Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
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Conselho Editorial
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ISSN 2525-8583



Domingueira nº 11 - Março 2024

Anatomia de uma crise: hospitais federais no Rio de Janeiro

Por Lenir Santos


Os hospitais federais do Rio de Janeiro são frutos de uma época em que a Capital Federal do país era a cidade do Rio de Janeiro, ainda no estado da Guanabara, centro dos acontecimentos políticos da Nação. Certamente que seria lá que o Governo Federal construiria seus hospitais mais importantes, como Hospital dos Servidores, inaugurado em 1934, hoje conhecido como Hospital Federal dos Servidores do Estado, que foi um centro de excelência, reconhecido como o mais avançado hospital público da América Latina, considerado classe A pelo Sistema Internacional de Classificação de Hospitais. Um hospital que cuidou da saúde de presidentes da República, com corpo clínico composto por docentes, titulares de renomadas universidades.

Ao lado desse afamado hospital se somaram, ao longo do tempo, outros hospitais federais, como Instituto Nacional de Câncer (INCA), de 1938; Hospital Federal do Andaraí, de 1945; Hospital Federal Cardoso Fontes, de 1945; Hospital Federal de Bonsucesso, de 1948; Instituto Nacional de Cardiologia (INC), de 1954; Hospital Federal de Ipanema, de 1955; Hospital Federal da Lagoa, de 1958; Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (INTO), de 1973 (1).

Muitos deles foram criados por institutos previdenciários federais existentes à época. A gestão desses hospitais estava a cargo desses órgãos previdenciários, dada a dicotomia existente na saúde, com o Ministério da Saúde (MS) incumbido tão somente de atividades preventivas (vigilâncias em saúde) e o sistema de previdência, dos serviços curativos prestados aos seus beneficiários (serviços médico-ambulatoriais, hospitalares). Inicialmente foram administrados pelo IAPs; depois pelo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que o sucedeu, e, finalmente, pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps).

Para melhor esclarecer, em 1966, o Decreto-Lei n° 72, unificou os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) e criou o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), o qual passou a administrar os hospitais até a criação, em 1977, pela Lei n° 6.439, do Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (Sinpas), composto por seis entidades da administração indireta, além da Central de Medicamentos, quando então se criou o Inamps, o administrador de todos os serviços de assistência médica (ambulatorial, hospitalar, apoio diagnóstico etc.) destinados aos trabalhadores integrantes do Regime Geral de Previdência Social.

Quando da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, todos os serviços de saúde federais a cargo da previdência social passaram para o Ministério da Saúde e, em 1993, o Inamps foi extinto. Em 1990, na mesma linha, a Lei n° 8.080, de 1990, determinou em seu art. 45, §1°, que todos os serviços de saúde de sistemas previdenciários de servidores públicos estaduais e municipais fossem incluídos no SUS ou extintos. A ideia era acabar com o fracionamento dos serviços de saúde entre diversos setores de um mesmo governo, o que deu origem à diretriz do SUS, conhecida como direção única em cada esfera de governo. Não seria demais lembrar que as diretrizes constitucionais do SUS impuseram a reorganização funcional dos hospitais, enquanto referência secundária e terciária de apoio e qualificação resolutiva da rede de atenção primária.

Por outro lado, em razão da necessidade de a União transferir para os estados e municípios serviços de saúde federais que estivessem no âmbito da competência municipal ou estadual, em acordo ao disposto nos artigos 15 a 18 da Lei n° 8.080, de 1990, com exceção dos serviços do Instituto Nacional do Câncer (Inca) e os da Fundação das Pioneiras Sociais (2) (art. 41) que deveriam manter-se vinculados à Direção Nacional do SUS (Ministério da Saúde) como referencial de prestação de serviços, formação de recursos humanos e transferência de tecnologia.

Desse modo, todos os serviços de saúde federais prestados à população de forma direta (serviços ambulatoriais, hospitalares, de apoio diagnóstico, de atenção primária e outros correlatos) que estivessem vinculados ao governo federal, deveriam, para cumprir a determinação do art. 198, I, da Constituição e da Lei n° 8.080, ser transferidos para o ente federativo com competência e capacidade socioeconômica, demográfica, geográfica para tal.

Desse modo, os hospitais federais com sede na cidade do Rio de Janeiro, com a exceção prevista acima, deveriam ser transferidos para o Estado do Rio de Janeiro, ou para o seu Município, conforme o porte dos serviços em relação à capacidade municipal, e as regras que fossem estabelecidas na regionalização.

Aqui cabe um parêntese sobre a direção única em cada esfera de governo, acima citada, conforme inciso I do art. 198 da CF, que não se refere a ação federal ou estadual no território municipal, por se tratar de um conceito setorial e não territorial, como algumas vezes, de forma equivocada, tem sido interpretada (3). Fechando o parêntese, nos anos 90, essa discussão da transferência de serviços tomou corpo e ação, dando forma à estadualização e municipalização da saúde em todo o país.

Em 1998 tomou corpo também a hipótese de se municipalizar sete dos hospitais do Rio, tendo a União firmado acordo com o Município para transferir a gestão de setes unidades federais de saúde (4). O acordo previa que a União contribuiria para o custeio desses serviços mediante repasse de recursos; contudo, em 2005, houve uma crise e um impasse entre ambos os entes, com o Município alegando dívida da União na ordem de R$192,6 milhões (2005), o que acabou pondo fim ao acordo, com a decretação (5), pelo Ministério da Saúde, de situação de calamidade pública no sistema de saúde municipal, o que foi julgado inconstitucional pelo STF, com o retorno desses hospitais ao governo federal.

Em 2016, divulgou-se na imprensa a intenção do Prefeito-eleito da cidade do Rio de Janeiro de municipalizar nove unidades de saúde federais situadas na Capital, o que levou o Tribunal de Contas do Município do RJ (TCMRJ) a elaborar o Estudo sobre a viabilidade da municipalização das unidades de saúde federais (6) para subsidiar a decisão municipal. Em acordo a este estudo, em 2015, os hospitais citados na nota de rodapé n° 4 deste trabalho, custaram ao Fundo Nacional de Saúde, por volta de R$ 1,4 bilhão (R$ 115 milhões/mês, em média), sendo tão somente 3% para investimento, ainda que a necessidade fosse bem superior a esse percentual, conforme documento do TCMRJ. A municipalização não se realizou.

De 2005 até o presente momento não foi solucionado o traspasse dos serviços federais de saúde situados na cidade do Rio de Janeiro. Os hospitais do Ministério da Saúde estão sob a sua administração através de seu Departamento de Gestão Hospitalar (DGH/SAES), no Rio de Janeiro.

Voltando os olhos para os anos 2007/2009, foi aventada pelo MS a hipótese de se dar novo formato jurídico a esses hospitais por eles serem integrantes da administração direta federal não compatível à exigência de rapidez em suas decisões cotidianas, uma vez que dotada de poderes políticos, de autoridade, estratégicos, tributários, que nem sempre demandam agilidade e, muitas vezes, pelo contrário, precisam de tempo para estudos e tomada de decisão, não está apropriada a prestar serviços assistenciais direitos à população.

Na ocasião, após estudos, o formato que se entendeu cabível foi o modelo da fundação estatal, prevista no Decreto-Lei n° 200, de 1967 e na Constituição de 1988 (7); entretanto nenhuma decisão foi tomada, continuando os hospitais federais da cidade do Rio de Janeiro na mesma situação dos anos 90, todos na administração direta do MS. São três décadas com contínuas críticas à forma de gestão desses hospitais, à influência política nas nomeações para cargos de confiança, dentre outros aspectos que impactam negativamente a gestão, sem uma solução concreta.

Não obstante, neste mês de março de 2024, uma notícia veiculada na TV, que na realidade reproduziu sem aprofundamento alguns aspectos da má gestão de décadas em alguns desses hospitais – hospitais, diga-se, que já foram de excelência, que cuidaram de presidentes da República, de pessoas como Clarice Lispector, que manteve-se em tratamento no Hospital da Lagoa – instalou uma crise no MS e, em 24 horas, o Secretário de Atenção Especializada foi exonerado, sem nenhuma evidência de culpa, profissional de saúde competente, capaz, com sólido conhecimento sobre gestão do SUS, além de jogarem pedras na Ministra Nísia Trindade, chamando-a de má-gestora e pessoa que não “fala grosso”.

Ora, tantos que falaram grosso e estiveram no mesmo cargo não foram capazes de resolver tal questão, por que a Ministra Nísia – a primeira mulher ministra da saúde – teria que resolvê-la falando grosso e em curto prazo de tempo? Os hospitais federais no Rio demandam soluções, ainda que urgentes, complexas, racionais, desvinculadas de açodamento, para pôr fim aos vícios públicos que os permeiam há décadas, não permitindo que seus serviços sejam bem executados e atendam ao interesse da população. Mas cobrar a gestão atual do MS desta solução urgente de quase 30 anos, em apenas 15 meses de mandato, é não conhecer a história desses hospitais e atirar a esmo, ou quem sabe, no alvo pretendido. Mesmo que possa ter havido alguma mora da gestão, o exagero na criação dessa crise é patente.

Certamente, soluções existem e precisam se tornar efetivas. Mas transferir os hospitais do Rio para o Ministério da Educação é uma volta ao passado, lembrando que o Ministério da Saúde foi desmembrado, por lei, do Ministério da Educação em 1953 e a direção única em cada esfera de governo não mais admite fracionamento dos serviços de saúde em uma mesma esfera de governo, lembrando ainda que tem sido lamentável a pouca atuação da área da Saúde na formação de profissionais para o modelo assistencial público.

Além do mais, os hospitais universitários federais vinculados à educação, nunca foram modelos de gestão, tanto que foi criada a Ebserh para apoiar a sua gestão que não andava bem, e não faria nenhum sentido essa empresa pública do Ministério da Educação, criada para cuidar dos hospitais de ensino federais, ser a solução para os hospitais do Rio de Janeiro, todos integrantes do SUS.

A melhor solução, o Estado do Rio (ou o Município) assumindo esses hospitais, com apoio técnico e financeiro da União, não deu certo em todos esses anos e pensamos que não será agora que dará.

Entrementes, entendemos que talvez possa haver mais de uma solução para os institutos e hospitais federais, como: a) a criação de um consórcio público de saúde entre a União, o Estado e o Município do Rio de Janeiro (8). Uma solução que demanda estudo, pois haverá de se considerar questões preciosas como a gestão de pessoal, o modelo organizacional descentralizado, o sistema de governança assemelhada ao das empresas públicas, inclusive quanto aos órgãos estatutários, o regime de compras, aspectos da regionalização, dentre outros; ou b) a criação de fundação estatal interfederativa.

Poderia na realidade ser uma, duas ou até três fundações estatais interfederativas para abranger os três institutos, ou se quiser preservar o Inca no âmbito federal, a lei permite; outra para todos os hospitais, ou ainda, se se pretender agrupar os hospitais em duas fundações, em acordo aos critérios da regionalização, os vazios assistenciais; decisões a serem tomadas a partir de estudos técnico-administrativos, sanitários, aprofundados, bem debatidos, que apontem a melhor solução.

Essas fundações seriam instituídas pela União, Estado e Município do Rio de Janeiro, sob a supervisão institucional do MS. A fundação interfederativa não seria dependente do orçamento público e se manteria em acordo à contratualização de serviços com os três entes instituidores (3 ajustes jurídicos). Importante, em qualquer situação, o amplo debate, com todos os envolvidos e fundamentação jurídica sólida, como ocorreu com o convênio SUDS – Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde, de 1987, que descentralizou serviços federais para todos os estados brasileiros.

Seria oportuno, dispor, ainda, na lei autorizativa federal, que se aplica à fundação, no que couber, os ditames da lei das empresas estatais, especialmente o seu regime de aquisição de bens e serviços, de elegibilidade dos membros do seu conselho curador, conselho diretor, auditoria, dentre outros.

Por fim, solução existe para o adequado funcionamento dos hospitais federais do RJ, complexa, de médio prazo, mas factível. O fundamental é que este tema seja de uma vez por todas priorizado pelo Ministério da Saúde para não ser só mais uma crise de uma mesma crise de décadas.


(1) Somente o Into foi criado depois da mudança do Distrito Federal para Brasília.

(2) Na medida em que a Fundação das Pioneiras Sociais deixou de ser pública e passou a ser privada, conforme a Lei n° 8.246, de 1991, perdeu essa sua função e significado, restando somente o Inca.

(3) A direção única em cada esfera de governo define que nenhum governo pode fracionar os serviços de saúde em diversos ministérios ou secretarias, conforme ocorria antes do SUS, com a União com quatro ministérios cuidando da saúde. Jamais poderia ser territorial esse conceito, porque todo o SUS estaria sob direção única municipal, uma vez que todos os serviços federais e estaduais estão sediados em um município. A intenção era não haver fracionamento do comando da saúde dentro de um mesmo governo.

(4) Hospitais Cardoso Fontes, de Ipanema, da Lagoa, do Andaraí, de Curicica, Centro Psiquiátrico Pedro II e o Instituto Psiquiátrico Phillipe Pinel. Fonte: https://www10.trf2.jus.br/comite-estadual-de-saude-rj/wp-content/uploads/sites/52/2019/06/cartilha_municipalizacao_hospitais_v14_lores.pdf

(5) Decreto Federal n° 5.392, de 2005. Declara estado de calamidade pública no setor hospitalar do Sistema Único de Saúde no Município do Rio de Janeiro, e dá outras providências.

(6) Consultar a fonte acima citada: https://www10.trf2.jus.br/comite-estadual-de-saude-rj/wp-content/uploads/sites/52/2019/06/cartilha_municipalizacao_hospitais_v14_lores.pdf

(7) Questionou-se à época a constitucionalidade de tal modelo, fato hoje superado por decisão do STF considerando a fundação estatal constitucional.

(8) Guardada as devidas proporções, a experiência de um consórcio entre os três entes federativos foi a solução para organizar e colocar em funcionamento as Olimpíadas do Rio de Janeiro. Lei n° 12.396, de 2011, ora revogada.


Lenir Santos - Doutora em Saúde Pública pela Unicamp. Advogada sanitarista, especialista em direito sanitário pela USP. Presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado – IDISA.




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