Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
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Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 43 - Novembro 2022

Domingueira da Saúde

A Revista Eletrônica Domingueira da Saúde está publicando dez artigos (2.10 a 4.12) sobre O SUS NA PROXIMA DÉCADA, de diversos autores, contribuição para os debates eleitorais e futuras políticas públicas sanitárias.



O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE NA PRÓXIMA DÉCADA: DESENVOLVIMENTO DA CIENCIA E TECNOLOGIA NA SAÚDE

Por Adriano Massuda


A ciência e a tecnológica são componentes fundamentais da estrutura e funcionamento dos sistemas de saúde no mundo. Com a perspectiva de adoção em larga escala de inovações disruptivas em saúde e, principalmente, após a pandemia da Covid-19, terão um papel ainda mais relevante e desafiador.

No Brasil, a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) universalizou o acesso à saúde, modificou o modelo assistencial e contribuiu para o fomento da ciência e tecnologia em saúde. Entretanto, problemas estruturais do SUS foram agravados por medidas de austeridade fiscal e pelo conturbado contexto político recente no país, os quais também comprometeram iniciativas que estavam em curso para o desenvolvimento científico, tecnológico e do complexo industrial da saúde.

Nesse artigo, apresenta-se uma breve análise dos avanços e desafios do desenvolvimento da ciência e tecnologia associado a estruturação de sistemas de saúde em âmbito global e no Brasil desde a implementação do SUS. A partir da análise, aponta-se alguns desafios gerais - sem pretensão de esgotar um tema tão complexo e multifacetado - para o desenvolvimento da ciência e tecnologia da saúde e do SUS na próxima década.

Sistemas de saúde e ciência e tecnologia na saúde: avanços e desafios na saúde global.

Ao longo do século XX, a estruturação de sistemas de saúde, associada ao progresso científico e tecnológico na saúde, viabilizou a expansão da oferta de um amplo espectro de produtos e serviços de saúde para grandes contingentes populacionais. O maior acesso a vacinas, exames diagnósticos, medicamentos, dispositivos médicos entre outras tecnologias possibilitaram controlar doenças e aprimorar o manejo de condições crônicas.

Além disso, o melhor conhecimento científico sobre o processo saúde e doença e seus determinantes psicossociais e ambientais permitiu aprimorar o desenho de políticas públicas, a organização de programas de saúde coletiva e o funcionamento de serviços e sistemas de saúde. Como resultado, houve substantiva redução de mortes evitáveis, aumento da expectativa de vida populacional e melhoria na situação de saúde global.

Entretanto, os avanços tecnológicos adotados por sistemas de saúde tiveram seu custo, riscos e limites. Diferente de outros setores, na saúde uma nova tecnologia não substitui necessariamente a anterior e, em geral, agrega novos custos. Com isso, a incorporação de novas tecnologias é um dos fatores que levado os gastos em saúde terem crescido acima do crescimento do PIB dos países desde a segunda metade do século XX.

Além do custo, novas tecnologias em saúde requerem reconhecer e controlar eventuais riscos para saúde humana. Como resposta, muitos países implementaram mecanismos de regulação sanitária e do funcionamento do mercado de produtos e serviços de saúde. Nesse contexto, a Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) tornou-se estratégica para subsidiar países na tomada de decisões sobre a incorporação de insumos por seus sistemas de saúde a partir de critérios de segurança, eficácia, efetividade e custo-efetividade.

A inequidade, porém, é um dos principais limites do desenvolvimento científico e tecnológico e da estruturação de sistemas de saúde no mundo. Segundo relatório da Comissão da revista Lancet sobre tecnologias para a saúde global, a disponibilidade de tecnologias em saúde é inversamente relacionada às necessidades de saúde da população mundial.

Em países de alta renda os investimentos em ciência e tecnologia representam uma parcela importante dos gastos públicos. Esses países dispõem ecossistemas de pesquisa e inovação que articulam governos, universidades e empresas públicas e privadas. E seus sistemas de saúde fazem uso intensivo de tecnologia. De outro lado, países pobres são absolutamente dependentes de tecnologias e suas populações – que apresentam maiores problemas de saúde – carecem de insumos básicos para cuidados em saúde.

Em posição intermediaria, estão os países de média renda, os quais dispõe em geral de frágeis sistemas de seguridade social, sistemas de saúde fragmentados e segmentados, e baixo desenvolvimento científico, tecnológico e industrial. As inequidades no acesso a tecnologias em saude se manifestam a partir do nível de renda da população e de cobertura ofertada por subsistemas público e privado, que possuem distintas modalidades de financiamento e provisão de serviços de saúde.

A pandemia da Covid-19 trouxe novas ameaças e desafios, mas também abriu oportunidades para o desenvolvimento da ciência e tecnológica em saúde. Avanços no imunogenética permitiram produzir em tempo recorde vacinas contra a Covid-19. Além de vacinas, essa técnica poderá ser usada no tratamento do câncer e outras doenças.

A resposta a pandemia também acelerou a transformação digital em saúde. O registro eletrônico de dados, o telessaúde e o cruzamento de grandes bancos de dados devem ampliar a capacidade de análise de situação de saúde populacional, o acesso remoto a serviços, a comunicação entre equipes e a população, bem como a projeção da cenários epidemiológicos, oportunizando ganhos de eficiência na gestão em saúde.

Por outro lado, a pandemia também evidenciou a ameaça das fakenews para a saúde coletiva. Disseminada em larga escala por meio de redes sociais, a proliferação de informações sem base cientifica foi reportada por gestores de sistemas de saúde como um dos principais desafios que enfrentaram na resposta à Covid-19. Aperfeiçoar a comunicação científica junto a população também é um desafio para os sistemas de saúde modernizarem ações de saúde pública, incluindo programas de vacinação.

Por fim, a Covid-19 também realçou necessidade de os países disporem sistemas de saúde sustentáveis e resilientes do como elemento geopolítico estratégico. Dispor de capacidade tecnológica e industrial é essencial para garantir abastecimento de insumos de saude em situações em que as cadeias globais de produção se encontram saturadas. Do mesmo modo, a segurança sanitária de países dependerá cada vez mais de redes pesquisa para vigilância genômica para monitoramento e controle de patógenos potencialmente causadores de emergências saúde pública.

O SUS e a ciência e tecnologia na saúde: avanços e desafios

No Brasil, a universalização do direito à saúde integral definida pela Constituição Federal criou as bases legais para expansão da oferta de um amplo escopo de serviços e tecnologias em saúde à população brasileira. A Constituição também definiu que dentre as competências do SUS está incluída o incremento do desenvolvimento científico e tecnológico em saúde.
Desde então, a expansão de programas, serviços e produtos de saúde ofertados pelo SUS, associada ao aprimoramento da governança da regulação de tecnologias em saúde e a criação de políticas para o fomento a ciência e tecnologia em saúde trouxe importantes ganhos para o país. A produção cientifica em saude cresceu e atualmente representa 30% da produção cientifica brasileira. Porém, importantes fragilidades estruturais persistem, agravadas por políticas de austeridade fiscal adotadas nos últimos anos.

Com a implantação do SUS, a rede assistencial brasileira capilarizou-se pelo país por meio de incentivos financeiros federais e implementação por estados e, principalmente, municípios. A expansão da rede de serviços de Atenção Primária em Saúde (APS) e especializados modificou o modelo assistencial, melhorou a situação de saúde e reduziu desigualdades sociais. Evidências cientificas produzidas por estudos nacionais e internacionais tem contribuído para aperfeiçoar o modelo assistencial brasileiro.

Em paralelo, a regulação sanitária de tecnologias em saúde foi aprimorada após a criação da Agência Nacional de Vigilância em Saúde (ANVISA) no ano 2000. Do mesmo modo, a formulação de políticas e programas para ciência e tecnologia em saúde ganhou corpo após a estruturação da SCTIE (Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos) no Ministério da Saúde em 2003. A ATS também foi institucionalizada no SUS com a criação da CONITEC (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias) em 2012.

A combinação entre implantação do SUS, expansão de programas de saúde publica e avanços científicos e tecnológicos tem no Programa Nacional de Imunizações (PNI) um dos maiores exemplos de sucesso internacional. Ao todo, o PNI disponibiliza 45 tipos diferentes de imunobiológicos. Vacinações e campanhas realizadas, principalmente, por equipes de APS nos municípios garantiram um alcance de coberturas vacinais superior a 95% da população-alvo até o ano de 2016. E quase 75% das que é consumido de vacinas no país é abastecido por laboratórios públicos, sendo dois principais: Fiocruz e Butantan.

Na assistência farmacêutica, a relação nacional de medicamentos (RENAME) ofertados pelo SUS cresceu substancialmente, abrangendo medicamento básicos e especializados, de alto custo. Programas como o Farmácia Popular também ampliaram a oferta desses insumos para a população. Dessa maneira, o mercado nacional de medicamentos tornou-se um dos maiores do mundo. Em 2019, o faturamento industrial de medicamentos alcançou U$ 27,8 bilhões, comercializando 5,3 bilhões de embalagens.

No entanto, apesar do avanço no consumo, o país persiste dependente na produção de insumos farmacêuticos. Dados da Conta satélite de saúde do IBGE de 2019 mostram que o país importa cerca de 88,1% do que consome de produtos farmoquímicos. Esse índice já cai para 26,8% quando se trata de medicamentos prontos, para 23,7% para equipamentos de saúde e 31,2% para materiais de uso médico e odontológico. A dependência tecnologia se tornou evidente durante o período de pico da Covid-19, quando houve situações críticas de abastecimento de produtos básicos para a saúde.

Para reduzir a dependência tecnológica e atenuar o déficit na balança comercial na saúde, o Ministério da Saúde estabeleceu um sofisticado programa para o fomento do complexo industrial da saúde: as parceiras para o desenvolvimento produtivo (PDP). Nesta iniciativa, o poder de compra do SUS é usado para transferir de tecnologias entre laboratórios públicos e privados. O modelo foi destaque na produção de vacinas contra a Covid-19 no país, nas parcerias entre Butantan e Sinovac e a Fiocruz com a AstraZeneca.

Porém, um dos mais importantes desafios na estruturação do sistema de saúde brasileiro é inequidade no padrão de acesso e consumo de tecnologias em saúde. A semelhança de países de média renda, as inequidades se manifestam entre os setores público e privado que contam com distintas capacidades de financiamento e prestação de serviços. Além disso, a descentralização da gestão para municípios – com diferentes capacidades fiscal, técnica e administrativa – também produz grandes inequidades regionais no SUS.

Essas desigualdades ficaram mais evidentes durante a pandemia da Covid-19. Enquanto as regiões mais ricas do país dispunham de maior e melhor capacidade assistencial e tecnológica, principalmente no setor privado, as regiões mais pobres apresentavam carências de insumos básicos para saude. Dessa maneira, diferente de grande parte do mundo, as mortes pela Covid-19 se concentram em regiões com população mais idosa e com doenças crônicas, foram as desigualdades socioeconômicas que definiram o curso da pandemia no Brasil.

Os problemas de acesso a serviços e tecnologias em saúde, bem como fragilidades na definição de padrões tecnológicos tem levado o país a incorrer em gastos crescentes com demandas judiciais em saúde. Como a população com maior poder aquisitivo tem mais acesso ao judiciário, esse fenômeno contribui para ampliar as inequidades em saúde no país e pressionar ainda mais o orçamento bastante restrito do SUS no Brasil.

Desafios para o SUS na próxima década

A ciência e a tecnologia terão um papel crítico para a futura configuração dos sistemas de saúde. A adoção de inovações disruptivas, como a saúde digital e terapias gênicas, devem revolucionar práticas de cuidado e de saúde coletiva, bem como a gestão de sistemas de saúde num espaço curto de tempo. No entanto, em países com grandes desigualdades sociais como o Brasil, é preciso que a transformação tecnológica do sistema de saúde prevista para a próxima década tenha como objetivo explicito a redução de iniquidades, sob risco de ampliar diferenças entre padrões de assistência entre grupos populacionais.

Para tanto, é preciso que o SUS se torne o eixo articulador de um conjunto de políticas públicas – de saúde, de ciência, tecnologia e inovação e de desenvolvimento industrial na saúde – como parte de um projeto de crescimento econômico e superação das inequidades sociais e de saúde no país. Resgatar programas bem-sucedidos no SUS, aliado a retomada de investimentos em ciência e tecnologia e de fomento ao complexo industrial na saúde deve ser um primeiro passo. Porém, é preciso avançar mais na formulação de políticas e nos mecanismos de governança, regulação e financiamento de tecnologias em saúde.

O desenvolvimento científico e tecnológico em saúde deve estar atrelado a elaboração de políticas para conformação de modelos assistenciais no SUS. Criar suporte tecnológico para fortalecer a APS, tornando-a mais acessível, resolutiva e integrada em redes de atenção por meio de ferramentas de saúde digital deve uma das prioridades para a próxima década.

Da mesma forma, especial atenção deve ser dada ao desenho de inovações tecnológicas no modo de organização e prestação de serviços para abordar as principais necessidades e problemas de saúde da população. Entre as quais doenças infectocontagiosas, incluindo emergências de saúde pública e resistência antimicrobiana; problemas relacionados ao envelhecimento populacional, como o Câncer, doenças cardiovasculares e cuidados paliativos; bem como cuidados à saúde mental e às diversas formas de violência.

Além disso, num país com sistema de saúde universal, integral e com forte participação do setor privado é fundamental dispor de padrões tecnológicos nacional e regionais que considerem as principais necessidades de saúde da população. Nesse sentido, aperfeiçoar os mecanismos de avaliação de tecnologias em saúde para subsidiar a incorporação de novos produtos, bem como a regulação de preços de medicamentos e terapias de altíssimo custo, incorporar modelos de pagamento por valor e avaliar impactos das tecnologias adotadas na saúde da população são pontos críticos para o SUS na próxima década.

Por fim, num país em que o presidente da república foi um dos maiores disseminadores de fakenews durante a pandemia da Covid-19, aprimorar a comunicação científica, criar mecanismos de diálogo permanente com a população e inovar nas formas de participação da sociedade e controle do que é divulgado sobre saúde nas redes sociais também se apresentam com um dos desafios para a ciência e tecnologia no SUS na próxima década.


Adriano Massuda Médico sanitarista, professor da FGV/EAESP e pesquisador vinculado ao FGV-Saúde




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