonte de recursos para o próximo exercício;
• Despesas correntes primárias que não possuam recursos vinculados para seu financiamento, tanto obrigatórias, tais como sentenças judiciais, requisições de pequeno valor, benefícios aos servidores públicos, complementação ao Fundo de Desenvolvimento do Ensino Básico e Valorização do Magistério (Fundeb), como despesas discricionárias;
• Despesas que, mesmo com recursos vinculados, tenham sua execução regularmente distribuída ao longo do exercício, de forma a suportar os primeiros meses com a dotação disponível, haja vista o tempo de tramitação e apreciação do crédito adicional em questão no Poder Legislativo, tais como o Programa de Seguro-Desemprego e a despesa com pessoal inativo de todos os Poderes da União”

Nesse sentido, o piso federal constitucional da saúde, por estar condicionado à posterior autorização do Legislativo em valores expressivos (mais de um quarto do orçamento) – gera perguntas como: Poderia o teto da saúde estar condicionado à encruzilhada do Congresso Nacional de quebrar a regra de ouro do orçamento ou deixar pessoas sem cuidados com saúde por insuficiência de recursos? Não estaria desde logo havendo um risco de desrespeito ao direito à saúde?

Importante que os senhores parlamentares atentem para essa forma de apresentação (e dos valores elevados condicionados ao aumento da dívida pública) das receitas e despesas no PLOA 2020, bem como o TCU, assim como os demais entes e entidades interessadas no tema.


Francisco R. Funcia – Economista e Mestre em Economia Política pela PUC-SP, Consultor-Técnico do Conselho Nacional de Saúde e Professor de Economia e Coordenador Adjunto do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul.
Carlos O. Ocke-Reis – Economista, doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e pós-doutor pela Yale School of Management (New Haven, EUA). Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Lenir Santos - Advogada, doutora em saúde pública e diretora do Instituto de Direito Sanitário Aplicado

Observação: as ideias contidas neste texto expressam a posição individual dos autores e não das instituições a que pertencem.





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