Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 42 - Novembro 2022

Domingueira da Saúde

A Revista Eletrônica Domingueira da Saúde está publicando dez artigos (2.10 a 4.12) sobre O SUS NA PROXIMA DÉCADA, de diversos autores, contribuição para os debates eleitorais e futuras políticas públicas sanitárias.



O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE NA PRÓXIMA DÉCADA: SAÚDE DIGITAL E SISTEMA DE INFORMAÇÕES EM SAÚDE

Por Fernando Aith


O século XXI é o século da consolidação e evolução do mundo digital.

As inovações da vida moderna digital estão revolucionando também o setor saúde com suas múltiplas e variadas bases de dados digitais com informações sensíveis sobre a saúde dos indivíduos. Além disso, amplia-se com grande velocidade o uso do aprendizado de máquina automatizado e da inteligência artificial aplicada à saúde para fins diagnósticos e terapêuticos, ao mesmo tempo que as redes sociais digitais globais e altamente conectadas, controladas por grandes corporações digitais, começam a fazer circular uma quantidade infinita de dados e informações de saúde com também infinitos potenciais econômicos.

Atualmente, no dia a dia dos sistemas de saúde ao redor do mundo é cada vez mais frequente nos depararmos com equipamentos médicos com inteligência artificial e capacidade de realizar cirurgias complexas apenas com a supervisão humana; dispositivos laboratoriais de diagnóstico que se utilizam da nuvem de dados digitais e da inteligência artificial para laudos diagnósticos conclusivos; bases de dados gigantes, organizadas e de “propriedade” de grandes grupos corporativos privados, com alto potencial de lucro em sua utilização (monetização das bases de dados digitais); dispositivos médicos capazes de realizar anamnese, diagnóstico e, ainda, fazer uma proposta terapêutica para o paciente; softwares de gestão e governança de serviços públicos e privados de saúde; aplicativos de internet que captam dados sensíveis das pessoas e prescrevem dicas ou orientações de comportamentos no campo da saúde física e mental etc.

Para além dos benefícios enormes que estas inovações do campo da saúde digital podem trazer, já está evidenciado que estes produtos, se não fiscalizados e desenvolvidos com ética e responsabilidade, podem produzir danos físicos, psicológicos e morais nos seus usuários, inclusive com resultado morte. Este conjunto abrangente de produtos e serviços de saúde que se utilizam das novas tecnologias digitais vem formando um campo de estudo que, genericamente, está sendo denominado como ‘saúde digital’.

No âmbito da saúde digital, a inteligência artificial destaca-se como um dos grandes temas a ser compreendido e regulado. Ferramentas de inteligência artificial (IA) servem para melhorar a qualidade, a segurança e a eficiência dos cuidados de saúde, e serão usadas para rastrear dados de pacientes, fazer triagem, ler imagens médicas, diagnosticar doenças, tomar decisões de tratamento, apoiar pacientes na promoção da saúde e fornecer cuidados primários, agudos, mentais e de longo prazo. Prevê-se que as inovações de IA não apenas ajudem, mas potencialmente substituam os cuidadores humanos, prestadores de serviços médicos, diagnosticadores e tomadores de decisão especializados.

Compreender os desafios regulatórios impostos à sociedade nesse momento mostra-se estratégico para que possamos usufruir o que estas inovações podem trazer de melhor, sem, contudo, expor os indivíduos e a sociedade como um todo a riscos desnecessários e, até, letais.

Estas novas tecnologias digitais em saúde agregam valor inestimável para a sociedade e para uma melhor proteção do direito à saúde na medida em que podem contribuir para a melhoria da qualidade dos serviços, para o aumento da acessibilidade aos serviços e produtos de saúde e para o aumento da capacidade humana de proteção da saúde individual e coletiva. No entanto, também trazem embutidos riscos sensíveis para os direitos de personalidade aplicados à saúde (intimidade, privacidade, liberdade, por exemplo), além dos próprios riscos associados aos produtos e serviços digitais, como o risco de usos abusivos destas tecnologias ou ainda usos equivocados com resultados maléficos para a saúde do paciente ou para a saúde coletiva.

LIBERDADE DE INICIATIVA E INOVAÇÃO E SEGURANÇA SANITÁRIA

O Estado brasileiro tem como função regular o setor saúde de forma abrangente e detalhada, visando garantir o respeito aos direitos fundamentais reconhecidos nas sociedades democráticas modernas. Além disso, o Estado tem o dever de desenvolver políticas sociais e econômicas para a garantia do direito à saúde, notadamente para a redução de riscos à saúde e para a promoção de acesso universal e igualitário às ações e serviços públicos de saúde.

Há uma tensão inerente aos sistemas de saúde de todo mundo, que coloca frente à frente os interesses do empreendedorismo privado e o interesse público a ser protegido por uma adequada regulação estatal. Esta tensão começa a ser verificada em maior escala atualmente no campo da saúde digital, especialmente em decorrência dos avanços que este campo obteve ao longo da pandemia da Covid-19.

Encaixam-se neste cenário os atuais debates regulatórios que estão sendo travados na sociedade sobre o “open health”; sobre os ataques cibernéticos sofridos pelo Ministério da Saúde do Brasil (com consequências ainda desconhecidas); sobre o teletrabalho no campo da saúde; sobre a regulação de softwares como dispositivos médicos (este tema objeto de uma recém aprovada nova Resolução da ANVISA); sobre as “fake news” no campo da saúde, bastante destacadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado que apurou crimes cometidos durante a Pandemia no Brasil; dentre outros temas com alto impacto para a saúde individual e coletiva.

Deve-se atentar, assim, para os atuais desafios regulatórios da saúde digital que se avizinham, buscando preservar o desenvolvimento destas novas tecnologias ao mesmo tempo em que se protege a segurança e a saúde dos usuários destas novas tecnologias.

Desde a simples segurança dos produtos e serviços que se utilizam da saúde digital, passando pela garantia de acesso às inovações tecnológicas que vão sendo incorporadas ao sistema de saúde, até o misterioso ambiente onde se desenvolvem e são testados os algoritmos de inteligência artificial em saúde, as funções regulatórias do Estado se impõem de forma inequívoca.

No entanto, embora alguns avanços já estejam sendo verificados no Brasil, ainda existem desafios significativos para desenvolver e organizar um ambiente regulatório claro, eficaz e coordenado para as tecnologias promissoras de saúde digital e inteligência artificial aplicadas à saúde. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) representou um importante avanço regulatório com impactos positivos sobre a saúde digital, mas é preciso continuar de forma permanente e altamente qualificada o processo de construção regulatória deste setor.

DESAFIOS PARA A REGULAÇÃO DA SAÚDE DIGITAL E DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL APLICADA À SAÚDE

Considerando a incipiente legislação vigente no país sobre o tema, aliada à cada vez mais fragilizada organização institucional e de governança estatal para o eficiente exercício do poder regulatório estatal no campo da saúde digital, mostra-se imperioso que se coloque na agenda regulatória nacional do Sistema Único de Saúde (SUS) a saúde digital, para que se possa construir um ambiente regulatório que seja capaz de, ao mesmo tempo, oferecer as bases necessárias para o desenvolvimento de novas tecnologias que sejam benéficas à sociedade e aos pacientes, e estabelecer os limites destas novas tecnologias no que se refere à plena proteção dos direitos fundamentais do ser humano, notadamente a integridade física e psicológica, a intimidade, a privacidade, a saúde e a liberdade.

Os sistemas de informação digitais existentes no campo da saúde são diversos e administrados por diferentes instituições públicas e privadas. Estes dados são amplamente utilizados para fins de desenvolvimento das novas tecnologias digitais no campo da saúde, especialmente aquelas que se utilizam da inteligência artificial.

Observando-se o fenômeno da IA em saúde e suas implicações para o direito à saúde e outros direitos fundamentais, os principais desafios e questões que se apresentam atualmente para uma regulação eficiente nesta área podem ser assim sintetizados:

• O federalismo brasileiro e a jurisdição fragmentada do Brasil sobre a saúde complicam a governança de inteligência artificial (IA) na área da saúde. Os resultados são camadas em cascata de governança e regulação e incerteza sobre se a totalidade regula suficientemente a IA em ambientes de saúde.

• Há incerteza quanto às principais questões legais, incluindo os requisitos legais em relação à privacidade e responsabilidade por lesões relacionadas à IA (por exemplo, o médico, o fabricante da tecnologia de IA, o hospital).

• As atuais estruturas do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) não são adaptadas para ferramentas que dependem de algoritmos em constante evolução. Há a necessidade de projetar uma nova estrutura que seja robusta e flexível.

• A adoção da IA na saúde deve ser eficiente e equitativa. É necessária uma orientação clara sobre as melhores práticas para processos justos de adoção de IA nos sistemas público e privado em saúde.

Em conclusão, dentre os deveres do Estado para a efetivação do direito à saúde no Brasil, organizar uma estrutura de governança e regulação da saúde digital e da IA aplicada à saúde encontra-se entre os mais relevantes da atualidade.
Compete ao Sistema Único de Saúde, especialmente suas instâncias reguladoras, atentar para esta nova realidade e reagir de forma tempestiva e eficaz visando garantir a segurança sanitária e a liberdade de inovação ao mesmo tempo. Tarefa difícil, mas necessária, que deve ser feita de forma transparente, participativa e republicana.


Fernando Mussa Abujamra Aith Professor Titular do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo - FSP/USP. Diretor Geral do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP. Professor Visitante da Université Paris Descartes - Paris 5 (desde 2014). Membro Especialista da Plataforma Harmony with Nature da Organização das Nações Unidas (ONU). Livre-Docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - FADUSP. Pós-Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Paris 2. Doutor em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP - FSP/USP.




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