Apresentação
A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.
Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos
Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado
ISSN 2525-8583
Domingueira Nº 46 - Novembro 2020
Índice
- Boletim Cofin/CNS 2020/11/04 - por Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke
- Um debate sobre os vínculos de trabalho no setor público - por Valéria Salgado
Boletim Cofin/CNS 2020/11/04
Por Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke
Francisco R. Funcia, Mestre em Economia Política pela PUCSP, Professor e Coordenador-Adjunto do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS e Consultor Técnico do Conselho Nacional de Saúde.
Rodrigo Benevides, Economista (UFRJ) e mestre em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ.
Carlos Ocké, Economista e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde - ABrES.
Um debate sobre os vínculos de trabalho no setor público
Por Valéria Salgado
A discussão sobre os vínculos de trabalho praticados no SUS tem sido tema recorrente, com posição de destaque na pauta dos gestores públicos da saúde, especialmente porque esse é um setor onde a gestão de pessoas tem natureza ainda mais estratégica por se intensivo em mão-de-obra, onde o agente público, prestador do serviço, é o vetor direto que gera valor para o cidadão.
Recentemente, a importância dos profissionais da saúde ficou mais clara para a população, durante a pandemia da COVID19, na qual, em situação de vida e morte, o compromisso e o profissionalismo dos trabalhadores do SUS, no enfretamento do quadro de calamidade pública, ficou evidenciado, tendo borbulhado, por todo o país justas homenagens a esses trabalhadores.
Digo borbulhado homenagens porque, efêmeras. Prova disso é que em setembro deste ano, ainda no quadro da pandemia em que vivemos, o Governo Federal lançou proposta de reforma administrativa, de revisão do texto constitucional, centrada no enxugamento da máquina e na revisão das formas de relação de trabalho na administração pública, com foco, exatamente, nas atividades de prestação de serviços públicos à população, não inseridas, salvo melhor juízo, nas ditas atividades típicas de estado.
Mas antes de entrar nessa polêmica, é importante esclarecer que, no setor público brasileiro, já temos, ao amparo da Constituição de 1988, quatro regimes diferenciados de trabalho e não um regime jurídico único. Aliás, podemos falar de regime jurídico único apenas no setor privado, que é o regime geral do trabalhador brasileiro, regido pela CLT.
No setor público temos o servidor estatuário, investido em cargo efetivo, regido por legislação especial e dotado de benefícios e deveres de direito público, dentre eles a estabilidade; e temos, também o empregado público, regido pelas leis trabalhistas, observadas derrogações de direito público, tais como a investidura por concurso, a proibição da acumulação de empregos, a limitação remuneratória a teto, dentre outras.
Esses dois vínculos de trabalho com o setor público estão estruturados com mecanismos que visam garantir o interesse público, no exercício das suas atribuições e também assegurar benefícios e proteções ao trabalhador. Podemos dizer que entre eles, não há melhor regime ou regime mais seguro. Há regime mais ou menos adequado para a área de atividade estatal.
É bom lembrar que, no setor público, o modelo das relações de trabalho deve atender sempre e diretamente, ao interesse da sociedade. Assim, o regime estatutário deve ser aplicado sempre que a realização da atividade ou serviço público, sob o regime geral dos trabalhadores brasileiros, possa representar risco ao interesse público, ao interesse do cidadão. Porque só faz sentido haver um regime jurídico próprio para os servidores públicos, diferenciado do regime da massa de trabalhadores - dotado da estabilidade e de regras próprias - se esse regime estiver tiver como objetivo assegurar qualidades e seguranças especiais para os cidadãos, deles usuários.
É, portanto, na garantia da supremacia do interesse público, especialmente no exercício de poderes privativos de Estado, que se justifica o vínculo estatutário.
Um vínculo que exige do servidor a renúncia à exploração privada de suas competências e à possibilidade de múltiplas ocupações e relações de emprego e que, em contrapartida oferece a estabilidade - uma blindagem adicional à manipulação política dos poderes de estado dos quais é investido.
Os outros dois regimes existentes são o do servidor sem vínculo com cargo em comissão e o do contratado por tempo determinado, que não se confundem com os dois primeiros. São vínculos de trabalho não permanentes, cujo uso deve se restringir ao exercício de funções de direção e assessoramento e aos casos excepcionais e situações temporárias e emergenciais. Ambos constituem formas precarizadas de relações de trabalho por não contemplarem garantias ao trabalhador como as previstas no regime estatuário do servidor de cargo efetivo e no regime celetista público.
É preciso, ainda, fazer referência ao regime celetista psicodélico dos agentes comunitários de saúde e dos agentes de combate de endemias – que combina o regime celetista, com regras típicas de cargos públicos, como a observância de normas especiais fixadas em lei, inclusive no que tange a um piso salarial nacional. Além disso, esses agentes são providos por processo seletivo público e não pelo concurso previsto no inciso II do art. 37 da Constituição - muito embora a Constituição não explicite a diferença entre processo seletivo público e concurso.
Assim, é apenas no setor privado que temos o que verdadeiramente podemos chamar de regime jurídico único de trabalho. O celetista.
Voltando à proposta de reforma constitucional encaminhada pelo Governo ao Congresso, a PEC 32, destaca-se que ela está centrada, fundamentalmente, na revisão dos vínculos de trabalho atualmente praticados no setor. A PEC 32 atribui aos atuais vínculos do funcionalismo a culpa pelo que denominou de duplo colapso – o colapso na prestação de serviços à população e no orçamento público.
De acordo com a exposição de motivos que acompanhou a PEC, esse duplo colapso é resultado da estrutura complexa e pouco flexível do modelo de gestão de pessoas do serviço público, que dificulta a adaptação e a implantação de soluções rápidas. Considerou, portanto, que, para entregar serviços de qualidade para a população, seria preciso, especialmente, rever as relações de trabalho estabelecidas com a burocracia pública.
Nas propostas apresentadas na PEC 32, a grande novidade é a previsão de um modelo de cargo efetivo sem a estabilidade hoje garantida pela Constituição.
Uma espécie de subcategoria de cargo público. Um cargo público de segunda linha, de segunda classe.
Os cargos estáveis seriam reservados às atividades consideradas típicas de estado, normalmente de funções endógenas, administrativas ou coercitivas tais como as funções exercidas pelos auditores da receita, procuradores, advogados públicos, diplomatas.
Os demais servidores públicos, incluídos os prestadores de serviços sociais, como a saúde pública, seriam providos em cargos por prazo indeterminado, sem estabilidade e sem as garantias constitucionalmente asseguradas no regime trabalhista, como o FGTS.
Percebe-se, na proposta, uma visão míope dos vínculos profissionais que, à luz da Constituição vigente, já são possíveis e praticados no setor público. Uma miopia que se estende sobre o próprio entendimento da natureza do cargo público e da sua estabilidade e da aplicação do regime jurídico trabalhista na área pública.
Ao propor um novo vínculo dentro do setor público –sem estabilidade e, salvo melhor juízo, sem as garantias do emprego público – não estaria o governo propondo uma precarização das relações de trabalho, como já fez, no setor privado? Isso quando ampliou o conceito do microempreendedor individual e - na falácia do sonho de ser seu próprio empresário - conduziu milhares de trabalhadores para uma situação de total desproteção trabalhista e previdenciária, sem direito a férias, a descanso remunerado, a licenças saúde, a FGTS? Será que as garantias dadas ao trabalhador são as grandes vilãs dos entraves ao desenvolvimento social e econômico do País? É o trabalhador o elemento inibidor do desenvolvimento?
Esses e outros temas sobre as relações de trabalho no setor público e, especialmente, na saúde pública impõem-se na agenda e merecem discussões mais aprofundadas. Juntem-se, a elas, o tema da terceirização de pessoal, crescente na saúde e a dúvida sobre a constitucionalidade da pejotização no setor público de saúde.
O momento para debater essas questões é agora, quando o Governo abriu a pauta de discussões, ao encaminhar a proposta de reforma constitucional.
A concretização do ideal de uma saúde pública, universal e igualitária para todos também está relacionada com a capacidade do Setor Público de atrair e reter um quadro de profissionais capacitados e comprometidos e, portanto, depende da segurança jurídica e da qualidade das relações de trabalho assegurada aos trabalhadores do SUS.
Valéria Salgado, Diretora Regional do IDISA, da Região Centro-Oeste, é pós-graduada em Direito Sanitário pelo IDISA/IEP e em Gestão Pública e Qualidade em Serviços - UFBA. Servidora federal aposentada e atua como consultora na área de gestão pública.