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2017 – Domingueira da Saúde 027/2017

 

 

A SAÚDE PÚBLICA CONTINUA NA MIRA DO AUSTERO BANCO MUNDIAL

 

 

Áquilas Mendes
Professor de economia da saúde
Faculdade de Saúde Pública da USP

Leonardo Carnut
Professor de sociologia, estudos sociais
e pesquisa qualitativa da UFMG e especialista
em direito sanitário pelo Idisa

 

 

O Banco Mundial publicou em novembro de 2017 um relatório que analisa a eficiência e equidade do gasto público no Brasil, com um título marcado pelo cinismo dos arautos do capital: “Um ajuste justo” (http://documents.worldbank.org/curated/en/884871511196609355/pdf/121480-REVISED-PORTUGUESE-Brazil-Public-Expenditure-Review-Overview-Portuguese-Final-revised.pdf). Justo para quem? Devemos indagar. É necessário que se refute os seus principais argumentos em torno da defesa intransigente de cortes drásticos do gasto público e que se explicite que se trata de um documento associado à mais um movimento do capital a favor da adoção de políticas austeras por parte do Estado, dando continuidade ao aniquilamento dos direitos sociais no Brasil, especialmente na área da saúde, em clara sintonia com as contrarreformas impostas à classe trabalhadora que vem sendo implantadas pelo governo Temer. 

 

Tratamos, a seguir, de explicitar alguns principais argumentos do Relatório, com foco na saúde, bem como apresentar nossos contra-argumentos.  

 

1 – Conforme mencionado na seção “Desafios para a sustentabilidade Fiscal no Brasil”, admite-se que: “Embora os custos dos juros e outras operações “abaixo da linha” sejam muito altos no Brasil, seria errado concentrar a estratégia de ajuste fiscal nesses custos” (p.22, item 22). Por sua vez, mesmo reconhecendo, nesse item, o equívoco dessa estratégia de ajuste, é citado no Relatório o seguinte caminho: [...] “a política do governo deveria manter seu foco na redução do déficit primário (que, por sua vez, permitiria a redução das taxas de juros, dos pagamentos de juros e do déficit nominal)”.

 

Contra-argumento: Trata-se de proposição controversa, à medida que “redução de déficit primário”, num quadro de crise econômica e queda das receitas fiscais, significaria maior corte das despesas primárias (saúde, educação, transporte, etc.), à medida que essas não incluem despesas com juros e outras despesas financeiras. O fundo público, especialmente o correspondente às políticas de direitos sociais, não vem suportando o crescimento exponencial do custo de financiamento da dívida pública impondo riscos ao desenvolvimento dessas políticas. Isto quer dizer, no Brasil pagamos muito mais juros do que seria razoável, num quadro de dívida pública, largamente concentrada no curto prazo e com títulos que oferecem liquidez imediata, grande nível de segurança e alta rentabilidade aos investidores diante das elevadas taxas de juros, consequentemente, deixamos de financiar adequadamente as políticas de direitos sociais. Numa análise comparada, o Brasil é o país que dispõe do maior custo de financiamento da sua dívida (pagamento de juros), levando em conta o seu patamar de endividamento em relação ao PIB. A dívida pública líquida brasileira refere-se à 33,6% do PIB, em 2013, e tem um custo de financiamento de 5,2% do PIB. Já países cujas dívidas líquidas são significativamente maiores, dispõem de um custo de financiamento bem menor, como a Grécia, que deve 169,7% do PIB, Portugal, 118,5% e Espanha, 60,5%, sendo que o custo de financiamento é respectivamente de 3,6%, 3,8% e 2,9% do PIB. Essa distorção foi ainda mais grave em 2015, quando o Brasil alcançou 8,5% do PIB, cerca de R$ 500 bilhões com o custo de financiamento dessa dívida, sendo cinco vezes superior ao gasto do Ministério da Saúde. 

 

2 – De acordo com a seção específica da saúde no Relatório, a assertiva no item 154, “Relativo ao seu PIB, o Brasil gasta em saúde tanto quanto a média entre os países da OCDE e mais do que os seus parceiros, mas a maior parte de tais gastos ocorre fora do setor público” (p.110), é problemática. Ainda que seja reconhecido que a despesa pública com saúde como parte da despesa total com saúde (48,2%) é menor que a média entre os países da OCDE, a afirmação que se mantém no Relatório é que o Brasil é comparável ao gasto em saúde desses países. Isto fica explícito quando se atribui destaque a uma frase síntese dessa ideia: “O Brasil gasta com saúde (relativo ao PIB) valores similares aos seus parceiros da OCDE, porém a maior parte desse gasto é realizado pelo setor privado” (idem). 

 

Contra-argumento: Essas afirmações são tendenciosas e perigosas. Isto porque não se deve estabelecer uma comparação entre o Brasil e os países da OCDE (tais como Alemanha, França, Reino Unido, Espanha etc.) no tocante ao gasto total com saúde (privado mais público). No Brasil a maior parte do gasto total corresponde ao setor privado, enquanto naqueles países, o quadro claramente se inverte. Isto é, a parte evidentemente expressiva, cerca de 80%, é financiado pelo público. Nesse caso é metodologicamente mais adequado (e honesto!) realizar a comparação entre esses países  por meio do gasto público, o que permite perceber que o gasto do Brasil é muito mais reduzido que o daqueles países. Sabemos que apesar do avanço inconteste que significou a criação do SUS, o Brasil ainda está distante de dedicar a mesma atenção à saúde pública que os demais países que dispõem de um sistema público e universal. Em 2014, enquanto o SUS gastou 3,9% do Produto Interno Bruto (PIB), a despesa pública em saúde na média dos países da OCDE com sistemas universais foi de cerca de 8% do PIB, o que indica a total fragilidade de recursos do SUS para realizar suas ações e serviços 2. Entendemos que a construção do argumento explicitado no Relatório leva a compreensão de que se gasta muito, inclusive até maior que o patamar do gasto dos países da OCDE, concluindo-se então que, o gasto (especialmente o público) é ‘ineficiente’ (trataremos desse termo mais adiante), conforme o objetivo principal de sua mensagem no item 168: “O SUS poderia oferecer mais serviços e melhores resultados de saúde com o mesmo nível de recursos se fosse mais eficiente” (p.118). Trata-se de uma típica artimanha do argumento neoliberal para explicitar que se deve investir na utilização de instrumentos mais eficientes para a aplicação do gasto público, diante das pressões orçamentárias que, na sua visão, são escassas e precisa-se adquirir maior racionalidade do gasto. Bem, daí emerge o cansativo argumento que o problema é a gestão dos recursos e não financiamento do SUS. Todos nós que acompanhamos esses problemas e sabemos que são ambos e devem ser enfrentados de forma distinta: o problema do subfinanciamento histórico e o da gestão.   

 

3 – Na linha de reflexão do item anterior, fica evidenciado no Relatório a ideia síntese da argumentação: “A princípio, a redução dos gastos não é a única estratégia para restaurar o equilíbrio fiscal, mas é uma condição necessária (p.8). 

 

Contra-argumento: É importante não se surpreender com tal defesa do Banco em reduzir os gastos, tomando-os como  “condição necessária”, porém não se pode deixar de dizer que tal argumento procura desconhecer a problemática histórica do subfinanciamento da saúde. O próprio Relatório reconhece que a partir dos efeitos da EC 95, a despesa real com saúde irá diminuir nos próximos anos e, portanto, torna-se difícil qualquer possibilidade de discutir a eficiência do gasto com um declínio na curva dos gastos federais em relação ao PIB. A rigor, os prejuízos acumulados nos próximos 20 anos para o SUS serão de cerca de R$ 415 bilhões, considerando um crescimento do PIB de 2% ao ano (média mundial) e uma projeção do IPCA de 4,5%. Num cenário retrospectivo, entre 2003 a 2015, essa perda seria R$ 135 bilhões, a preços médios de 2015, diminuindo os recursos federais do SUS de 1,7% do PIB para 1,1% 3. Então, como sustentar a ideia de equilíbrio fiscal (pagamento das contas do governo) com redução dos gastos?

 

4 – Por sua vez, na perspectiva do argumento evidenciado no Relatório de que o Brasil “gasta muito com saúde pública”, surge a afirmação de que o Estado gasta, também, muito com “gastos tributários” (renúncia fiscal): “O Brasil gasta 0,5% do PIB (em 2013) com gastos tributários para o setor de saúde, o que vem aumentando ao longo do tempo” (p.110). “[...] o setor público também gasta recursos significativos por meio de gastos tributários, principalmente para subsidiar seguros privados de saúde (0,5% do PIB) (idem). Assim, surge uma proposta no Relatório de “redução dos gastos tributários com saúde” (p.119), à medida que “[...] são altamente regressivos, e não há nenhuma justificativa aparente para a obrigatoriedade de o governo pagar pelo atendimento privado de saúde aos grupos mais ricos da população” (p.119).

 

Contra-argumento: Vejamos, a princípio poderíamos concordar com a argumentação mais geral do Relatório, isto é, o gasto tributário vem se elevando ao longo dos anos e se trata de um instrumento regressivo, priorizando os gastos com saúde privada. A rigor, trata-se de incentivo concedido pelo governo federal à saúde privada, na forma de redução de Imposto de Renda a pagar da Pessoa Física ou Jurídica, o que é aplicada sobre despesas com Plano de Saúde e/ou médicas e similares. Além disso, há que acrescentar as renúncias fiscais também são ‘benesses’ que incentivam o desenvolvimento de entidades sem fins lucrativos e a indústria farmacêutica. Nota-se que o total desses benefícios tributários à saúde privada vem crescendo de forma considerada, passando de R$ 8,6 bilhões, em 2003, para R$ 25,3 bilhões, em 2013, em valores correntes 2. Por sua vez, ao se ao analisar os principais gastos tributários no projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2017 do governo federal, identifica-se que a Saúde representa 13% em relação ao total desses gastos tributários, o que corresponde ao terceiro setor (R$ 32 bilhões), depois de Comércio e Serviços e Trabalho que mais proporcionam renúncia de arrecadação fiscal ao Estado 4. 

 

Sem dúvida, essa situação nos remete à tensarelação entre o mercado privado e o padrão de financiamento público da saúde universal, e ao mesmo tempo, suas consequências em relação à temática da equidade, especialmente  importante para a sobrevivência do SUS.  De forma geral, no contexto do capitalismo contemporâneo financeirizado e na atual crise do capital, questiona-se sobre as fragilidades que o fundo público da seguridade social, e neste incluída a  saúde, vêm sofrendo. 

 

Porém, é preciso chamar a atenção que o enfrentamento a esse gasto tributário (renúncia fiscal) crescente, ou seja, sua redução deve ser acompanhada de mecanismos que garantam que a entrada de recursos deva ser destinada, de forma vinculada, ao Fundo Nacional com Saúde. Caso contrário, sua diminuição nada garantirá que o governo federal transfira os recursos decorrentes para à área da saúde, de forma a ampliar os recursos do SUS, principalmente porque há anos (desde 1994) o governo federal vem se apropriando dos recursos do Orçamento da Seguridade Social, por meio da Desvinculação das Receitas da União (DRU), atualizada pela EC 93, para assegurar o pagamento de juros da dívida, em respeito, à política de manutenção do superávit primário (até 2014) e corte dos gastos das políticas de direitos sociais, como a saúde. Para uma compreensão mais ampliada da questão, não se pode prescindir dos aspectos sócio históricos do desenvolvimento do capitalismo e como o movimento do capital rebate na cena política e econômica brasileira no tocante ao tema. Primeiramente, não se deve ter ilusões sobre a insaciabilidade do movimento do capital, principalmente dominado pelo capital portador de juros nos tempos contemporâneos. Esse movimento do capital dilapida os fundos públicos dos Estados, no sentido de aprofundar a sua apropriação em reposta à tendência de queda da taxa de lucro nas economias capitalistas. Em todo o pós-II guerra, principalmente na norte-americana, o declínio foi de 41,3%, entre 1949 a 2001 5; e, particularmente o caso do Brasil, entre 2007 a 2014, apresentou uma queda da taxa de lucro do capital produtivo devido ao aumento da parcela salarial e ao declínio da produtividade potencial do capital 6. Nessa análise, não podemos ainda esquecer que a relação capital-trabalho precisa ser levada em consideração. Portanto, como resposta a essa tendência declinante, o grau de exploração da classe trabalhadora – principalmente com as contrarreformas (trabalhista e previdenciária) – e da valorização financeira, em que o capital portador de juros (e a sua forma mais perversa, o capital fictício) passam a ocupar na liderança da dinâmica do capitalismo nesse período, especialmente depois de 1990, apropriando-se de vários fundos públicos. Nesta perspectiva, parece ficar mais evidente o porquê da defesa do Banco Mundial em reduzir os gastos tributários com a saúde. Para onde iriam, então, essa possível arrecadação fiscal com a diminuição dos gastos tributários? Para a área da saúde? Não é o que a história nos demonstra. 

 

5 – No tocante à atenção em saúde, o Relatório ressalta o seu grau de ‘fraco desempenho’. No item 158, destaca-se: “No atendimento primário, a maior parte dos municípios é caracterizada por alta produtividade e baixo desempenho, ao passo que, nos atendimentos secundário e terciário, a maioria apresenta baixa produtividade e baixo desempenho” (p.112). [...]”A eficiência está relacionada à escala (inclusive o tamanho do município, o número de leitos e o tamanho dos hospitais)”. Logo em seguida, coloca-se a seguinte ideia síntese: “Sendo mais eficiente, o Brasil poderia oferecer mais serviços no nível de atenção primária” (p.114)

 

Contra-argumento: O debate sobre o ‘desempenho’ é o ‘Calcanhar de Aquiles’ sobre a relação imbricada entre política-economia-saúde, especialmente quando o objeto da análise é os ‘Sistemas de Saúde’. Esse debate não é uma novidade e, em termos históricos, data dos anos 2000 (implantação da ordem neoliberal nos países periféricos). Naquele ano, o Relatório Mundial de Saúde foi o responsável por “engatilhar” os argumentos sobre o desenvolvimento de medidas capazes de capturar o desempenho dos sistemas de saúde 7 recebendo severas críticas. Assim, o tema foi levado ao ‘escanteio’ pelo menos nos últimos 15 anos, e, agora, não é de se surpreender que este debate volte à tona sob a recrudescência da égide conservadora.

 

Comparar sistemas de saúde ao redor do mundo, tão diversos, inseridos em contextos sócios históricos distintos, em situações econômicas tão díspares e imersos no contexto do capitalismo contemporâneo é uma tarefa hercúlea para ser subsumida a medidas meramente econométricas (como a relação entre ‘produtos’ e ‘resultados’ do gasto), ou quiçá um número-síntese. Nesse sentido, as mensurações de desempenho de sistemas de saúde já partem, fatalmente, de uma fragilidade sobre sua capacidade comparativa gerando sempre injustiças graves, especialmente com aqueles países que apresentam sistemas de saúde baseados na tentativa da universalização, como o nosso.

 

Dito isso, a afirmação canhestra do relatório do Banco Mundial começa desconsiderando o desenho dos sistemas de saúde em sua conformação ‘loco regional’. É sabido que o sistema de saúde no Brasil conforma-se em regiões de saúde, sempre na tentativa de alcançar a ‘integralidade da atenção’. Para uma análise mais ‘coerente’ com a nossa realidade, é essencial que a lógica loco-regional seja considerada 8. Além disso, uma ampla revisão 9 aponta que desconsiderar o conceito dos ‘sistemas de saúde’ não é tendência exclusiva das análises brasileiras, mas que no mundo inteiro há uma confusão entre desempenho de ‘sistemas’ de saúde e desempenho de ‘serviços’ de saúde, tornando o assunto extremamente delicado caso se deseje realizar uma análise precisa.

 

Para além da questão do objeto ‘sistemas de saúde’ que, segundo a metodologia descrita pelo Relatório, parece não tê-lo apreendido adequadamente, emerge o problema do quê significam ‘desempenho’ e ‘eficiência’ nas análises de sistemas de saúde. Em recente revisão de escopo mundial 10 constata-se que é possível localizar vários termos que usam a palavra ‘desempenho’ com conteúdos diferentes, dentre elas: ‘desempenho de saúde’ entendido como os resultados finais de saúde (medida como estado de saúde e os determinantes não-médicos da saúde e dos serviços de saúde); ‘medida de desempenho’ entendida como a métrica relativa à defasagem ou superação de uma atividade em relação a uma meta preestabelecida; ‘desempenho dos serviços de saúde’ como o grau de manutenção do funcionamento do sistema de serviços (dimensões: aceitabilidade, acessibilidade, efetividade, adequação, segurança, vigilância em saúde) e ‘avaliação de desempenho’ como o juízo de valor exercido sobre um desempenho. 

 

Para além desses termos que compõem a noção de desempenho há também um rol de significados para o vocábulo desempenho, sendo sintetizados em seis principais: a) a medida de qualidade, eficiência técnica da provisão e equidade dos serviços; b) a medida ou distância observada entre a realização das funções e os objetivos da organização ou sistema, fixados em metas, de acordo com uma competência esperada; c) a definição de indicadores que permitem medir os objetivos dos serviços para sua posterior avaliação; d) a resultante da manutenção do funcionamento integrado de um sistema de serviços; e) a mudança de comportamentos que possibilitem transformar de ‘recursos’ em melhores ‘resultados’; e ainda, f) o significado atribuído pelos avaliadores e, portanto, a escolha das dimensões que, por sua vez, depende do que o desempenho venha a ser naquele específico contexto 10. Afinal, segundo a proposta de mensuração de desempenho descrita pelo Relatório do Banco Mundial, não é possível identificar nenhuma dessas definições. Por isso, insistimos em dizer que construir um quadro teórico de desempenho de sistemas de saúde não é uma atividade simples nem um exercício acadêmico ‘neutro’, mas deve capturar tanto noções administrativas, econômicas, quanto políticas 11. Entendemos que a opção política na forma de medir o desempenho, apresentada pela proposta do Relatório, atende apenas à ordem econômica e seus interesses, reduzida a definições simplistas e que de longe acenam para o fenômeno em análise. 

 

No que se refere à eficiência,é problemático restringi-la à critérios econômicos, ou de ‘porte populacional’. Quando se trata de desempenho, a literatura é uníssona em dizer que ‘eficiência’, juntamente com a ‘qualidade’ e ‘efetividade’ são os conceitos subsidiários (que apoiam) a ideia de ‘desempenho’. Ao se referir especificamente à ‘eficiência’, é pertinente ressaltar que existem vários ‘tipos’, não devendo se limitar apenas ao ‘tipo econômico’, afinal, quando se trata de medir o desempenho de sistemas de saúde é essencial colocar em pauta pelo menos três aspectos da eficiência: a eficiência administrativa; a eficiência econômica; e a eficiência jurídica, por isso, reitera-se que o termo ‘eficiência’ não é privativo de nenhuma disciplina, valendo à pena ordenar os conceitos e interrogar as nomenclaturas porque nem sempre as semelhanças nominais traduzem semelhanças de conteúdo 10.

 

Ante o exposto, é possível dizer que o esforço realizado pelo Banco Mundial não logrou superar as dificuldades inerentes às operações avaliativas desse tipo e envergadura, todas marcadas pela formação de um construto ideológico a respeito da avaliação de desempenho de sistemas de saúde.

 

6 – Ainda em relação ao aspecto da eficiência, o Relatório apresenta um item como proposta: “Incentivar o aumento da produtividade dos profissionais de saúde. Isso exigiria implementar políticas de remuneração vinculadas a qualidade e ao desempenho, como pagamento por desempenho” (p.118). 

 

Contra-argumento: Os instrumentos de gestão (“pagamentos por desempenho”) são excelentes métodos de se intensificar o trabalho e dele expropriar mais-valor. Na lógica do (neo) liberalismo, o “Resultado” é substantivado ao título de “Contrato”. Assim, a “contratualização de resultados” na gestão pública, em especial na saúde, torna o trabalhador rendido ao processo de intensificação que reforça o controle em função dos pagamentos pela produção de procedimentos e não em função das condições de saúde da população.

 

A literatura especializada aponta que a “contratualização de resultados” na gestão pública gerou duas correntes diferentes de práticas de trabalho sob à lógica do (pagamento por desempenho): a) uma que visou influenciar os comportamentos dos trabalhadores, sendo portanto uma nova forma de controle da produtividade acompanhada do estabelecimento de sanções positivas e negativas em torno do desempenho esperado pelo gestor e b) outra que admitia que há inúmeras barreiras a serem removidas que impedem o administrador público de administrar. Neste caso, o “acordo” e não o “contrato” de resultados é visto como instrumento de coordenação. A experimentação, e não o controle é a aposta para a melhoria do desempenho 12.

 

A administração pública brasileira já adotou para o alcance dos resultados o controle do trabalhador por meio de ganhos/perdas de incentivos. No SUS isto correspondeu à implantação do PMAQ (AB, CEO, NASF etc) e, no natimorto IDSUS, como também nas práticas gerenciais das Organizações Sociais e seus congêneres. Portanto, isto é mais uma demonstração do quanto o Estado brasileiro é subserviente às propostas do Banco Mundial. 

 

Mesmo sabendo-se que a maior restrição da administração pública brasileira é a rigidez de procedimentos administrativos e uma execução orçamentária legalmente difícil (ao qual se aplicaria a segunda proposta), a aposta da vertente brasileira repousa na modificação do estilo de trabalhador; ou seja, na aquisição de um comportamento “empreendedor” inseridos em um ambiente tradicionalmente burocrático. É na ênfase desta vertente que o desempenho ficou associado apenas à produtividade e à quantidade de trabalho, cabendo, hoje, a resistência contumaz ao aprofundamento dessas práticas gerenciais.

 

Quando se trata do trabalho em saúde, sabe-se que ele depende radicalmente do trabalho coletivo e interdisciplinar. O que está em jogo nessa discussão é a “zona cinzenta” entre trabalho individual e trabalho coletivo. Em outros termos, a dicotomia ‘resultados do indivíduo’ e ‘resultados das organizações’. O que, para nós, resta problematizar é: será que as “Remunerações Variáveis por Desempenho” servem ao “Empresariamento-de-si” ou ao “Aprendizado Organizacional”? De acordo com o supracitado sobre a gestão brasileira, tudo aponta para a primeira opção.

 

Portanto, trata-se de alertar que as ações e serviços de saúde do SUS não podem ser tratados como “uma empresa”, em que se busca o ganho de produtividade e remuneração em função do desempenho. Essa visão tem apontado problemas para a atenção à saúde, principalmente por meio das Organizações Sociais (OS), que se baseiam em produtividade referente a, por exemplo, número de atendimentos. Isto se distancia da lógica de atenção à saúde, principalmente no modelo de atenção estabelecido pela importância da estratégia de saúde da família. 

 

 

REFERÊNCIAS

 

1. LACERDA, A.C. Crônica de um (des)ajuste anunciado. In: DOWBOR, L et al. A crise brasileira. São Paulo: Contracorrente, 2016. p. 149-168.

2. MENDES, A. ; FUNCIA, F. O SUS e seu financiamento. In : MARQUES, R.M. et al. Sistema de saúde no Brasil: organização e financiamento. Brasília: Abres/MS/OPAS, 2016, v. 1, p. 139-168.

3. Grupo Técnico Institucional de Discussão do Financiamento do SUS apud Conass, Conasems. Nota sobre a PEC 241/2016, 2016.

4. MACHADO, F.G. Renúncia de Arrecadação Fiscal em Saúde no Estado Brasileiro : forma política-jurídica no capitalismo contemporâneo. [dissertação de mestrado]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, 2017.

5. KLIMAN, A. The failure of capitalist production. London: Pluto, 2012.

6. MARQUETTI, A; HOFF, C. ; MIEBACH, A. Lucratividade e Distribuição: a origem econômica da crise politica brasileira. Texto apresentado ao XVIII Encontro Nacional de Economia Política, Sociedade Brasileira de Economia Política, Campinas, 2017.

7. FRENK, J. The global health system: strengthening National Health Systems as the next step for global process. PLoS Medicine. v. 7, n. 1, p. e1000089, 2010.

8. CARNUT, L.; MASSERAN, J.A.M. Entre a filosofia jurídica e a saúde coletiva : o conceito de desempenho no decreto 7.508/2011 vis-à-vis a integralidade da assistência à luz do pós-positivismo. Revista de Direito Sanitário. São Paulo, v. 18, n. 1, p. 37-58, 2017.

9. HOFFMAN, S. J. et al. Background paper on conceptual issues related to health systems research to inform a WHO global strategy on health systems research. A Working Paper in Progress Last Revised 29 February, 2012.

10. CARNUT, L. Crítica a modelos de avaliação de desempenho de sistemas de saúde [tese de doutorado]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo; 2015.

11. CARNUT, L.; CAPEL, P.N. Avaliação de desempenho de sistemas de saúde e gerencialismo na gestão pública brasileira. Saúde e Sociedade. São Paulo,  v. 25, n. 2, p. 290-305, 2016.

12. KETTL, D.F. The global revolution in public management: driving themes, missing links. Journal of Policy Analysis and Management, Storrs, v. 16, n. 3, p. 446-62, 1997.

 

 

ANEXO

1. LEGISLAÇÃO BÁSICA EM SAÚDE PÚBLICA – SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE – VERSÃO 27.11.2017 por José Adalberto Dazzi

Texto anexo de terceiro é de estrita responsabilidade de seu autor.

 

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