Endereço: Rua José Antônio Marinho, 450
Barão Geraldo - Campinas, São Paulo - Brasil
Cep: 13084-783
Fone: +55 19 3289-5751
Email: idisa@idisa.org.br
Adicionar aos Favoritos | Indique esta Página

Entrar agora no IDISA online

“MAIS MÉDICOS”: MAIS? DO MESMO?

 
FLAVIO GOULART
 
O programa Mais Médicos, do Governo Federal, está na ordem do dia. Seus primeiros resultados, mostrando preenchimento de apenas 6% das vagas disponíveis e assim mesmo em municípios que já possuíam médicos e que não se situam entre os que apresentam índices de desenvolvimento mais baixos, não parecem muito convincentes. O salário oferecido, embora bem maior do que o da maioria da população de trabalhadores no país, ainda é bastante inferior, em pelo menos 50%, em relação àquilo que um médico jovem e bem disposto (e alguns menos jovens e menos dispostos também...) conseguem auferir à custa de plantões sucessivos e de empregos pulverizados, principalmente nas grandes e médias cidades do país. Realmente parece um fracasso de público e de crítica, mas ressalve-se, é claro, o eterno otimismo das autoridades da Esplanada.
 
Mas não é isso que conta, na verdade. O problema está, também, nos argumentos que são oferecidos, através da imprensa, das redes sociais e da comunicação oficial, para explicar a necessidade, o sucesso ou o fracasso de tal iniciativa.
 
Em primeiro lugar, vamos combinar: faltam médicos no Brasil, realmente. Mas uma pergunta que não quer se calar diz respeito à quantidade versus a qualidade dos que estão no cenário. É bom tentar responder a tal quesito verdadeiramente “diabólico”, mas vamos deixar para o final.
 
Os argumentos, ah, os argumentos... Podemos classificá-los em três porções. Há os simplistas, os corporativistas e os partidaristas. Só não há, ou isso se apresenta em doses muito pequenas, argumentos realistas.
 
Exemplo típico de argumento simplista é aquele professado pelos prefeitos municipais. Eles querem “mais médicos” e ponto! Mais muitos desconversam se o assunto descamba para tópicos como concurso público, carreira, condições de trabalho, formação de equipes etc. Fogem de tal discussão, mas em contrapartida aderem e aprovam com ardor algumas ações tradicionais no meio político brasileiro, por exemplo, a compra de ambulâncias, as inaugurações precipitadas e a abertura de serviços especializados, sem maiores preocupações com a manutenção e a continuidade dos mesmos. Querem, com certeza, mais médicos, mas que estes se lhes tornem agradecidos pela benesse do emprego público municipal oferecido, geralmente sem concurso, e que a retribuam de forma adequada quando chegarem as eleições... Depois reclamam que os doutores são muito exigentes e vivem mudando de emprego e de cidade.
 
Outro argumento simplista, para não dizer simplório é aquele emanado (e muitas vezes filtrado por determinados interesses) da opinião pública, ou do senso comum, melhor dizendo. Este, entretanto, diferente daquele dos políticos, tem base mais legítima. O povo quer mais médicos mesmo, justamente porque tem enormes dificuldades de acesso a tal benefício. Mas, em contrapartida, muitas vezes enxerga na vinda destes profissionais nada mais do que a possibilidade de que um velho regime de práticas seja devidamente ativado e incrementado. Por exemplo, daquelas práticas de pedir exames e fazer encaminhamentos “sem mais”; de atender rapidamente e com alta produtividade; de receitar remédios realmente “bons”, comprados na farmácia, sem aquela lenga-lenga de ficar falando em dieta, exercícios, chazinhos de quintal, banhos de assento e coisas assim. Como ouvi de uma paciente, há alguns anos, a respeito da implantação recente da Saúde da Família em seu bairro: “gostei não seu moço; eles ‘ispicula’ demais da vida da gente”...
 
No campo corporativo, os argumentos se acumulam ad nauseam: “ninguém foi consultado sobre isso; é preciso dar oportunidade aos médicos brasileiros; faltam condições de trabalho (não muito bem definidas); os salários não compensam; é preciso respeitar o direito de trabalhar onde se quer; os médicos que virão de fora são mal formados; a autonomia profissional é sagrada; a especialização é necessária”, entre outros, da mesma extração. Podem até serem legítimos, alguns deles, mas a resposta que oferecem (quando o fazem...) às iniciativas governamentais, como é o caso do programa “Mais Médicos”, é de uma mediocridade e de uma alienação de doer... Querem que se ofereçam condições, salários, equipamentos, lei do Ato Médico e tudo mais que se pode desejar. Mas são incapazes de uma só palavra que contemple os interesses de quem não usa jaleco e está do outro lado da mesinha do consultório. Assim, por exemplo: existiria alguma preocupação com mais compromisso com saúde do cidadão; com melhoria de indicadores; com responsabilização; com humanização no trato com as pessoas; com mais resolutividade, menos solicitações de exames e menos dependência tecnológica e farmacológica; com trabalho em equipe? Nem pensar... O modelo que aí está já deve ser satisfatório, na visão da corporação. Afinal, basta aumentar os salários e melhorar o campo de trabalho para os médicos que tudo se resolve.
 
Bom exemplo do argumento corporativista é aquele perpetrado recentemente por um alto dirigente da categoria: que a vinda dos médicos cubanos não era bem vinda porque a formação destes deixaria a desejar, sendo, além do mais, muito focalizada no generalismo, com pequena ênfase na especialização. Mas e aquela que é praticada no Brasil, seu doutor, lhe é bem vinda, seria desejável, viria ao encontro de nossos problemas reais? Aguarda-se uma resposta...
 
Tem também o argumento partisan, ou partidartista. Ele é bem conhecido também e pode ser traduzido pelas máximas que sempre se iniciam pela histórica frase “nunca dantes neste país...”. Ah, a lógica militante... Ela simplesmente divide o mundo em pedaços e, a partir daí, confunde “o mundo”, em sua totalidade, com cada “pedacinho” que se cria a partir dele. Tal lógica, também, não costuma admitir meios-termos, funcionando muito na base do preto no branco e “oito ou oitenta”. Não costuma ver, ainda, o outro lado que existe em quase tudo que seja obra humana, apesar de exemplos históricos que saltam à vista. Aliás, “história”, para os militantes típicos, é algo que deve ser considerado apenas se mostrar argumentos favoráveis àquilo pelo que se milita; caso contrário, passa por mero produto de manipulação de militantes contrários ou, de forma mais genérica, “deles”, dos “outros” – entidades míticas demonizadas no mundo militante.
 
Assim é que as autoridades da Saúde, do alto do Blogo G da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, acreditam que o atendimento, no programa que ora acalentam com ardor militante, a apenas seis por cento das vagas e a falta de cobertura a municípios pobres e sem médicos é coisa normal. Ou melhor, representam apenas uma primeira etapa de um processo que acabará nos levar a um mundo glorioso. “Penso logo existe, parece ser a palavra de ordem (mais uma das inúmeras palavras de ordem do mundo militante) que move essas pessoas.
 
No meio de tanta insensatez, já é hora de convocar argumentos mais apoiados pela realidade. É o que tentarei fazer agora, voltando ao ponto de partida: mais médicos, simplesmente? Ou médicos de outra qualidade? Porque, é bom que se diga, estas são questões totalmente estranhas à falação que se estabeleceu no país em torno do famigerado programa do Governo Federal.
 
A questão poderia ser traduzida por uma pergunta simples, embora, mais uma vez, um tanto diabólica: “para quem o sistema educacional forma médicos no Brasil, historicamente”? Para o SUS certamente não é... Erra, todavia, quem diz que é para a classe alta. A verdade é uma só: o sistema, com raríssimas exceções, forma médicos para ... concorrerem às residências médicas. Portanto, erra também quem pensa que é para atender as necessidades de alguma parcela, pobre ou rica, da população. É claro que esta opção, a de cair de cara na realidade, logo ao sair da faculdade, é a da maioria dos egressos, pois não há vagas para todos na referida nova (e obrigatória) etapa da formação médica. Estes últimos vão ocupar as vagas abertas no sistema de saúde, geralmente na Estratégia Saúde da Família, com, sem ou apesar de concurso público, e aí ficam por um ou dois anos, tentando outro “vestibular” em suas vidas, a entrada na famosa residência. E uma coisa é certa: não são pessoas bem qualificadas para o mister de cuidar da saúde das pessoas, não só em termos técnicos (levantamento recente realizado em São Paulo revelou que nem a metade sabe tratar uma faringite corretamente), nem políticos e muito menos éticos e humanos.
 
Mais médicos, então seria a solução? Se forem do mesmo feitio dos que estão aí, certamente que não! É preciso adicionar valor à presente discussão, desejável por um lado, mas muito marcada pela improvisação, pela simploriedade e pelo corporativismo profissional e ideológico, de outro. Não adianta ter “mais” médicos apenas, mas também profissionais de melhor qualidade, a ser adquirida na etapa de formação.
Algumas propostas do próprio Ministério da Saúde, ainda tímidas em seus resultados, pela dose de voluntarismo presente e pelos limites impostos pela “autonomia” universitária, ainda precisam ser mais bem exploradas. Há pelo menos dois programas em curso, certamente mais consensuais e mais promissores do que este “Mais Médicos” em sua formulação atual.  Refiro-me ao Pró-Saúde e ao Provab. O primeiro  coloca incentivos ás Faculdades de Medicina que desejam, de fato, melhorar seus currículos, tornando-os mais adequados ás necessidades da sociedade e do sistema de saúde do país, que pode, sim, constituírem fatores compatíveis entre si, ao contrário do que pensam as autoridades da corporação medica. O segundo incentiva os recém formados a trabalhar nos grotões, mediante processos de remuneração digna e supervisão pedagógica, embora falhe, por ora pelo menos, na garantia de continuidade para a vinculação duradoura do médico à comunidade.
 
Tudo isso representa um desafio que tem sido enfrentado por diversos países do mundo e sobre este tema há luzes e evidências universais. Não é necessário inventar a roda, portanto. Há muitos aspectos que já se encontram presentes nas grades curriculares de muitas faculdades de medicina pelo mundo a fora, inclusive no Brasil. Entre estes, podem ser citados: a antecipação do contato com a prática; o ensino baseado em problemas; a interação com os serviços públicos “reais” durante a formação; integração de conteúdos do ciclo básico e profissional; a ampliação do estágio final; a adição de conteúdos derivados das ciências humanas e sociais; a promoção do debate e do aprofundamento relativo às políticas de saúde; a introdução de conteúdos relativos à atenção primária à saúde e às práticas integrais e generalistas; a valorização das evidências na prática clínica; a extrapolação da moldura canônica “alopática”; o acompanhamento de grupos de alunos por tutores sintonizados e comprometidos não com as especialidades médicas, mas com o processo de formação técnica e ética de seus pupilos; o aprofundamento sobre os sentidos éticos e filosóficos da medicina; a promoção de posturas críticas relativas à dependência tecnológica e farmacológica, além de muitos outros.
 
Fica sempre a dúvida a respeito de como ensinar medicina de forma inovadora com professores que ainda são formados da maneira antiga – e que professam ideias marcadas pelo anacronismo, pela desatualização conceitual e até mesmo pelo preconceito (contra o SUS, por exemplo). Mas isso é um processo histórico que, espera-se, venha a ser superado algum dia.
 
O Brasil certamente precisa de mais médicos, mas também precisa de doutores bem qualificados, formados dentro de uma mentalidade diferente, na qual o compromisso social esteja acima – bem acima! – das injunções corporativas. Precisa-se, também, de políticas mais conseqüentes, de agentes políticos mais responsáveis, de corporações mais sensíveis e menos agressivas e, principalmente, de cidadãos mais bem informados.
 
FLAVIO GOULART
Fone 61 8133 3235
RUA IMBUIAS 10 - CONDOMÍNIO VERDE
CEP 71 680 608 - BRASÍLIA-DF


Meus Dados

Dados do Amigo

Copyright © . IDISA . Desenvolvido por W2F Publicidade