
Apresentação
A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.
Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos
Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado
ISSN 2525-8583
Domingueira nº 12 - Maio 2025
Índice
- Judicialização da saúde e formação jurídica: a ausência que o Fonajus ainda precisa enfrentar - por Thiago Lopes Cardoso Campos
Judicialização da saúde e formação jurídica: a ausência que o Fonajus ainda precisa enfrentar
Por Thiago Lopes Cardoso Campos
O Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde, iniciativa histórica do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), completou 15 anos de existência [1]. Criado pela Resolução nº 107/2010, o Fonajus consolidou um espaço de articulação e racionalização da resposta judicial às demandas de saúde, num contexto de crescente judicialização em todo o país.
Os avanços são inegáveis. A criação dos Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus) [2], o banco nacional de pareceres técnicos (e-NATJus) e, mais recentemente, a instituição da Política Judiciária Nacional de Saúde [3] são conquistas que merecem ser celebradas. Estes instrumentos trouxeram mais técnica e previsibilidade às decisões judiciais, beneficiando tanto a efetividade dos direitos quanto a gestão das políticas públicas sanitárias.
Contudo, ao celebrar essa trajetória, é necessário reconhecer que ainda há um desafio fundamental a ser enfrentado: a ausência do direito sanitário na formação jurídica brasileira.
O direito sanitário, enquanto campo jurídico específico, constitui um instrumento essencial para a concretização do direito à saúde e a organização das políticas públicas sanitárias. Como já alertava Sueli Dallari em 1988 [4], a efetividade do direito à saúde exige não apenas a criação de serviços, mas a construção de uma arquitetura jurídica que ampare, proteja e promova a saúde coletiva. Essa construção permanece incompleta.
Saúde como direito fundamental
A Constituição de 1988 elevou a saúde à condição de direito fundamental [5], impondo ao Estado o dever de formular e implementar políticas públicas que reduzam os riscos de adoecimento e promovam condições dignas de vida. O Sistema Único de Saúde (SUS) nasceu dessa concepção, estruturado sob os princípios da universalidade, integralidade e equidade.
O SUS, entretanto, não é apenas uma estrutura administrativa ou assistencial: é um objeto jurídico complexo, que articula normas constitucionais, leis infraconstitucionais, atos normativos infralegais e pactuações interfederativas. Essa complexidade exige um corpo jurídico próprio, que compreenda a saúde em sua dimensão coletiva, regulatória e distributiva.
O direito sanitário, por sua natureza, é um campo interdisciplinar, que exige diálogo com as ciências da saúde, a epidemiologia, a bioética, a gestão pública e a economia da saúde. O jurista que atua nesse campo deve ser capaz de interpretar normas jurídicas à luz de evidências científicas e das realidades sociais, estruturando decisões que respeitem tanto os marcos legais quanto os parâmetros técnicos sanitários.
As Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Direito (Resolução CNE/CES nº 5/2018) [6], contudo, não mencionam o direito sanitário como conteúdo obrigatório, nem reconhecem a saúde como eixo estruturante da formação humanística dos juristas. Essa omissão compromete a formação dos bacharéis em direito e impede que o sistema de justiça esteja plenamente preparado para lidar com a complexidade das políticas públicas de saúde.
Judicialização da saúde
O fenômeno da judicialização da saúde, com mais de 870 mil processos em tramitação até fevereiro de 2025 [7], revela esse descompasso. Como aponta Leonel Pires Ohlweiler, a falta de uma formação crítica e integrada leva a uma juridicidade fragmentada, marcada por decisões pulverizadas, desarticuladas da lógica das políticas públicas e, muitas vezes, socialmente injustas [8].
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) já avançou nesse debate. Em 2017, publicou a cartilha “Atenção Básica à Saúde no Brasil”: O Ministério Público e a sua atuação, recomendando a inclusão do direito sanitário nos cursos de formação, ingresso e vitaliciamento de membros do Ministério Público [9]. Reconheceu-se, assim, que a atuação institucional em saúde exige preparo técnico-jurídico especializado.
A consolidação do direito sanitário como campo jurídico próprio no Brasil muito se deve ao trabalho pioneiro de juristas como Lenir Santos [10] e Fernando Aith [11], que há décadas defendem a necessidade de uma doutrina jurídica específica para a saúde coletiva. Seus esforços teóricos e institucionais demonstram que a efetividade do direito à saúde depende da existência de normas claras, de estruturas públicas sólidas e da compreensão da saúde como direito social fundamental.
Sem a construção de uma teoria jurídica própria e de formação específica, a judicialização continuará a crescer como resposta individualizada à ausência de respostas estruturadas.
Políticas judiciárias
É tempo de o Poder Judiciário trilhar o mesmo caminho que outros órgãos constitucionais já iniciaram. A consolidação de políticas judiciárias é necessária, mas insuficiente sem a formação crítica e especializada de magistrados e servidores. Formar operadores jurídicos capazes de compreender o SUS, os princípios constitucionais da saúde, os determinantes sociais e as pactuações federativas é passo essencial para construir soluções estruturantes.
A transformação necessária não se esgota na produção de pareceres técnicos. Exige a formação de juristas comprometidos com a saúde como direito fundamental, com a política pública como instrumento de justiça social e com o SUS como projeto civilizatório de proteção da vida e da dignidade humana.
Incluir o direito sanitário na formação jurídica não é apenas uma inovação pedagógica. É um imperativo constitucional e democrático, sem o qual o sistema de justiça continuará a reproduzir desigualdades e a comprometer a efetividade do direito à saúde.
[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.
[2] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 107, de 6 de abril de 2010. Cria o Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (FONAJUS).
[3] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 238, de 6 de setembro de 2016. Institui os Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus).
[4] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 530, de 28 de novembro de 2023. Institui a Política Judiciária Nacional de Saúde.
[5] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Relatório “Judicialização e Sociedade”. Brasília: CNJ, 2021.
[6] CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Resolução CNE/CES nº 5, de 17 de dezembro de 2018. Estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito.
[7] DALLARI, Sueli G. Uma nova disciplina: o direito sanitário. Revista de Saúde Pública, v. 22, n. 4, p. 327–334, 1988. DOI: 10.1590/S0034-89101988000400010.
[8] OHLWEILER, Leonel Pires. Perspectivas sociojurídicas do poder de polícia sanitário e emergência de saúde pública: vulnerabilidades e o enfoque dos direitos humanos. Revista de Informação Legislativa, v. 58, n. 230, p. 195–218, abr./jun. 2021.
[9] CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Atenção Básica à Saúde no Brasil: O Ministério Público e a sua Atuação. Brasília: CNMP, 2017. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/acao_nacional/ANF/20170629_ANF_CDDF-Atencao_Basica_Saude.pdf. Acesso em: 15 abr. 2025.
[10] SANTOS, Lenir. Sistema Único de Saúde: os desafios da gestão interfederativa. São Paulo: Hucitec, 2013.
[11] AITH, Fernando Mussa Abujamra. Teoria geral do direito sanitário brasileiro. 2006. Tese (Doutorado) — Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo.
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Thiago Lopes Cardoso Campos, é advogado sanitarista, conselheiro estadual de saúde da Bahia, vice-presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa) e consultor jurídico da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh).
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