Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

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ISSN 2525-8583



Domingueir nº 15 - Abril 2024

Os governos devem adotar compromissos ousados em matéria de Saúde

Por Carmino de Souza


Declarações políticas anteriores de vários governos e da própria Organização Mundial da Saúde (OMS) bem como outros documentos internacionais proporcionam uma base sólida para a adoção de compromissos ousados em diversas questões de saúde pública.

Todas as declarações da ONU e de Ministérios de Saúde devem assumir compromissos ousados para proteger as populações vulneráveis, incorporar termos de acesso equitativos na investigação financiada publicamente, colaborar em modelos de incentivos de desvinculação e reconhecer a importância das iniciativas lideradas pela comunidade na área da saúde.

Colocaremos as ações em quatro subtemas abaixo apresentados:

1- Proteger todas as populações vulneráveis

Pessoas transexuais, homens que fazem sexo com homens, profissionais do sexo, pessoas que usam drogas, pessoas nas prisões, populações originárias etc. enfrentam discriminação no domínio da saúde, muitas vezes devido a leis, políticas ou práticas existentes. Por causa disso, os governos têm reafirmado rotineiramente os direitos fundamentais destes grupos, por exemplo, na declaração política de 2021 sobre HIV, na declaração política de 2021 sobre o acesso global equitativo às vacinas contra a Covid-19 , na declaração política de 2018 sobre a luta contra a tuberculose, além de vários documentos adicionais.

Relatórios reconhecem a importância de se centrar explicitamente nos direitos das pessoas vulneráveis, também para as populações, incluindo o direito ao mais elevado padrão de saúde possível.

Em linha com o uso anterior da linguagem e a prática na conclusão de tais declarações, todas as futuras declarações políticas sobre saúde devem reconhecer as populações vulneráveis que são frequentemente sujeitas à discriminação;

2- Incorporar termos de acesso fortes e equitativos em pesquisas com financiamento público

As contribuições públicas e filantrópicas representam uma parte significativa do financiamento da investigação e desenvolvimento farmacêutico. De acordo com vários relatos, os Estados Unidos investiram dezenas de bilhões de dólares para desenvolver, produzir e comprar vacinas de mRNA para o enfrentamento da Covid-19. Além disso, setenta por cento do financiamento da investigação e desenvolvimento da tuberculose em 2021 veio de entidades públicas, com o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH) a fornecerem a maior dotação única, de 354 milhões de dólares. O financiamento público e privado filantrópico é considerável em outras áreas, como nas terapias genéticas e avançadas para o Câncer e Doenças Genéticas, como o Car-T Cell em implantação no Brasil.

Os financiadores públicos e privados filantrópicos, no entanto, muitas vezes não exigem contratualmente que os seus beneficiários partilhem abertamente o conhecimento e distribuam os seus produtos de forma equitativa em todo o mundo. Embora fraco, o compromisso de facilitar o acesso equitativo às tecnologias apoiadas por instituições públicas foi refletido numa resolução adotada pela ONU em março de 2022.

Com base nisso, devem ser adotados compromissos mais fortes para incorporar salvaguardas de acesso equitativo nos esforços de investigação e desenvolvimento financiados por instituições públicas ou privadas filantrópicas nas futuras declarações políticas;

3- Colaborar na desvinculação dos modelos de incentivos à investigação e ao desenvolvimento

A inovação farmacêutica pode ser incentivada através de modelos que desvinculem os custos de investigação e desenvolvimento dos preços finais praticados. Isto é fundamental para garantir a equidade e acesso. Dado o potencial para promover o acesso às tecnologias de saúde, a importância e a necessidade de colaboração internacional como ocorreu na desvinculação de 2018 para o HIV e sobre a luta contra a tuberculose e da declaração de 2016 sobre a resistência antimicrobiana.

No entanto, nenhum dos projetos de declarações assume atualmente compromissos ousados e viáveis para implementar progressivamente modelos de incentivos de desvinculação.

Embora seja bem-vinda uma redação final que reconheça a importância da desvinculação, os governos devem ir mais longe e adotar compromissos ousados para colaborar na implementação destes tipos de modelos de incentivos;

4- Reconhecer a importância e apoiar iniciativas lideradas pela comunidade

A liderança comunitária tem um impacto mensurável na saúde das populações. Isto é especialmente verdadeiro para as populações-alvo e vulneráveis, onde tem sido associado a uma melhor prevenção do HIV e ao aumento, por exemplo, do planejamento familiar. Reconhecendo a sua importância, a ONU apelou à colocação das comunidades no centro da prestação de serviços e dos mecanismos de monitorização em múltiplas fontes internacionais.

Por exemplo, comprometeram-se a “fazer parcerias com líderes locais e a sociedade civil, incluindo organizações comunitárias, para desenvolver e ampliar os serviços de HIV liderados pela comunidade e para abordar o estigma e a discriminação”. Apelaram ainda à garantia da participação das comunidades “na concepção, execução e monitorização de todas as estratégias, programas e intervenções que as afetam”.

Apesar dos seus impactos positivos conhecidos e do reconhecimento em documentos e relatórios acordados internacionalmente, a linguagem que reconhece a importância da liderança comunitária permanece ausente ou está sendo contestada por algumas partes interessadas que participam nas negociações dos projetos de declarações políticas.

A oposição ao reconhecimento e aos compromissos de apoio à liderança comunitária é infundada, dado o seu conhecido impacto positivo.

Conclusão

Já existem precedentes de fortes compromissos políticos em questões relacionadas com a erradicação da tuberculose, a prestação de cobertura universal de saúde e o reforço da preparação e resposta às pandemias.

Os governos devem basear-se nesta base sólida e comprometer-se a proteger todas as populações vulneráveis, incorporar o acesso equitativo à investigação financiada pelos poderes públicos, colaborar em modelos de desvinculação e colocar as comunidades no centro da prestação e monitorização de serviços de saúde.


Publicado em Hora Campinas


Carmino Antônio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020. Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo em 2022 e atual Presidente do Conselho de Curadores da Fundação Butantan. Atual Diretor Científico da Associação Brasileira de hematologia e Hemoterapia (ABHH) da Associação Médica Brasileira (AMB).




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