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19/Jan/2021

Associação de medicina rechaça “tratamento precoce” contra covid-19: “única prevenção é a vacina”

Eleito novo presidente da AMB na chapa de oposição, César Eduardo Fernandes promete mudança de postura, critica caos em Manaus e diz que médicos no SUS não são valorizados

As últimas semanas foram nada menos do que intensas na Associação Médica Brasileira (AMB). Demandada como nunca em meio à pandemia e cenas de terror como as vistas em Manaus, a entidade que representa a classe médica no Brasil acaba ainda de eleger uma nova diretoria, que tomou posse há uma semana.

A vitória foi da chapa de oposição, que teve mais de 60% dos votos. Reflexo dos debates que tomaram conta da comunidade médica durante a pandemia. Desde a explosão do coronavírus no Brasil, a AMB, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e outras organizações médicas têm sido cobradas a pressionar o poder público por ações mais incisivas no combate à covid-19 e em defesa dos profissionais na linha de frente. Na outra ponta, as entidades têm evitado se posicionar abertamente.

Fundada em 1951 e a segunda maior associação médica das Américas, a AMB tem assento no CFM e em outras organizações da área, além de interlocução junto aos órgãos públicos. Falando à EXAME após tomar posse e uma segunda vez para comentar os desdobramentos em Manaus, o novo presidente da AMB, Dr. César Eduardo Fernandes, diz que a nova gestão será mais ativa e irá se pronunciar “com base na ciência”. “Se a AMB se omitiu em tempos anteriores, não se omitirá mais”, diz.

Sem citar governantes específicos, Fernandes criticou a falta de unidade no discurso das autoridades, defendeu a vacinação e disse que não há por ora embasamento científico para tratamentos preventivos contra a covid-19 — alguns, como a cloroquina ou ivermectina, defendidos pelo Ministério da Saúde. “Como voz dos médicos do Brasil, vamos cobrar com toda ênfase para que se pare com esse discurso, com questões ideológicas, com alternativas de tratamento que não se sustentam.” Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Como o senhor e a AMB veem a tragédia acontecendo em Manaus? A associação pretende tomar alguma medida nessa frente?

Essa situação em Manaus é inclassificável, inaceitável, é uma tragédia daquelas que a gente não consegue entender como ela acontece. Certamente, os responsáveis são os gestores de saúde pública de todas as esferas, municipais, estaduais, e o governo federal. Por não terem previsto que as coisas poderiam caminhar por onde estão caminhando. Nossa proposta é de cobrança, de que se pare com discurso e de que se atue rapidamente.

O que precisaria ser feito?

Não é exportando paciente para outros estados que vai se resolver o problema. O governo tem de colocar em prática sua expertise, fazer hospitais de campanha, levar insumos, o que for necessário. Temos médicos oxigenando pacientes com equipamento manual, a situação é calamitosa. Pedimos medidas efetivas. Como voz dos médicos do Brasil, vamos cobrar com toda ênfase para que se pare com esse discurso, com questões ideológicas, com alternativas de tratamento que não se sustentam. Temos de atender a população. A única medida preventiva que existe é a vacina. Não tem tratamento precoce. Existem remédios úteis, corticoides, anticoagulantes, mas para pacientes que já têm grave comprometimento respiratório. Todas as demais alternativas não são revestidas das melhores evidências de eficácia. Não podemos ser levianos em sugerir isso agora.

Uma preocupação é que as cenas vistas em Manaus se espalhem para o resto do país, sobretudo diante da nova cepa do coronavírus. A AMB defende alguma medida preventiva para outros lugares, como a decisão por quarentenas mais rigorosas?

Tem de haver uma sinergia, todas as esferas falando a mesma língua. Lembrando que o distanciamento social, as medidas de higiene, são mais importantes agora do que eram no início. Acho que tem de haver distanciamento social, restrições de aglomeração, os governos têm esses números para monitorar, para decidir qual momento é de área vermelha, verde, tomar as medidas necessárias. A razão principal é evitar o esgotamento da capacidade hospitalar. Lá no Amazonas, chegamos ao ponto de pessoas morrendo em casa. É o pior cenário que poderíamos imaginar. E não há nada que garanta que isso não vá se repetir nos outros estados. As medidas corretas, enquanto não temos as vacinas, já sabemos quais são. É fundamental que se pratique isso ao extremo. O vírus não desapareceu.

O senhor falou sobre uma sinergia nas ações das esferas de governo. As diferenças em discurso entre governos federal e estaduais atrapalham o trabalho dos médicos?

Estamos tendo mortes que poderiam ser prevenidas, e temos de evitar isso. As autoridades, todas elas. Independentemente de qualquer posição partidária. Essas não são questões ideológicas. Aqui não quero falar de A, B ou C, veja que não estou citando nome de nenhum político. O que temos de preponderar é o interesse da população. Tem de fazer uma força tarefa para que todos, mesmo os que são adversários, se unam em prol da população.

Existe uma leitura em parte da comunidade médica de que as organizações do setor não se posicionam de forma incisiva durante a pandemia, que não há cobrança para melhorar a situação dos médicos na linha de frente. Como o senhor avalia essas críticas?

Eu concordo inteiramente com quem faz essa leitura. A nossa posição é de tornar a AMB um ente político. Isso não significa ente partidário ou ideológico. Mas ela é um ente político, tem de falar politicamente. O problema hoje no país é que quando você emite uma posição política, te colocam como pró-governo, contra governo. Não somos nem a favor nem contra o Bolsonaro ou qualquer outro. Vamos emitir posições com independência.

Vamos pautar nossas posições oficiais com base na ciência. Se a AMB se omitiu em tempos anteriores, não se omitirá mais. Mas com muito cuidado, porque o país está dividido. Somos obrigados a dialogar com as autoridades, mas não estamos aqui nem para agradar, nem para fazer críticas gratuitas a ninguém.

Há médicos que pontuam nas redes sociais que a comunidade está “rachada” e sem um posicionamento único em questões que deveriam ser consenso, como a vacinação. Por que, em sua opinião, há essa divisão?

Há várias linhas de pensamento dentro de toda instituição. Nossa chapa foi eleita com imensa maioria dos votos, mais de 60% dos votos médicos. Os médicos querem mudanças. Acho que temos de nos posicionar contra aquilo que não nos parece correto. Se autoridades governamentais falarem contra a vacina, isso é uma irresponsabilidade. E vamos estar vigilantes, quem quer seja. É uma ignorância inaceitável. Há doenças que desapareceram graças à vacinação. Muitos não devem lembrar o que era a poliomelite, era um medo de muitas mães. Acometia muita gente na década de 50. Era uma tragédia humana, e a vacinação foi um ganho da população brasileira. O nosso Zé Gotinha acabou com a poliomelite, e o mesmo vai acontecer com a covid. Talvez deveriam criar um “Zé Coroninha”.

Ainda sobre a vacina, como o senhor mencionou, há uma grande divisão e o tema foi politizado. Qual é a expectativa da AMB sobre a vacinação, uma vez que vai impactar imensamente os médicos na linha de frente?

Hoje o que acontece é o seguinte: houve no país um momento de impeachment da presidente, mensalão, petrolão, e aí os brasileiros que sempre foram interessados em futebol, de repente não sabiam mais a escalação da seleção, mas sabiam o nome de todos os juízes do STF [Supremo Tribunal Federal]. Agora, todo brasileiro virou expert em vacina. Você nunca perguntou qual era a eficácia da vacina da polio. Ela era 100%? Nunca. Mas hoje há críticas à vacina como se todos fossem experts.

Ainda que tenhamos um programa bem estruturado como o PNI [Programa Nacional de Imunizações, criado em 1973], vacinar uma população gigantesca como a nossa não se faz da noite para o dia. É importante que a vacinação comece o mais rápido possível. Quando a Anvisa liberar, quero que meu braço seja o primeiro a ser vacinado, não tenho problema nenhum com isso. O que posso dizer como presidente da AMB é: vacina já. Tomem as vacinas. Se algum governante tiver alguma impropriedade na sua fala, ignorem.

Como mostram informações da base de dados do SUS, o número de cirurgias, exames e outros procedimentos não relacionados ao coronavírus foram muito menores em 2020. Esse represamento na saúde o preocupa para o futuro?

Estamos, é claro, todos focados na pandemia. Mas esquecemos que a saúde continuou como sempre. As pessoas continuam tendo doença cardíaca, câncer, doenças metabólicas. Nos próximos anos, esse represamento vai ser aberto, e temo pela falta de recurso para atender a população. A AMB está preparando um documento sobre o tema que será divulgado nos próximos meses.

O senhor vê uma maior valorização da saúde no Brasil acontecendo depois da pandemia?

A população tem nos tratado muito bem, nos tratado como heróis. Nós perdemos muitos profissionais, junto com os demais profissionais de saúde, enfermeiros, atendentes de enfermagem, as pessoas que cuidam da limpeza, dos serviços básicos. A gente esquece dessas pessoas. Esse pessoal também é reconhecido pelo governo de forma muito ruim. Acho que esse é o momento para que se entenda que saúde é uma das principais prioridades de uma população, mas ela vem sendo sucateada. Nós temos de lutar pelo SUS, é um patrimônio dos brasileiros.

O que precisa evoluir na valorização dos profissionais, sobretudo no SUS?

Os médicos estão tendo sua profissão precarizada, em dez anos mais do que duplicou o número de escolas médicas. E os médicos seguem todos concentrados nos grandes centros. E por que não vão aos centros menores, onde poderiam ser extremamente úteis? Porque precisamos de uma carreira de Estado, que permita ao médico se dedicar integralmente.

O juiz, o promotor, não trabalham no Estado de dia e em outro lugar à noite. Eles vão para lugares mais distantes porque não são contratados em contrato precário, conseguem sustentar sua família. O médico, não. Fizeram o Mais Médicos, mas médicos qualificados não se inscreveram, só os que estavam em momento de maior dificuldade. Porque aquilo não era uma carreira. Um médico do SUS deveria ter condições de educação continuada, um número de hora de trabalho digno, número de contratações suficientes. O que falo pode soar corporativista, mas quem ganha é a população.

Ter mais médicos se formando não ajudaria o déficit de profissionais no país?

Eu não sei se a gente precisa de mais médicos, precisamos de realocação de médicos. Tem de colocar médicos onde a população está. Dizem que médicos só querem morar em São Paulo, no Rio de Janeiro. Mas tem de oferecer carreira. A impressão que tenho é que querem jogar no colo do médico uma responsabilidade que não é dele, é do governo e do gestor de saúde. Antes o governo criou o Mais Médicos, agora quer aumentar o número de especialistas [sem exame que comprove as habilidades]. A população não pode comprar isso como algo bom.

A contratação de pessoal e as carreiras no Estado vêm sendo um dos temas da reforma administrativa em discussão no Congresso, o que, na teoria, vai na contramão do que o senhor disse sobre médicos de Estado. O senhor avalia que a reforma pode ser prejudicial à classe médica?

Não sou especialista em gestão pública, então não posso falar sobre o que deveria ser feito. Só posso falar pela saúde. E ela está debilitada. Eu vejo certas coisas que me parecem não ser de bom senso: agora, por exemplo, o governo contingenciou verbas pra saúde e liberou verbas com finalidade militar. Alguém pode achar leviano o que estou falando. Pode até ser. Mas olhando como cidadãos, temos de estabelecer prioridades. Não tenho nenhuma filiação partidária, não tenho nenhum viés ideológico. Minha bandeira é uma só: a do bom exercício da medicina. Não me interessa quem vai ser o presidente daqui a dois anos, torço sempre para termos os melhores governantes possíveis, mas posso falar que a saúde vive um péssimo momento.


Fonte: Notícia publicada no site Exame em 17 de janeiro de 2021.