Apresentação
A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.
Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos
Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado
ISSN 2525-8583
Domingueira Nº 23 - Junho 2020
Índice
- Boletim Cofin 2020/06/03/1-2AeB-3-4AaD - por Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke
- Resíduo sólido urbano e a problemática da COVID-19 - por Núbia Natália de Brito
Boletim Cofin 2020/06/03/1-2AeB-3-4AaD
Por Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke
Resíduo sólido urbano e a problemática da COVID-19
Por Núbia Natália de Brito
INTRODUÇÃO
O acesso aos serviços públicos de saneamento é indispensável para a saúde humana à falta desses serviços pode acarretar uma série de doenças infecto-parasitárias, além de tornar insalubres os agrupamentos humanos nos ambientes urbano e rural. Não obstante, no Brasil, historicamente os grupos marginalizados como a população residente em assentamentos informais, sofrem mais do que outros grupos com a falta de tais serviços (Nahas, et al.; 2019; Neves-Silva e Heller, 2016).
O saneamento básico tem papel fundamental no controle da disseminação, por exemplo, de vírus no ambiente, diminuindo os riscos de transmissão. São notórias as correlações entre a falta de saneamento, incluindo acesso à água potável, esgotamento sanitário, coleta e disposição de resíduos sólidos urbanos (RSU) com o aumento das taxas de morbidade e mortalidade por doenças infecciosas.
As desigualdades no acesso aos serviços de saneamento básico causam impacto negativo à saúde pública, principalmente nas populações de baixa renda ou mais vulneráveis que vivem na periferia das grandes cidades (Prado e Miagostovich, 2014). Portanto doenças de aspectos sanitárias incidem em lugares onde a desigualdade social é maior.
Do meio ambiente vírus como o da síndrome respiratória aguda grave SARS-CoV pode ser transmitido para as mãos e vias respiratória sendo persistentes em superfícies por até 96 h, há estudos que indicam infectividade por até 6 dias indicando uma capacidade de sobrevivência alta (Rabenau, et al.; 2005).
O vírus SARS-CoV-2 pode ser dispersar na atmosfera na forma de aerossóis em diversos ambientes, inclusive durante a coleta de resíduos sólidos urbanos. No Brasil a coleta de resíduos sólidos urbanos sé dá por profissionais que se dependuram em caminhões que possuem uma prensa compactadora acionada diversas vezes para juntar a maior quantidade de lixo possível.
A linha de transmissão da COVID 19 pode acontecer desde a coleta do RSU pelo trabalhador do serviço de coleta, até mesmo durante a compactação do RSU dentro do caminhão, que pode liberar fragmentos orgânicos e inorgânicos para atmosfera contaminados ou não, fato este real tendo em vista que muitas vezes quando passamos perto de um caminhão coletor de resíduos sólidos urbanos muitas vezes sentimos o odor característico, o odor logicamente está vinculado a gases liberados para atmosfera.
Em muitos lugares durante a coleta do RSU pelos caminhões compactadores também se observa a liberação até mesmo de chorume de lixo na estrada. O chorume de lixo é um líquido escuro com forte mau cheiro e tóxico proveniente da umidade da massa de lixo.
Após a coleta do RSU o mesmo é encaminhado ao aterramento de resíduos sólidos municipais que é a forma de gerenciamento predominante. Os aterros sanitários são locais com sistema de coleta e tratamento dos líquidos e gases produzidos no aterro, o local é impermeabilizado com materiais resistentes e os resíduos são alocados em celas de controle. Em geral, os gases gerados a partir da decomposição são queimados, mas podem ser canalizados para serem reaproveitados como fonte de energia (Chinelatto, et al.; 2015).
No entanto, grande parte do RSU é disposta de maneira inadequada como em aterros controlados e lixões. Os aterros controlados são locais que recebem uma impermeabilização do solo, feito regularmente por polipropileno, porém os gases e líquidos produzidos não recebem qualquer forma de tratamento. Os lixões são caracterizados por serem depósitos a céu aberto, sem nenhum tipo de tratamento, apresentam alta contaminação do solo e da região nos arredores, contaminando também o lençol freático através da percolação dos líquidos (Chinelatto, et al.; 2015).
O destino dos resíduos sólidos em 50,8% dos municípios no Brasil são os “lixões” (Paiva e Souza 2018), o lixo apenas dispensado frente à intemperismos também pode suspender material particulado com micro-organismos e, portanto vírus para a vizinhança. Inclusive uma das medidas recomendada pela Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental sugere a gerência de aterros sanitários uma contínua e maior cobertura dos resíduos ali dispensados durante essa pandemia.
Importante também lembrar que no Brasil há muitos catadores de resíduos recicláveis que vivem do resíduo sólido urbano em contato direto com aterros, lixões e resíduos de todas as características, pessoas estas que muitas vezes vivem a margem, invisíveis a sociedade, confundidos com o próprio lixo e o descaso social contribui ainda mais com essa realidade.
A pandemia pela qual estamos passando somente veio reforçar que pessoas em vulnerabilidade social possuem poucos recursos para enfrentar as adversidades do cotidiano que lhes são apresentadas, sofrendo discriminação e tendo seus direitos violados (Neves-Silva, et al.; 2018). As vozes de pessoas que dependem do “lixo” para sobreviver frente a uma pandemia que coloca em risco suas vidas e de familiares não podem ser silenciadas.
Uma forma de melhorar essa situação é a conexão entre os princípios dos direitos humanos e o conceito de promoção de saúde a fim de transformar ações baseadas em caridade e assistência em atividades destinadas a promover a conquista de direitos.
Diante dessa caótica e injusta realidade intervenções devem ser feitas na forma em que se dá a coleta de RSU via caminhões compactadores, no uso de equipamento de proteção individual (EPI) adequados aos trabalhadores e na infraestrutura de aterros sanitários que em sua grande maioria tem características de lixões, no Brasil.
RESÍDUOS SÓLIDOS URBANOS E A COVID 19
A geração de resíduos sólidos urbanos (RSU) no Brasil tem aumentado ao longo dos anos. Entre os anos de 2013 e 2014 de acordo com a Abrelpe (2015), ocorreu um aumente de 2,02% na geração de RSU resultando em um valor, em 2013, de 1,06 Kg hab-1 dia-1 (Nordi, et al.; 2017). Resíduos sólidos urbanos constituem um importante problema sanitário quando não recebem os devidos cuidados, daí a importância de conseguir prevenir e controlar doenças a eles relacionadas (Moraes, 2007).
As autoridades brasileiras, em 2010, começaram a tomar medidas visando melhorar o atual sistema de gerenciamento de resíduos com a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) Lei n. 12.305/2010 que exige que resíduos sólidos domiciliares sejam dispensados em aterros sanitários (Jimenez, et al.; 2017).
A Lei n.º 12.305/2010 propõe também uma hierarquia de ações para a destinação dos resíduos sólidos, visando evitar ao máximo a sua disposição em aterro sanitário, o que deveria ser aplicado exclusivamente aos rejeitos.
Os rejeitos são resíduos sólidos que, depois de esgotadas todas as possibilidades de tratamento e recuperação por processos tecnológicos disponíveis e economicamente viáveis, não apresentem outra possibilidade que não a disposição final ambientalmente adequada. Entende-se como “disposição final ambientalmente adequada” como distribuição ordenada de rejeitos em aterros, observando normas operacionais específicas de modo a evitar danos ou riscos à saúde pública e a segurança e minimizar os impactos ambientais adversos.
Os coletores de lixo são os profissionais responsáveis pela coleta, transporte e destino final de lixo domiciliar, esses trabalhadores estão expostos a diferentes tipos de riscos ocupacionais um deles o biológico, agentes biológicos estão nos resíduos sólidos municipais, em lenços de papel, papel higiênico, curativos, absorventes, agulhas e seringas descartáveis e camisinhas, originados da população; nos resíduos de pequenas clínicas, farmácias e laboratórios e, na maioria dos casos, nos resíduos hospitalares, misturados muitas vezes indevidamente aos resíduos domiciliares (Lazzari e Reis, 2011).
O caminhão utilizado na coleta de RSU mais atual possui o compactador em forma de prensa, que precisa ser controlado pelos garis e pelo motorista. Os caminhões compactadores comportam em média 10 toneladas de lixo (Vasconcelos, et al.; 2008). Durante a prensagem do lixo os trabalhadores ficam em contato com possíveis partículas emitidas para atmosfera contaminada ou não, bem como por onde o caminhão passar.
O risco potencial de transmissão direta de doenças infecciosas por qualquer tipo de resíduo sólido dependerá: (i) da presença de um agente infeccioso; (ii) da sua capacidade de sobrevivência no resíduo sólido; e (iii) da possibilidade de sua transmissão para um hospedeiro susceptível (Moraes, 2007).
Para que os patógenos entrem no organismo e causem infecção, são necessárias portas de entrada como a inalação, a ingestão, a penetração através da pele e o contato com as mucosas dos olhos, o nariz e a boca (Lazzari e Reis, 2011).
Na COVID 19 a principal via de transmissão é por vias respiratórias principalmente por aerossóis. Aerossóis são partículas formadas por partículas sólidas ou líquidas dispersas ou suspensa no ar. Elas contem partículas do solo, poeira industrial, poeira emitida por automóveis, micro-organismos, pós de esporos de plantas e outros componentes.
Quando uma pessoa infectada com o vírus tosse, espira, respira vigorosamente ou fala alto, o vírus será excretado do corpo e poderá se dissolver com o aerossol e se tornam bio-aerossóis. As partículas em um bio-aerossol geralmente tem 0,3 a 100 µm de diâmetro, contudo, a fração de tamanho respirável de 1 a 10 µm é a principal preocupação. Gotas de salivas descarregadas por pessoas podem se espalhar no espaço de cerca de 1 a 2 m, mas o as aerossóis podem viajar centenas de metros ou mais (Wang e Du, 2020).
Experimentos realizados por Doremalen e colaboradores (2020) observaram que o SARS-CoV-2 permanece viável em aerossóis por 3 horas. Observaram também que o vírus é mais estável em plástico e aço inoxidável do que em cobre e papelão e foi detectado até 72 horas após a aplicação nessas superfícies.
Assim o RSU passa a ser um possível meio preocupante de contaminação, bem como, as forma de coleta realizado no Brasil, por caminhões compactadores. Somado a tudo isso, o aspecto social também dever ser abordado, segundo Lopes e colaboradores (2012), os conceitos relacionados às atividades do trabalho cotidiano dos coletores de RSU, destaca-se a temática do preconceito do lixo, objeto relacionado ao serviço do trabalhador da limpeza e carregado simbolicamente de sentimentos como ojeriza e repugnância o que acaba por se materializar na figura do “lixeiro”
Dentre desse contexto existe um elo com o termo racismo ambiental concernente aos impactos e injustiças ambientais implantados por empreendedoras privadas e pelas políticas públicas realizadas pelo Estado que recaem sobre dada parcela da população, em razão de sua vulnerabilidade social, cor/raça ou etnia.
Trabalhos realizados por Porto e colaboradores (2004), verificaram que catadores de resíduos recicláveis moram próximos a aterros, entretanto, mais da metade (51,4%) dos entrevistados gostariam de mudar para outra localidade, alegando principalmente as precárias condições tanto de suas casas, quanto em termos de infraestrutura ambiental. Conectada a essa informação Raupp et al., 2019, observaram em seus estudos que em geral as prevalências de serviços de saneamento básico (Abastecimento de Água, Esgotamento Sanitário e Coleta de Lixo) são melhores, por exemplo, em domicílios com crianças cor/raça branca.
Esses fatos demonstram que impactos e injustiças ambientais recaem sobre parcela da população em razão de sua vulnerabilidade social, cor/raça ou etnia. Assim o racismo ambiental é caracterizado pelo fato de a maioria dos riscos ambientais socialmente induzidos no processo de extração dos recursos naturais ou na disposição dos resíduos no ambiente recaírem desproporcionalmente sobre os grupos étnicos desprovidos de poder e sobre os mais pobres (Angeli e Oliveria, 2016). Não é diferente do que acontece com o coletor de RSU conhecido como “lixeiro” ou como os catadores de recicláveis.
O coronavírus veio para assolar todos os níveis da sociedade, mas não resta dúvida que onde não há saneamento, ou melhor, dizendo onde há maiores riscos ambientais a situação tende a ser agravar, como por exemplo, favelas, população de rua, comunidade rural, indígenas e uma das classes de trabalhadores que atualmente se encontram na linha de frente da pandemia: Os servidores da limpeza urbana, bem como, aqueles que trabalham em aterros sanitários, controlados ou lixões.
No entanto, cabe salientar que a forma que se dá a coleta de RSU também pode ser uma via de disseminação de aerossóis contaminados com a COVID 19 proveniente do resíduo sólido domiciliar, sendo assim, não somente o “lixeiro” estaria correndo perigo, mas toda uma sociedade, igualando todos em uma única categoria a de Ser humano, não se pode negar que a pandemia instaurada no mundo trará vários legados e um deles sem dúvidas é que paradigmas ambientais, sociais e sanitários devem ser mudados como ponto de partida de transformação de toda sociedade.
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Núbia Natália de Brito, Técnica em Saneamento, Química Agro-Industrial, Mestre e Doutora em
Engenharia Agrícola na área de água e solo, Professora do Instituto de Química da Universidade Federal
de Goiás. Email: nubiabrito@ufg.br