Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 44 - Novembro 2022

Domingueira da Saúde

A Revista Eletrônica Domingueira da Saúde está publicando dez artigos (2.10 a 4.12) sobre O SUS NA PROXIMA DÉCADA, de diversos autores, contribuição para os debates eleitorais e futuras políticas públicas sanitárias.



O Sistema de Saúde na próxima década: o Modelo Assistencial

Por José Fernando Casquel Monti


Logo de início é indispensável que seja dito que nunca se fez tão necessária, após o advento do SUS, a revisão de vários de seus elementos. Este exame já seria uma rotina de política pública desejável, por terem se passados mais de 30 anos desde sua criação constitucional e legal. Mas, em nosso atual momento, outras condições impõem este caminho. O sistema de saúde tem passado pelo teste de estresse mais intenso que jamais lhe foi imposto. De um lado uma pandemia aterrorizante, que por si só trouxe enormes desafios. De outro, concomitante com ela, a mais sórdida trajetória de agressão aos elementos constituintes e aos fundamentos de nosso sistema de saúde, oriunda da própria gestão do Ministério da Saúde e, de forma geral, do atual governo ao qual se integra este Ministério. Os resultados que esse quadro produziu são terríveis e desafiadores, com impactos que vão da proteção vacinal da população à atenção especializada para resolver suas doenças crônicas mais graves e prevalentes. Não seria exagero dizer que, face ao quadro atual, atingimos um estado de “desatenção integral “.

Considerado nosso cenário atual, se faz necessária a reconstrução do sistema de saúde, do SUS, que não só se mostrou um bravo sobrevivente deste teste de estresse, como teve um papel inestimável durante a travessia da pandemia de COVID-19, que, diga-se, ainda persiste. Desde logo, se deve apresentar que tal reconstrução deverá respeitar os princípios fundantes do SUS, num processo de reconstrução centrado na reafirmação democrática e no reconhecimento da urgência que tem a nação brasileira de reduzir suas gritantes desigualdades.

Considerando a eleição de um novo governo no nível nacional e nos estados da federação, há toda pertinência em se pensar como conduzir e projetar uma área tão sensível e essencial como a saúde para os próximos 10 anos. Os desafios e elementos a considerar no sistema de saúde são enormes, mas se tratará aqui de um elemento central e que talvez anteceda o tratamento de outros componentes: o modelo assistencial.

Para que se possa compreender, vamos conceituar aqui o modelo assistencial como a forma de organizar a assistência à saúde, seus serviços correspondentes e as interfaces produtivas em seu interior.

É necessário, ainda, que para uma projeção do modelo para os próximos 10 anos, que se compreenda os aspectos históricos pelos quais transitou esta noção essencial. A transformação do modelo assistencial foi a pedra de toque da profunda reforma do sistema de saúde no Brasil, com o advento do SUS, a partir da Constituição Federal de 1988. Exatamente essa transformação nos tirou de um modelo discriminatório em vários sentidos, no qual saúde era encarada como um seguro ou bem material, para outro, que tinha a saúde como um direito dos indivíduos, da cidadania, que se corporificou nos princípios de universalidade, integralidade e equidade.

A garantia desses princípios ainda é um desafio ao sistema de saúde, mas, na concepção de um sistema que se reconstrua e se revise atendendo a um arcabouço democrático e que pretenda redução das desigualdades não há outro caminho, a não ser a preservação do Modelo Nacional e Público. Isto posto e definido o arcabouço geral desse modelo, pode-se considerar duas dimensões organizacionais do sistema de saúde para a definição de um mais amplo detalhamento do modelo: a operacional e a gerencial.

Do ponto de vista operacional não parece haver alternativa diferente ao fortalecimento da Atenção Básica, como é próprio dos sistemas universais de saúde no mundo. Neste particular, no futuro próximo, em que se presume a necessidade de priorizar ações face a restrições materiais, o centro da intervenção deverá ser a Atenção Básica como estratégia de reconstrução. Isto poderá atender à dimensão política, uma vez que a ação deste nível no território, de forma capilarizada, dará cobertura e distribuição equitativa e vínculo entre unidades e equipes de saúde e os indivíduos que serão foco dessa atenção. Na dimensão técnica poderá tornar realidade um conceito teórico de que os profissionais neste nível exerçam efetivamente a gestão e coordenação do cuidado. Nesta revisão, deveria ser produzido o processo por meio do qual todas as demais ações em outros níveis e unidades de uma rede hierarquizada se daria a partir das unidades básicas de saúde. É evidente que para isto se tornar realidade os investimentos em saúde deveriam ser dirigidos preferencialmente à atenção básica e, quando destinados a outros níveis, seriam coordenados por este nível. Significa dizer que ao mesmo tempo em que se produza soluções que serão destinadas aos serviços de maior complexidade, aos serviços especializados, aos serviços hospitalares e congêneres, estes deverão funcionar em arranjos coordenados pela atenção básica. O arcabouço de organização para um funcionamento nesse modelo ainda não está dado, mas poder-se-ia antever algo como conselhos compostos pelos próprios serviços, ampliando a função gerencial e de regulação desses níveis, o que garantiria a maior autonomia de quem opera os serviços de saúde em sua gestão.

Na dimensão gerencial no modelo de atenção, haverá muito a ser feito, tanto do ponto de vista da retomada, quanto da implantação de novos arranjos que deem conta da complexidade da gestão e operação interfederativa do sistema de saúde. Em amplo sentido, foi enfraquecido o pacto federativo na saúde e os fóruns interinstitucionais não têm o mesmo vigor de outrora. Será necessária uma revisão de atribuições e responsabilidades compartilhadas e a instalação de novos mecanismos de gestão compartilhada. Mas também aqui, não se trata apenas de reeditar o velho e o já conhecido. Precisamos da capacidade de criação de organizações interfederativas permanentes, que tenham ação no dia-a-dia operacional e não somente no processo decisório ao nível do planejamento. Nesse sentido, parece haver grande espaço para a ousadia de novas formulações de organizações públicas, como já foram há tempos consórcios e fundações públicas. Alguma fórmula deverá ser buscada para que seja possível a operação cotidiana de serviços e equipes de saúde de municípios associados e destes com as instâncias estaduais. A revisão derivada do mau momento em que estão mergulhadas tais possibilidades talvez nos traga solução para problemas que já eram presentes e nunca foram tratados com seriedade e compromisso de solução nos poderes públicos.

Antevendo simultaneamente as possibilidades de ações coletivas na organização e operação dos serviços de saúde, um exemplo ajuda a entender o que aqui se defende e salta como possibilidade: no atual governo houve uma reformulação do sistema de financiamento da atenção básica que foi uma homenagem ao gerencialismo e um desserviço à saúde da população. O Ministério, como agente financiador de parte da assistência, como é seu dever, passou a controlar os municípios pelo cadastramento de indivíduos e produção de serviços. É só um exemplo dos muitos que vimos ao longo da vida do SUS. Parece saudável que no futuro o Ministério da Saúde não se limite mais a ser um portfólio de iniciativas às quais os municípios podem aderir, mas possa ser uma instância parceira que participe de planejamentos singulares de territórios e populações na atenção à saúde. Da mesma forma, não deverá o futuro comportar a presença de governos estaduais com atuação disfuncional, ora abandonando, ora subjugando os seus municípios. Para criação desta rede de responsabilidade descentralizada serão necessárias sólidas organizações interfederativas, que tenham um arcabouço de atribuições, responsabilidade e direitos, que permitam essa ação conjugada. O próprio Ministério deverá se reformular para essa revisão qualitativa de sua participação no sistema de saúde.

Em resumo, o modelo de atenção que poderá dar conta de nosso futuro será saudável se unidades de saúde e instâncias de gestão tiverem a capacidade de produzir de forma integrada projetos singulares de sistemas, com base em territórios, populações e demandas a partir da atenção básica à saúde dessas localidades. Para isto vários condicionantes são necessários, sem os quais não é provável que o modelo se complete:

  1. Saúde se faz não só com ações específicas de saúde, como prevê a própria constituição federal. A atenção básica mencionada aqui necessita contemplar articulação intersetorial suficiente para otimizar o caminho da redução de desigualdades sociais.

  2. O principal valor do sistema de saúde são seus trabalhadores. É inadiável que se tenham carreiras públicas, multiprofissionais, que possam abranger as várias esferas de governo, num modelo integrado. Com a atual fragmentação é bastante improvável que os trabalhadores se reconheçam num sistema realmente único.

  3. Um novo modelo, especialmente no campo da atenção básica, deverá considerar e resolver o impacto deletério que traz a fragmentação produzida pela operação deste nível de atenção por instâncias privadas do terceiro setor.

  4. Tarda muito a produção de soluções integradas de informação e tecnologia digital, que sejam disponíveis a todo o sistema de saúde, de maneira articulada entre os entes federados. Não parece razoável que se imagine a operação de um sistema tão complexo como o SUS sem um sólido sistema de informações, como tem ocorrido até aqui.

  5. O modelo de atenção deverá incorporar as novas e emergentes ferramentas de atenção à saúde, como, por exemplo, as várias modalidades de telemedicina, que poderão promover grande impacto na qualidade dos serviços.

  6. Há níveis críticos de financiamento e certamente haverá necessidade de priorização. Nisto, deverá ser encarada com coragem a prioridade à atenção básica.
    O SUS foi criado e implantado com coragem, trazendo um novo paradigma, que significou mais saúde à nossa gente e um novo marco civilizatório, com direitos de cidadania e inclusão. Representou um novo e exitoso modelo de atenção. Sobreviveu até aqui aos ataques e mostrou sua enorme importância à nossa gente. Seu futuro dependerá de nossa capacidade de reinvenção, sem transgredir seus princípios já fundados. Como já disse meu amigo Gonzalo Vecina Neto: “sem o SUS é a barbárie”. Nos resta a obrigação de preservá-lo e dele cuidar.


José Fernando Casquel Monti. Médico Sanitarista, Professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e do Centro Universitário Max Planck (UniMAX), foi secretário municipal de saúde de Bauru, presidente do COSEMS-SP e do CONASEMS.




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