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25/Fev/2021

Desvincular receitas que garantem o mínimo na saúde e na educação é inconstitucional

Intensa judicialização da saúde, com milhões de ações judiciais, é um exemplo fiel do seu subfinanciamento.


Vacinação / Crédito: Ingrid Anne/Semcom

Desvincular recursos mínimos da saúde e da educação, conforme propõe o relator da PEC 186/2019, é medida inconstitucional. Saúde e educação são direitos fundamentais protegidos constitucionalmente contra qualquer forma de retrocesso e nada se afigura tão fortemente como retrocesso do que a afetação de seu custeio mínimo.

A própria Constituição (artigo 167, IV), ao excepcionalizar ambas as áreas da vedação de vincular receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, lhes permitiu a garantia original de valores mínimos como medida protetiva a lastrear a sua efetividade.

Na educação, vinculou-se recursos mínimos de impostos à sua sustentabilidade, artigo 212; na saúde, o artigo 55 do ADCT, originalmente, garantiu-lhe 30% dos recursos da seguridade social, até a edição da primeira LDO que deveria observar tal premissa constitucional, sem retroceder. Tudo isso a confirmar a fundamentalidade dos direitos à saúde e à educação, essenciais à garantia da vida e do desenvolvimento do país e, em sendo direitos prestacionais que custam ao erário público, a garantia de recursos mínimos é medida de garantia à sua efetividade, que se agrega ao seu núcleo essencial, integrando-o. Direitos sociais exigem ação positiva do Estado e isso tem custo, daí ser imperativa a garantia de recursos.

Em que pese a determinação constitucional de assegurar minimamente 30% do orçamento da seguridade social para o custeio da saúde, em 1998, a EC 20, ao segregar para a previdência social grande parte das contribuições sociais da seguridade social, diminuiu os recursos mínimos da saúde, não compensados por outras fontes, o que ensejou a edição da EC 29, em 2000 (alterada em 2015 pela EC 86), que vinculou receitas para o custeio mínimo da saúde, refazendo a proteção orçamentária do direito abalada pela EC 20 em razão da segregação de fontes para a previdência social.

Direito fundamental protegido pela rigidez do artigo 60, § 4º, que veta a abolição de determinadas cláusulas por emenda constitucional, não admite de modo oblíquo ou indireto, a sua supressão, como ora se pretende pelo manto da desvinculação de recursos de custeio mínimo da saúde e educação, sob o falso pretexto de maior eficiência do gasto, sabendo-se desde sempre que isso significará a morte fática dos direitos, pois, retirar a sua proteção orçamentária-financeira é uma forma de transgressão constitucional a afetar a realização de direitos.

Direito social não produz efeito sem recursos financeiros mínimos para a sua manutenção; não há direito no mundo real sem financiamento e, como diz Bobbio,[2] não basta proclamar direitos, é preciso que eles sejam desfrutados efetivamente.

Que fique claro que dentre as cláusulas pétreas do artigo 60, § 4°, as do inciso IV garantem direitos e garantias individuais, incluídos os direitos sociais, reconhecidos como fundamentais pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Sendo saúde e educação direitos pétreos não sujeitos à supressão sob nenhum pretexto, normas de garantia de recursos para a sua realização tem a mesma estirpe e rigidez por integrar o núcleo essencial do direito.

Sem custeio adequado e vias transversas se abolirá o direito à saúde, sem o excluir da Constituição para apenas proclamá-lo sem usufrui-lo, modo cínico de transgressão constitucional. Normas, que dão sustentabilidade financeira aos direitos à saúde e à educação, são geneticamente pétreas por essenciais à sua efetividade. Desvincular, pois, receitas destinadas ao seu custeio adequado se configurara violação ao disposto no artigo 60, § 4°, IV, da Constituição.

Além do mais, a vinculação de receitas diz respeito ao piso mínimo da saude, recursos quase sempre insuficientes, o que enseja o seu subfinanciamento há 32 anos, agravado a partir pela EC 95 que ao congelar o gasto público por 20 anos, mantem os valores que sustentam a saúde pública ao nível de 2017, corrigido apenas pela inflação.

A intensa judicialização da saúde, com milhões de ações judiciais, é um exemplo fiel do seu subfinanciamento. Tanto é subfinanciada a saúde que o seu piso mínimo municipal, 15% de suas receitas, vem exigindo ao longo do tempo, acréscimos de recursos, estando hoje na faixa de 25% das receitas municipais, o que em 2019 significou 31 bilhões, além dos valores do piso municipal. A abolição de tal piso, ou a união de ambos, imporá perdas a uma das áreas, pois ambas são subfinanciadas e poderá ensejar luta fraticida entre dois direitos fundamentais.

Aprovar a desvinculação constitucional de receitas mínimas para o financiamento da saúde é asfixiar o direito consagrado nos artigos 6° e 196 da Constituição, violando a proteção pétrea de direitos fundamentais. Ao garantir perenidade ao direito à saúde, a Constituição contaminou as normas orçamentárias de garantia de sua efetividade da mesma qualidade. Assim, a garantia de recursos mínimos para a saúde não pode ser alterada por compor o núcleo essencial do direito, sob pena de se ferir a Constituição.

E, por fim, não poderia deixar de comentar que um acordo que a pretexto de conceder auxilio emergencial, por três meses, para as pessoas sem renda por outro lado retira-lhes direitos fundamentais de modo permanente ao abolir a proteção orçamentária que dá efetividade. Afora o momento ser absolutamente inadequado para tal discussão, revelando cabal falta de sensibilidade política ou esperteza cínica propor a desvinculação de recursos mínimos para a assegurar a saúde quando o país vive o luto pela morte de mais de 250 mil pessoas pela Covid-19.


[2] Bobbio, N. A Era dos Direitos. Editora Campus, 1992.


LENIR SANTOS, Advogada, doutora em saúde pública pela Unicamp, professora colaboradora do Departamento Saúde Coletiva da Unicamp e Presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA).


Fonte: Notícia publicada no site Jota em 25 de fevereiro de 2021.