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2017 – Domingueira da Saúde 013/2017

 

013/2017 – DOMINGUEIRA DE 16/07/2017

 

Flexibilização dos critérios de transferências de recursos fundo a fundo no âmbito do SUS: notas para debate[1]
 
Francisco R. Funcia
Introdução
 
O objetivo deste artigo é avaliar, em caráter introdutório, a revisão dos blocos de financiamento da Portaria 204 anunciada pelo Ministério da Saúde na reunião da CIT (Comissão Intergestores Tripartite) de janeiro/2017 e apresentada ao Conselho Nacional de Saúde na reunião de março/2017. A linha geral apresentada para a construção da proposta a ser pactuada na CIT para futura deliberação do CNS seria a extinção dos seis blocos de financiamento da portaria 204 e a criação de duas novas categorias para a transferência de recursos fundo a fundo: custeio e capital.
 
Se analisada de forma descontextualizada, essa mudança deveria ser valorizada pela combinação da desburocratização do processo de financiamento do SUS em conjunto com o fortalecimento da descentralização do processo de planejamento do SUS, possibilitando tanto uma maior flexibilidade operacional na utilização dos recursos, como o aprimoramento do processo de planejamento ascendente estabelecido na Lei Complementar nº 141/2012, objeto de demanda antiga principalmente dos gestores públicos. Mas, como sempre, o “se” não é irrelevante: desconsiderar o contexto histórico e o papel representado pelas instituições nas análises socioeconômicas nos remete à adoção do “ceteris paribus” (tudo ou mais constante) presente nos modelos dos economistas neoclássicos, muito valorizado pelos defensores do “Deus-mercado”.
 
Para isso, a seção 1 contextualiza brevemente a discussão sobre o “excesso de regras” para esses repasses. A seção 2 trata do “caixa único do SUS” como meio de enfrentar o “excesso de regras” nos repasses financeiros que restringe a ação do formulador da política de saúde em âmbito local. A seção 3 destaca algumas preocupações sobre a flexibilização dos critérios de transferência fundo a fundo.  Por fim, são apresentadas as considerações finais.
 
1.       As “regras” na condução das políticas públicas na contramão da Constituição Federal de 1988: breve resgate
 
Quando o governo brasileiro recorreu ao FMI em 1998 diante da crise do “Plano Real”, mais uma vez submeteu a sociedade brasileira às condicionalidades exigidas por aquele organismo internacional como contrapartida para obtenção do auxílio financeiro pleiteado. Entre as condições estabelecidas, uma delas tratava da condução da política econômica segundo “regras” (fiscais e monetárias), o que tornou prioritário, para todos os governos a partir daquele momento, o cumprimento das metas de inflação e de superávit primário.
 
O “excesso de regras” também está presente para algumas das transferências intergovernamentais de forma totalmente contrária ao ditame constitucional, que reformulou a lógica das relações federativas a partir de 1988 e substituiu a subordinação hierárquica dos Municípios aos Estados e União, bem como dos Estados à União, que existia anteriormente pelo princípio da autonomia de cada esfera de governo no âmbito das competências constitucionalmente estabelecidas.
 
A Constituição Federal de 1988 priorizou a descentralização das políticas sociais como um dos meios para promover a reestruturação do Estado Brasileiro e garantir o exercício da cidadania por efetiva participação da sociedade na definição, na gestão e na fiscalização das ações derivadas de tais políticas, sendo que as experiências anteriormente implantadas pela área da saúde, no contexto da reforma sanitária, foram decisivas para essa nova formulação constitucional. Assim sendo, “excesso de normas” para o financiamento das políticas sociais, entre as quais, a política de saúde, é incompatível com vários dos princípios constitucionais.
 
A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000 – LRF), surgiu a partir das condições exigidas pelo Fundo Monetário Internacional para o “socorro” financeiro de 1998. Ela estabeleceu regras para o processo de execução orçamentária e financeira nas três esferas de governo que confrontaram com os dispositivos constitucionais citados anteriormente. Como por exemplo, priorizar: pagamento de juros e amortização da dívida diante da necessidade de limitação de gastos mesmo se a receita arrecadada estiver abaixo da previsão bimestral;  limites e condições para os gastos de pessoal, necessidade de garantir a disponibilidade financeira para os compromissos assumidos nos dois últimos quadrimestres de mandato; definição de medidas e prazos para a recomposição dos limites e normas referentes aos gastos de pessoal, endividamento público, superávit primário.
 
Porém, considerando que a competência constitucional de tributar está excessivamente centralizada na União e como cerca de 2/3 das receitas municipais são constituídas de transferências intergovernamentais (recursos oriundos do Estado e da União), as regras estabelecidas pela LRF para a utilização de parte desses recursos “engessaram” e “engessam” ainda mais os gestores, tendo como referência a rigidez orçamentária a que a esfera municipal de governo está submetida.
 
Geralmente, essa rigidez orçamentária é atribuída à existência das vinculações constitucionais que estabelecem percentuais de aplicação mínima para a saúde e educação; porém, outros gastos também podem ser caracterizados como de aplicação constitucional obrigatória, como pagamento de folha de servidores e dos respectivos encargos trabalhistas, transferência financeira para a Câmara Municipal, serviço de iluminação pública, serviço de varrição e coleta de lixo, manutenção do viário, juros e amortização da dívida pública. Considerando todos os gastos obrigatórios, o poder discricionário dos gestores na livre definição das políticas públicas representa menos de 10% das receitas para a maioria dos municípios brasileiros.
 
Por isso, no contexto da proposta de flexibilização dos critérios de transferências fundo a fundo, mediante a substituição dos seis blocos de financiamento da Portaria 204 para apenas duas categorias (custeio e capital), cabe aqui retomar um aspecto muito debatido, quando do processo de aprovação da Emenda Constitucional nº 29/2000, por aqueles que defendiam o estabelecimento de um piso (limite mínimo) para aplicação dos recursos em ações e serviços públicos de saúde na União, nos estados, no Distrito Federal e nos municípios: se não houvesse a fixação de um parâmetro mínimo para a alocação de recursos para o SUS, essa política pública jamais seria priorizada a partir da vontade (discricionariedade) da área econômico-financeira dos governos. Se era assim naquele tempo, hoje é muito mais – considerando a ânsia dos Chefes do Poder Executivo e dos responsáveis pelas finanças públicas e pela gestão em saúde, nas três esferas de governo, para utilizar com liberdade os recursos da saúde, em função muito mais das demandas de curto prazo, do que do processo de planejamento do SUS e da mudança do modelo de atenção de saúde para priorizar a atenção básica.
 
2.      A criação do “Caixa Único do SUS” na União, Estados e Municípios como: uma avaliação da proposta sob a ótica municipal
 
No âmbito das transferências da União para os municípios, vinculadas ao Sistema Único de Saúde, a modalidade fundo a fundo seria aquela pela qual os recursos seriam repassados de forma ágil e sem as exigências que caracterizam a modalidade convenial.  É muito interessante ainda observar o elevado número de contas bancárias abertas para a movimentação financeira dos recursos que constituem o Fundo Municipal de Saúde, a maioria delas envolvendo ações vinculadas a uma mesma política, promovendo uma verdadeira irracionalidade administrativa e financeira no atendimento às necessidades da população. Em várias situações, a abertura de contas bancárias atende somente o objetivo de facilitar o processo de prestação de contas pelos profissionais da área contábil nos municípios – vincula a prestação de contas do recurso recebido com documentos que evidenciam o processo de conciliação bancária.
 
Mas, desde que não sejam recursos de natureza convenial, cujas regras firmadas anteriormente precisam ser seguidas para a adequada prestação de contas, tais valores existentes nessas contas deveriam ser integralmente repassados para um “caixa único” do SUS (materializado pela abertura de uma conta única), para utilização em ações e serviços públicos de saúde, sempre em respeito aos critérios pactuados na CIT e deliberados pelo Conselho Nacional de Saúde (para o caso de transferências estaduais para os municípios, pactuados na Comissão Intergestores Bipartite e deliberados pelo Conselho Estadual de Saúde).
 
Em outros termos, o poder discricionário do gestor municipal na condução da política de saúde local está condicionado a esses critérios estabelecidos para a transferência de recursos, que por sua vez estão em consonância com as diretrizes aprovadas na Conferência Nacional de Saúde, nas Conferências Estaduais de Saúde e nas Conferências Municipais, uma das instâncias máximas de deliberação do SUS nos termos da Lei 8142/90, da Lei Complementar nº 141/2012, bem como em obediência ao princípios constitucionais da participação da comunidade e da gestão tripartite no SUS. Nestes termos, a 15ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em dezembro/2015, foi organizada em respeito ao princípio legal do planejamento ascendente no âmbito do SUS.
 
Na verdade, com o advento da Portaria 204/2007 e da Portaria 837/2009, foram criados 6 “Blocos de Financiamento” – Atenção Básica, Média e Alta Complexidade, Vigilância em Saúde, Assistência Farmacêutica, Gestão e Investimento – em substituição a mais de uma centena daquelas “linhas específicas” de financiamento geradoras desse centenário número de contas bancárias. Porém, mesmo com essa redução promovida pelos “Blocos de Financiamento”, restou mantida uma “memória de cálculo” dos resíduos de prestação de contas das antigas “linhas específicas” de financiamento, não sendo permitida a movimentação ou a comprovação do gasto na regra atualmente válida para o respectivo “Bloco”. A “rigidez da regra”, mesmo no novo contexto mais flexível, impede que o gestor use seu poder discricionário na condução da política de saúde na esfera municipal, mesmo respeitando a finalidade específica de uso do recurso dentro do respectivo bloco.
 
O controle da aplicação dos recursos oriundos das transferências fundo a fundo no âmbito do SUS não deveria ser feito pelo “extrato da conta bancária”, mas pelos registros da execução orçamentária nas dotações específicas e pela documentação de pagamento correspondente formada no mínimo pela nota fiscal e/ou recibo dos materiais e/ou serviços prestados com a atestação devida, caracterizando a liquidação da despesa, a certificação dessa liquidação pelo órgão de controle interno e/ou setor contábil e, após isso, a documentação do pagamento realizado. É importante destacar que esses registros da execução orçamentária e financeira precisam estar disponíveis nos Portais das Prefeituras em “tempo real” ou no máximo com um dia de defasagem, conforme disciplina Lei Complementar nº 131/2010.
 
Nessa direção, enquanto a execução orçamentária e financeira permitiria fiscalizar a correta a aplicação de cada “Bloco de Financiamento”, o “Caixa Único do SUS” (ou conta única) permitiria fiscalizar de forma mais clara e direta se os recursos estão ingressando no valor certo e na data certa nos Municípios para a realização das despesas no tempo certo, garantindo ao gestor maior segurança no processo de realização da despesa pública e no atendimento às necessidades da população.
 
Estudos clássicos na área de gestão apontam para a formação de uma cultura tecnoburocrática no aparelho de Estado brasileiro, geralmente nas áreas de planejamento, orçamento e finanças, que ainda resiste em vários setores do governo federal em diferentes ministérios. Isso pode ser a explicação para a manutenção da cultura do “excesso de regras” como forma de combater eventuais desvios de finalidade na aplicação dos recursos, com o objetivo de facilitar a ação da fiscalização das auditorias e órgãos do controle externo, adotando como pressuposto que a “regra geral” dos gestores é cometer irregularidades com os recursos públicos.
 
A justificativa apresentada para a “rigidez das regras” é a necessidade de uniformizar procedimentos e dificultar a “burla”. Porém, ocorre exatamente o contrário: as regras rígidas” tendem a ser mais facilmente burladas por gestores corruptos, enquanto regras mais flexíveis dificultam as justificativas de práticas nocivas ao interesse público. Com isso, as “regras rígidas” tendem a nivelar no mesmo patamar os bons e maus gestores, criando na população a ideia de que não há diferença entre os gestores (ou entre as gestões).
 
Além disso, a “rigidez da regra” nos mecanismos de financiamento da política de saúde restabelece a dependência da esfera municipal de governo em relação às esferas estadual e federal, em franca oposição ao princípio da autonomia relativa no âmbito de suas competências estabelecido pela Constituição Federal de 1988.
 
É oportuno lembrar que os artigos 71 a 74 da Lei nº 4320/64 tratou dessa questão, ao possibilitar a criação dos fundos especiais de despesas que vinculam determinadas receitas a determinados objetivos mediante criação de dotações específicas na Lei Orçamentária e demonstração da aplicação em balanços específicos. Os fundos de despesa permitem o monitoramento da efetiva aplicação desses recursos, no nosso caso, da saúde, sem excesso de burocracia, apesar das regulamentações recentes editadas pela Secretaria da Receita Federal e pelo Fundo Nacional de Saúde para os repasses aos Estados e Municípios.
 
A discricionariedade do gestor municipal na condução da política de saúde não pode estar limitada pela forma de utilização financeira dos recursos oriundos de transferências intergovernamentais segundo as diferentes contas bancárias de ingresso, mas tão somente pelas políticas pactuadas (com metas de resultado) no âmbito das Comissões Intergestores Tripartite e Bipartite, devidamente deliberadas nos respectivos Conselhos de Saúde, tendo com referências, além da Constituição Federal, os princípios e diretrizes estabelecidos pela Lei nº 8080/90, Lei nº 8142/90 e Lei Complementar nº 141/2012.
 
Entretanto, a flexibilização pretendida com a proposta de criação de apenas duas categorias de transferência fundo a fundo não pode ser considerada como um fim em si mesma, nem pode ser avaliada de forma descontextualizada:
 
a)     são três anos de recessão econômica (que está longe de terminar), o que representa queda de renda e aumento do desemprego com aprofundamento da precarização do mercado de trabalho; e
 
b)     o atual momento político é de desmonte do incipiente estado de bem estar social construído a partir da promulgação da Constituição de 1988, com mudanças (já aprovadas ou em tramitação) que retiram direitos trabalhistas e direitos sociais, como é o caso da EC 95/2016, que “congela” até 2036 as despesas primárias nos níveis de 2016 e 2017 (corrigidas somente pela variação anual do IPCA/IBGE), o que, na prática, significa queda das despesas sociais per capita por 20 anos.
 
3.      Preocupações em torno da flexibilização dos critérios de transferência fundo a fundo
 
Nos termos do artigo 17 da Lei Complementar 141/2012, os critérios de rateio que ainda deverão ser estabelecidos pela CIT para a definição dos valores das transferências de recursos federais do SUS fundo a fundo para estados, Distrito Federal e municípios, deverão ser objeto de análise e deliberação do pleno do Conselho Nacional de Saúde antes de entrarem em vigor.
 
A definição de um processo de transição decorrente da revisão dos blocos de financiamento da Portaria 204 é fundamental, para que possa ser estabelecido um debate amplo e transparente, preferencialmente no Conselho Nacional de Saúde, outra instância máxima de deliberação do SUS (em conjunto com as conferências de saúde), formado pela representação dos usuários, trabalhadores e gestores/prestadores do SUS, portanto, com representatividade para interagir sob a ótica das necessidades de saúde da população. É preciso evitar que esse o processo de discussão “fechada” que deve estar em curso sob a coordenação do Ministério da Saúde provoque a realocação de recursos da atenção básica, assistência farmacêutica e vigilância em saúde para a Média e Alta Complexidade no contexto do desfinanciamento a ser gerado pela Emenda Constitucional 95/2016. Essa portaria agrada muito aos gestores no contexto da crise fiscal, mas tenderá a fortalecer o financiamento do modelo atualmente baseado na Média e Alta Complexidade, que gera demanda por recursos adicionais e de forma organizada e oligopolista pelos hospitais privados e filantrópicos contratados pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.
 
Considerando que essa flexibilização dos critérios de transferências de recursos para os estados, Distrito Federal e os municípios está sendo proposta no contexto do processo de regionalização das ações de saúde e da desestruturação existente na maioria dos conselhos municipais de saúde para o exercício de suas atividades, bem como da precária cultura de planejamento existente no setor público brasileiro, o “tiro pode sair pela culatra”: as normas de finanças públicas e da gestão do orçamento público para monitorar e controlar o efetivo uso de recursos. Exceto em alguns poucos municípios brasileiros, a maioria está despreparado em termos técnicos e tecnológicos para esse monitoramento e controle da destinação dos recursos com essa flexibilização proposta. Além disso, as questões políticas também precisam ser consideradas - são os prefeitos que definem a “palavra final” no estabelecimento de prioridades, não os secretários de saúde. Muitas críticas foram feitas em relação aos percentuais mínimos de aplicação para saúde e educação, e a justificativa foi exatamente que as necessidades de saúde e de educação não resistiriam às pressões políticas dos chefes dos executivos na alocação dos recursos. A proposta de flexibilização dessas transferências fundo a fundo desconsidera essa realidade política.
 
Em relação à participação da comunidade, princípio constitucional do SUS, ainda está em processo de construção, ou seja, ainda não estão totalmente estruturados os conselhos de saúde nos 5570 municípios brasileiros para exercer seu papel legal de estabelecer e deliberar sobre as diretrizes para o estabelecimento de prioridades que farão parte dos planos de saúde, bem como de analisar e deliberar esses planos mediante a verificação de que tais referências foram contempladas nos objetivos e metas apresentadas. Isto, em conjunto com as condições atuais de recessão e queda de receita pública, significa dizer que a flexibilização das transferências SUS poderá representar a inviabilidade da priorização do financiamento das ações de Atenção Básica e, pelo contrário, o fortalecimento das condições de financiamento das ações de Média e Alta Complexidade.
 
Há relato de sobra de recursos transferidos para ações de vigilância epidemiológica em cidades como São Paulo – e muitos questionam se não há ações de vigilância a serem criadas ou fortalecidas; hoje, é possível detectar esse problema, amanhã, com a flexibilização, ficará muito difícil essa identificação. Se todos conselhos de saúde estivessem estruturados para o exercício de seu papel legal, tal situação de sobra de recurso de vigilância, assim como o "caixa único" estabelecido pelas Secretarias Estaduais de Fazenda (com a transferência de recursos vinculados de diferentes áreas para a conta única do governo do estado), seria motivo de grande mobilização contrária, o que não tem ocorrido de forma generalizada.
 
O que ocorrerá se essa flexibilização de critérios para as transferências fundo a fundo se efetivar? Há ainda muita coisa a ser feita para que a Atenção Básica seja prioridade em termos de organização dos serviços na rede de atenção à saúde, o mesmo ocorre nas ações de vigilância em saúde. Como estabelecer e operacionalizar a relação necessária para a formulação dos planos municipais de saúde (que estão sendo elaborados neste ano) com as diretrizes estabelecidas pela 15ª Conferência Nacional de Saúde e, nessa perspectiva, com os objetivos e metas fixadas no Plano Nacional de Saúde aprovado pelo Conselho Nacional de Saúde para o período 2016-2019?
 
Considerando o contexto e as preocupações apresentadas anteriormente em torno da proposta de flexibilização dos critérios de transferência fundo a fundo para apenas duas categorias – custeio e capital, é importante relembrar a Recomendação nº 006, de 10 de março de 2017, do Conselho Nacional de Saúde[2], que continua oportuna como uma proposta para subsidiar um processo de transição para o estabelecimento desses novos critérios de transferências fundo a fundo, transcrita parcialmente a seguir:
 
1.1 No curtíssimo prazo, reduzir os custos administrativos do sistema (diminuir o número de contas bancárias e condicionalidades; garantir maior autonomia na alocação de recursos; ampliar a transparência dos repasses do FNS; combater a judicialização, etc.) e, para tanto, elaborar uma nota técnica dirigida a procuradores e gestores municipais, bem como promover um diálogo com direção e técnicos do sistema de auditoria do SUS [Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde (DENASUS), da Controladoria Geral da União (CGU), do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Ministério Público Federal (MPF)] e, para evitar práticas desnecessárias não estabelecidas por lei, como a abertura de diversas contas bancárias que Estados, Distrito Federal e Municípios utilizam para movimentar os recursos oriundos das transferências fundo a fundo no âmbito do SUS.
1.2 No curto prazo, enfrentar diretamente o problema da subdivisão dos blocos de financiamento em diversas parcelas, com diferentes regras e limitações de uso, iniciando imediatamente um processo de revisão das portarias que disciplinam os repasses fundo a fundo, para autorizar que os recursos de cada bloco de financiamento possam ser utilizados em quaisquer ações e/ou serviços previstos no respectivo bloco, sem a redução de recursos orçamentários e financeiros alocados nos últimos anos para cada componente integrante, e com isso possibilitar a existência efetiva dos seis blocos de financiamento, até que sejam estudados os efeitos, positivos e negativos, de uma eventual extinção desses blocos e substituição por outros critérios de rateio.
1.3 No curto prazo, organizar em conjunto com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e com o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) um debate amplo com o acompanhamento do CNS, respeitado o espaço da COFIN/CNS para a continuidade do processo de reflexão e debates e avaliação sobre a evolução das etapas de construção dessa nova portaria, acerca dos critérios de rateio dos recursos financeiros no âmbito do SUS, envolvendo os diferentes segmentos – usuários, trabalhadores e gestores e prestadores de serviços – e as diferentes entidades e movimentos que lutam historicamente pelo SUS e pela saúde pública universal, gratuita e com qualidade, como realização de plenárias públicas, que deve incorporar uma avaliação da repercussão do processo histórico de subfinanciamento do SUS e da redução de recursos per capita que deverá ocorrer a partir de 2018, por causa da Emenda Constitucional nº 95/2016, sobre a mudança dos critérios de rateio a ser proposta.
1.4 No curto prazo, respeitar os objetivos e as diretrizes para a formulação da política de saúde estabelecidos na 15ª Conferência Nacional de Saúde de dezembro de 2015 e no Plano Nacional de Saúde 2016-2019, que foram decorrentes de um processo de construção ascendente, democrática e participativa (a partir das etapas prévias à conferência nacional realizadas nos Municípios e nos Estados), que devem servir de referência para esse processo de revisão dos critérios de rateio das transferências fundo a fundo.
1.5 No médio prazo, após a realização das etapas e providências anteriores, os critérios de rateio para as transferências fundo a fundo propostos na CIT deverão ser submetidos para análise e deliberação do CNS nos termos do Art. 17, §1º, da Lei Complementar nº 141/2012 para que tenham vigência a partir do exercício de 2018.
 
 
Considerações Finais
 
A criação do “Caixa Único do SUS” ou da “conta bancária única” para a movimentação financeira dos recursos oriundos das transferências segundo os seis blocos de financiamento permitirá o controle mais eficiente da execução das políticas de saúde a partir dos registros da execução orçamentária e financeira, em comparação à flexibilização dos critérios proposta pelos gestores com a proposta de redução para apenas duas categorias para essas transferências – custeio e capital, pelo menos, no curto e médio prazos. Isso representará um importante avanço administrativo na perspectiva da garantia do interesse público, tendo em vista a racionalidade e celeridade que traria à gestão municipal, assim como para as gestões federal e estaduais, cuja auditoria poderá ser mais eficiente à medida que estaria mais focada na verificação do cumprimento das respectivas metas e resultados pactuados. Para tanto, a flexibilização dos critérios de transferência dos recursos fundo a fundo, por meio da revisão da Portaria 204 e a redução dos seis blocos de financiamento para apenas duas categorias, requer um processo de reflexão e amadurecimento, o que não pode ser feito de forma imediata, mas sim por meio de um processo de transição com ações de curtíssimo, curto e médio prazos.
 
O estabelecimento de uma “conta bancária única” vinculada ao Fundo Municipal de Saúde facilitará a fiscalização dos recursos recebidos das outras esferas de governo, identificando em balancetes mensais a natureza do recurso recebido. Vale ressaltar que, no contexto legal da Lei Complementar nº 141, compete aos Conselhos de Saúde (Nacional e Estaduais) deliberar sobre os critérios (pactuados respectivamente na CIB e na CIT) a serem estabelecidos para essas transferências intergovernamentais (da União e dos Estados para os municípios), enquanto que os Conselhos Municipais de Saúde deverão ser informados pelos gestores federal e estaduais sobre esses repasses, bem como fiscalizarão a aplicarão desses recursos. Vale ressaltar que tal fluxo de informação ainda não está totalmente implantado – não basta disponibilizar a informação no site do Fundo Nacional de Saúde ou do Fundo Estadual de Saúde, é preciso comunicar de forma individualizada nos termos da Lei Complementar nº 141/2012.
 
Desta forma, esses gestores (federal e/ou estadual) que repassarão os recursos deverão identificar claramente nas respectivas leis orçamentárias os valores e as finalidades das transferências segundo as diferentes funções, subfunções, programas e ações, com as definições de prazos para os repasses submetidas aos respectivos Conselhos de Saúde, bem como transmitirão todas as informações desses repasses aos Conselhos de Saúde dos Municípios. Estes, por sua vez, poderão verificar o ingresso desses recursos centralizados na “conta bancária única” e acompanhar a execução orçamentária e financeira desses recursos concomitantemente aos indicadores da saúde da população, nos termos da Lei Complementar nº 141/2012.
 
Portanto, não há que se confundir as dimensões orçamentárias e financeiras – o “caixa único do SUS” expressa a dimensão financeira, enquanto que, nos orçamentos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, as despesas deverão ser fixadas segundo as funções (Saúde), subfunções (Atenção Básica, Assistência Hospitalar e Ambulatorial, Suporte Profilático Terapêutico, Vigilância Epidemiológico, Vigilância Sanitária, Alimentação e Nutrição e outras) , programas e ações que permitem o monitoramento e avaliação do planejamento, bem como o registro das informações de forma a permitir a consolidação dos gastos públicos.
 
As políticas pactuadas no âmbito das CIB e CIT, devidamente deliberadas pelos respectivos Conselhos de Saúde, deverão ser as referências básicas para a fiscalização dos recursos oriundos dessas transferências intergovernamentais segundo a finalidade de aplicação, redirecionando o foco das auditorias internas e dos órgãos de controle externo à qualidade das ações desenvolvidas à luz de resultados medidos por indicadores pactuados para esse fim. Com isso, inclusive, poderá ser avaliada a capacidade de gestão financeira dos recursos recebidos para o cumprimento dos objetivos de cada política pactuada para Atenção Básica, Média e Alta Complexidade, Assistência Farmacêutica, Vigilância Epidemiológica e Sanitária, entre outras.
Tais medidas de ordem administrativa e/ou interna não requerem mudança na legislação e simplificam o processo de fiscalização e monitoramento por parte dos respectivos Conselhos de Saúde (tanto dos que analisam os recursos transferidos, como dos que analisam os recursos recebidos), que poderão verificar com mais clareza a movimentação financeira dos recursos da saúde e cotejar com a respectiva execução orçamentária, que por sua vez expressará os objetivos e metas dos planos de saúde nas três esferas de governo.
 

 



[1] Versão adaptada do artigo sobre “Caixa Único do SUS” que escrevi em 2012 (disponível em https://saudesusvc.wordpress.com/2012/09/11/sus-unico-caixa-unico/ - acesso em 15/03/2017 – e em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/producao_conhecimento_economia_saude_perspectiva.pdf  - acesso em 15/03/2017), estimulado pelo nosso saudoso mestre Gilson Carvalho, após uma troca de ideias que tivemos sobre esse tema. Essa postura dele era muito diferente da postura obscurantista presente em muitos que assumiram cargos no governo do Presidente Temer, cuja marca tem sido o distanciamento das críticas e questionamentos sobre as consequências negativas para a sociedade de muitas medidas de política econômica e social, adotadas ou a adotar, especialmente ao desconsiderarem o contexto sócio-político-econômico dessa adoção.
 
 Domingueira da Saúde - 013 2017 - 16 07 2017


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