Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 41 - Novembro 2022

Domingueira da Saúde

A Revista Eletrônica Domingueira da Saúde está publicando dez artigos (2.10 a 4.12) sobre O SUS NA PROXIMA DÉCADA, de diversos autores, contribuição para os debates eleitorais e futuras políticas públicas sanitárias.



O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE NA PRÓXIMA DÉCADA: O FINANCIAMENTO ADEQUADO DA SAÚDE

Por Francisco R. Funcia


O financiamento adequado do Sistema Único de Saúde na próxima década deve garantir de forma estável recursos para o cumprimento do princípio constitucional de que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” (art. 196), cujas ações e serviços são de “relevância pública” (art.197). O objetivo deste breve artigo é avaliar as possibilidades desse financiamento adequado à luz da conjuntura pós-eleitoral de 2022 e alguns dos obstáculos a serem superados.

Inicialmente, entendemos como “próxima década” o período 2023-2032. Supondo que a Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016 continue em vigor até 2036 (prazo de vinte anos estabelecido no texto constitucional, com possibilidade de revisão em 2026), a próxima década estará totalmente condicionada pelos efeitos negativos das regras estabelecidas por essa EC, a saber, teto de valor para as despesas primárias federais totais congelado no valor dos pagamentos realizados em 2016 (atualizados anualmente pelo IPCA) e piso federal da saúde (e da educação) no valor do piso de 2017 (atualizado anualmente pelo IPCA).

Quais são os problemas dessas regras para as condições de saúde da população? Considerando a determinação social da saúde, as políticas sociais e as políticas promotoras do crescimento econômico, do emprego e da renda das famílias não podem ser implantadas se demandarem recursos, em termos reais, superiores aos de 2016, mesmo que a receita cresça.

Apesar de muitos alegarem que esse “teto” não prejudica a saúde e a educação) porque ambas estão protegidas por um “piso”, essa alegação reflete o equívoco de alguns e a maldade de outros: de um lado, porque para saúde e educação gastarem acima do piso outras áreas sociais precisam reduzir suas despesas para que o teto seja mantido; e de outro lado, os pisos congelados nos respectivos valores de 2017 somente não prejudicariam o desenvolvimento das ações e serviços das áreas de saúde e educação se a população também ficasse “congelada” nos níveis de 2017 – e não é isso que ocorre, pois segundo o IBGE, a população cresce a uma taxa média de 0,8% ao ano e a idosa a uma taxa de 3,7% ao ano. Além disso, no caso da saúde, não seria possível ao setor público incorporar os avanços técnicos e tecnológicos dos equipamentos, materiais hospitalares, medicamentos, vacinas e outros materiais nas unidades que atendem à população.

A Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES) e o Grupo de Economia do Setor Público do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GESP/IE/UFRJ) divulgaram recentemente um estudo em que apontam perdas para o SUS de R$ 37 bilhões causadas pela EC 95 no período 2018-2022.

Mas, segundo dados desse estudo, a década 2023-2032 já começou com mais perdas para o SUS federal: de um lado, o piso federal para 2023 de R$ 149,9 bilhões representa R$ 23 bilhões a menos do valor calculado pela regra suspensa da EC 86/2015 (15% da Receita Corrente Líquida da União), ou seja, a perda cumulada para o SUS federal no período 2018-2023 atingirá R$ 60 bilhões se a EC 95/2016 continuar em vigor; e de outro lado, o Projeto de Lei Orçamentária 2023 da União (PLOA 2023) encaminhado pelo governo federal ao Congresso Nacional tem programação de despesa com ações e serviços públicos de saúde no valor do piso de R$ 149,9 bilhões, mas cerca de R$ 20 bilhões desse valor sem nenhuma programação de despesas, ficando como uma “reserva financeira” para livre destinação pelos parlamentares – cerca de 50% para as emendas de relator (chamadas pela mídia como “orçamento secreto”) e 50% para as emendas impositivas (individuais e de bancada).

Segundo o citado estudo, para apresentar o PLOA 2023 com essa “reserva financeira” para emendas parlamentares, houve reduções significativas nas programações da farmácia popular, do Programa Nacional de Imunização, da Saúde Indígena, da Formação de Profissionais da Atenção Primária, da Educação e Formação em Saúde, dentre outras. No PLOA 2023, o valor total reservado para emendas parlamentares corresponde a 13% do valor das ações e serviços públicos de saúde, enquanto que média 2014-2016 foi de 3%, ou seja, um crescimento superior a quatro vezes no período. Aliás, nem as promessas eleitorais do candidato recém-derrotado para Presidência da República estavam contempladas no PLOA 2023 que ele encaminhou ao Congresso Nacional enquanto Chefe do Poder Executivo, como por exemplo, o Bolsa Família de R$ 600,00.

Por fim, o 2023 é o primeiro ano da década que será o último da vigência do Plano Nacional de Saúde 2020-2023, instrumento esse que foi reprovado pelo Conselho Nacional de Saúde em maio de 2021 e que está servindo de base para elaboração das programações orçamentárias. Trata-se de grave desrespeito ao processo de planejamento ascendente do SUS previsto na Lei Complementar 141/2012 e aos dispositivos da Lei 8142/90, bem como às deliberações do Conselho Nacional de Saúde e da 16ª Conferência Nacional de Saúde.

Desta forma, para que o SUS tenha “financiamento adequado” na década 2023-2032, é preciso que o novo governo recém-eleito adote as seguintes medidas, dentre outras:

a) Restabelecer as programações orçamentárias das ações e serviços públicos de saúde para 2023 por meio de negociações imediatas (ainda em 2022) com o Congresso Nacional, o que pode ser feito com o fim da reserva financeira destinada às emendas parlamentares e com adoção de um “orçamento de crise” para a saúde e outras áreas sociais, mediante autorização do Congresso Nacional para aumentar o endividamento público com esse objetivo;

b) Revogar a EC 95 e substituir por outra regra de controle dos gastos públicos, de modo a permitir a adoção de uma política econômica capaz de gerar emprego e renda, revertendo a estagnação econômica observada nos últimos anos; além disso, revogar também a regra de ouro para que o endividamento público possa financiar despesas correntes, em especial as da saúde, e impedir que emendas parlamentares possam ser de caráter secreto e desvinculadas do processo de planejamento do setor público brasileiro, inclusive dos setoriais (como é o caso do SUS);

c) Estabelecer uma nova política de financiamento para o SUS com nova regra de cálculo para o piso federal da saúde que não seja condicionada pelo ciclo econômico: ampliar os gastos públicos federais em saúde para o equivalente a 3% do PIB (e equivalente a 50% do gasto público total), para com isso atingir em 2032 um valor federal per capita (a preços de 2021) R$ 1.365,00 (acima dos atuais R$ 646,00), equivalente 26,6% da receita corrente líquida (acima dos atuais 14,2%);

d) Promover uma reforma tributária solidária, justa e sustentável (conforme estudo coordenado pelo Prof. Eduardo Fagnani), para contribuir com o crescimento econômico e aumentar a capacidade de financiamento das políticas públicas;

e) Priorizar conjuntamente as questões do financiamento adequado e da alocação desses recursos, evidenciando para a população que recursos adicionais para o SUS serão canalizados para estruturar e consolidar a atenção primária como a ordenadora da rede de cuidados do SUS, para valorizar os profissionais do SUS (inclusive com a criação de carreira nacional dos profissionais de saúde), para fortalecer a soberania sanitária por meio da ampliação de investimentos no Complexo Industrial Econômico Digital da Saúde; e

f) Assumir que “Saúde não é gasto, Saúde é investimento, Saúde é Vida”.


Francisco R. Funcia, Mestre em Economia Política pela PUCSP, Professor e Coordenador-Adjunto do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS e Consultor Técnico do Conselho Nacional de Saúde.




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