Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira nº 25 - Agosto 2025

Avaliação preliminar dos efeitos da flexibilização da política fiscal do Governo Federal para o financiamento do SUS no Biênio 2023-2024

Por Francisco R. Funcia


Introdução
O objetivo desta Nota Técnica é avaliar, em caráter introdutório, os efeitos da flexibilização da política fiscal do governo federal para o financiamento do Sistema Único de Saúde no biênio 2023-2024.

Não é possível aprofundar a análise do processo de financiamento do SUS se a abordagem ficar restrita aos limites da política setorial: a política econômica, especialmente a política fiscal e a política monetária, condicionam o financiamento das políticas públicas em geral e, desta forma, a capacidade de financiamento do SUS.

A política fiscal está diretamente relacionada com o orçamento federal, que é um dos instrumentos do processo de planejamento do setor público brasileiro que fixa as despesas e estima as receitas, ou seja, evidencia os principais interesses priorizados na alocação de recursos orçamentários e as respectivas fontes de financiamento.

Nessa perspectiva, a presente Nota Técnica está estruturada em duas partes, além desta introdução e das considerações finais: a primeira apresenta os antecedentes recentes da política fiscal e do financiamento do SUS no período 2017-2022 e a segunda trata da flexibilização dessa política fiscal e dos efeitos para o financiamento do SUS no biênio 2023-2024.

Antecedentes: Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016 – o aprofundamento da austeridade fiscal e a desvinculação dos pisos constitucionais da saúde e da educação

A política fiscal que vigorou no período de 2017 a 2022 foi baseada nas regras estabelecidas pela EC nº 95/2016 – que valeriam por 20 anos, com possibilidade de revisão a partir de 10 anos do início da vigência dessa EC em dezembro/2016. Os aspectos principais desse regramento fiscal foram:

a) definição do “teto” (valor máximo) de despesas primárias federais correspondente ao valor verificado em 2016 (atualizado anualmente pela variação do IPCA/IBGE): representou um aprofundamento da austeridade fiscal; e
b) “congelamento” dos pisos (aplicação mínima) federais do SUS e da educação nos respectivos valores apurados para 2017 (atualizados anualmente pela variação do IPCA/IBGE): representou a desvinculação desses pisos à receita com o objetivo de manter o valor real nos níveis de 2017. No caso do SUS federal, o valor “congelado correspondeu a 15% da Receita Corrente Líquida de 2017. Muitos argumentavam que a existência de um piso para essas duas áreas representava um benefício, mas para saúde e educação realizassem despesas acima dos respectivos pisos seria preciso que as demais áreas do governo federal reduzissem ainda mais as suas despesas para que o valor do teto global fosse cumprido.

O problema estava na existência de um piso congelado num determinado valor, no caso de 2017, sendo que, para gastar acima desse piso, outras áreas do governo (assistência social, saneamento, habitação, infraestrutura etc.) teriam uma redução ainda maior dos seus recursos, porque o teto global de despesa estava congelado no valor de 2016. Como consequência, Ocké-Reis et al. (2023) [157] apuraram que:

a) o financiamento federal do Sistema Único de Saúde (SUS) deixou de receber entre R$ 65 bilhões e R$ 70 bilhões no período de 2018 a 2022, o que representou um grave processo de desfinanciamento;
b) esses recursos retirados do SUS agravaram o processo de subfinanciamento [158] histórico: em termos internacionais, os gastos públicos em saúde no Brasil representavam apenas 40% do gasto total (público mais privado) em saúde, diferentemente do que ocorre nos países desenvolvidos, nos quais correspondem acima de 60% em alguns casos ou 70% noutros.

O Projeto de Lei Orçamentária 2023 da União encaminhado pelo Poder Executivo Federal ao Congresso Federal em agosto de 2022 evidenciava um quadro de aprofundamento da asfixia orçamentária e financeira para o SUS. Conforme estudo organizado pela Associação Brasileira de Economia da Saúde - ABrES (2022)[159] , o congelamento da regra do piso federal do SUS nos níveis de 2017 combinado com o crescimento das emendas parlamentares provocava uma redução em valores nominais de várias despesas obrigatórias e discricionárias do Ministério da Saúde em 2023 comparativamente ao valor aprovado na Lei Orçamentária de 2022, como por exemplo, para o Programa Nacional de Imunizações (de R$ 13,6 bilhões para R$ 8,6 bilhões), para a Formação e Profissionais para a Atenção Primária (de R$ 2,96 bilhões para R$ 1,46 bilhão), para a Farmácia Popular (de R$ 2,04 bilhões para R$ 0,84 bilhão), para a Educação e Formação em Saúde (de R$ 1,67 bilhão para R$ 0,73 bilhão) e para a Saúde Indígena (de R$ 1,48 bilhão para R$ 0,87 bilhão).

A vitória da oposição nas eleições presidenciais de outubro de 2022 permitiu que houvesse uma articulação da equipe do futuro presidente ainda em dezembro de 2022 (antes da posse) com o Congresso Nacional para iniciar um processo de flexibilização das regras fiscais a partir de 2023 por meio da EC nº 126/2022 e, com isso, incrementar mais de R$ 20 bilhões para o orçamento federal do SUS.

Lei Complementar 200/2023 e o Novo Arcabouço Fiscal: a flexibilização limitada da política fiscal e a continuidade da pressão sobre os pisos constitucionais da saúde e da educação

A EC nº 126/2022 estabeleceu que as regras fiscais da EC nº 95/2016 seriam revogadas mediante a apresentação de outros parâmetros em Projeto de Lei a ser encaminhado pelo Poder Executivo Federal durante os primeiros meses de 2023, o que efetivamente ocorreu. A Lei Complementar 200/2023 foi aprovada em agosto de 2023 e estabeleceu o novo arcabouço fiscal (NAF): a regra anterior do teto da despesa primária do governo congelado nos níveis de 2016 foi substituída por outra que estabeleceu um limite de crescimento anual, em termos reais, de 2,5% da despesa primária do governo federal.

Como os pisos federais da saúde e da educação estão fixados em dispositivos constitucionais, cuja vigência estava suspensa por 20 anos, a revogação da EC nº 95/2016 promoveu a retomada das regras de cálculo desses pisos que vigoravam anteriormente, a saber, o da saúde conforme a EC nº 86/2015 (15% da receita corrente líquida da União) e a da Educação conforme artigo 212 da Constituição Federal (18% da receita de impostos).

Essa flexibilização da política fiscal a partir de 2023 foi responsável por um incremento de recursos alocados para as ações e serviços públicos de saúde (ASPS), tanto na execução orçamentária federal SUS em 2023 e 2024, como na programação do Ministério da Saúde que consta na Lei Orçamentária de 2025, quando comparados aos valores dos pisos desses anos calculados pela regra anterior (da revogada EC nº 95/2016), conforme demonstrado na Tabela 1 – considerando que o piso tem sido historicamente a referência para a disponibilidade de recursos para a execução orçamentária do SUS, foi possível aferir o efeito positivo da flexibilização da política fiscal para que interrompesse o processo de desfinanciamento do SUS observado de 2018 a 2022 (conforme analisado na seção anterior desta Nota Técnica), na medida que evitou uma nova perda de recursos de R$ 93,1 bilhões no biênio 2023-2024 ou de R$ 163,7 bilhões se for somada a perda que ocorreria em 2025.

Tabela 1: Ministério da Saúde/Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS): Piso Federal do SUS calculado pela Regra da Emenda Constitucional nº 95/2016 (revogada em 2023) e Despesas Executadas no período 2023 a 2025 (em R$ bilhões)

Elaboração: Francisco Funcia. Fonte: adaptado de Anexo 1 da Resolução nº 766, de 19/12/2024, do Conselho Nacional de Saúde, de Relatório Anual de Gestão do Ministério da Saúde dos exercícios de 2023 e 2024 e do Relatório Quadrimestral de Prestação de Contas do Ministério da Saúde do 1º Quadrimestre de 2025.

Registre-se:

a) o que diz a nota da tabela do Resumo Executivo do Parecer Conclusivo que consta no Anexo 1 da Resolução Nº 766, de 19/12/2024, do Conselho Nacional de Saúde: "Segundo o Acórdão 2338/2023 do TCU, para 2023, com a revogação da EC 95 no final de agosto/2023 (conforme EC 126/2022 e LC 200/2023), não se pode considerar o valor do piso segundo a regra dessa EC, nem se pode retroagir a 1º de janeiro os efeitos da EC 86; caso fosse adotada uma média ponderada para calcular o valor do piso (8 meses calculados pela EC 95 e 4 meses pela EC 86), o resultado seria R$ 160,0 bilhões – nessa hipótese, o valor aplicado (nas duas situações acima) seria acima do piso em R$ 19,8 bilhões e R$ 12,5 bilhões, respectivamente"
b) Para 2023 e 2024, o valor empenhado considerado foi o valor líquido, isto é, após deduzir do total o valor dos restos a pagar cancelados no ano anterior, conforme constam nos respectivos Relatórios Anuais de Gestão do Ministério da Saúde; para 2025, foi adotado o valor das dotações atualizadas da Lei Orçamentária de 2025 que consta no Relatório Quadrimestral de Prestação de Contas - 1º Quadrimestre de 2025 - do Ministério da Saúde.
c) O valor do piso calculado pela regra da EC 95 para 2023 consta no Relatório Anual de Gestão 2023 do MS; os valores desse piso para 2024 e 2025 foram calculados considerando a variação anual acumulada do IPCA/IBGE, respectivamente, em dezembro de 2023 (4,62%)
e em dezembro de 2024 (4,83%) Entretanto, apesar da flexibilização fiscal, a condicionalidade da política fiscal sobre o financiamento do SUS federal pode ser percebida no ano de 2023, tanto em razão dos questionamentos apresentados sobre a indefinição do valor do piso federal do SUS a ser considerado nesse ano (conforme explicitado na Nota 1 da Tabela 1), como pela incorporação da despesa com o piso de enfermagem no valor de R$ 7,3 bilhões (conforme Portaria SOF/MPO nº 394, de 22/12/2023) no cômputo das despesas ASPS, mesmo com a possibilidade de não incorporação estabelecida pela Lei nº 14.581, de 11/05/2023.

Outro elemento indicativo da pressão exercida pela área econômica do governo federal sobre o processo de financiamento federal do SUS está relacionado ao fato de que a receita corrente líquida está crescendo mais que 2,5% ao ano e, desta forma, há uma contradição entre a regra da Lei Complementar nº 200/2023 estabelecida para o crescimento anual das despesas primárias (que inclui a saúde) e o crescimento anual do piso federal do SUS. Desde o final de 2023, tem surgido manifestações pela imprensa de integrantes de vários escalões da área econômica do governo federal de que é preciso revisar os pisos constitucionais da saúde e da educação para o cumprimento do NAF e, assim, viabilizar o cumprimento da meta do uperávit primário.

Nessa perspectiva, é importante contextualizar essa questão com a pressão do Congresso Nacional, do mercado, do Comitê de Política Monetária do Banco Central e de outros agentes econômicos para uma política fiscal restritiva, que por sua vez está alinhada a uma visão de Estado mínimo. A taxa de juros tem sido uma expressão desse processo a partir de 2023: mesmo com a inflação sob controle, temos uma taxa de juros muito elevada, o que por sua vez aumenta a despesa financeira com juros, o que requer maior superávit primário, ou seja, corte de despesas (inclusive da saúde) diante da pressão contrária para o aumento da receita, conforme observado recentemente pela posição do Congresso Nacional em relação aos aumentos do Imposto sobre Operações Financeiras e do aumento do Imposto de Renda a partir de novas alíquotas para as faixas de renda mais elevadas.

Considerações finais
Como foi possível constatar, a política fiscal restritiva (que apenas varia de intensidade dependendo do alinhamento dos diferentes governos em buscar reduzir ou não as desigualdades socioeconômicas) tem sido responsável pelo processo de subfinanciamento histórico do SUS:
a) no período 2018-2022, esse subfinanciamento foi agravado, na medida que houve um desfinanciamento federal no SUS (o que representou uma perda entre R$ 65 bilhões e 70 bilhões), como decorrência do aprofundamento da austeridade fiscal causada pelo “teto de despesas primárias” da EC nº 95/2016;
b) mas, com a revogação dessa EC a partir de 2023 e a consequente flexibilização da política fiscal promovida pela Lei Complementar nº 200/2023 (NAF), houve a interrupção do processo de desfinanciamento do SUS, o que impediu que aquelas perdas do período 2018-2022 tivessem um acréscimo de R$ 93,1 bilhões no biênio 2023-2024 (valor apurado para um cenário hipotético de manutenção da regra de cálculo do piso da EC nº 95/2016).

Entretanto, a flexibilização da política fiscal promovida pelo NAF, que substituiu o antigo “teto de despesas primárias” nos níveis de 2016 pelo crescimento real anual de 2,5% das despesas primária, é contraditória com a regra constitucional dos pisos federais da saúde e da educação, cuja vinculação à receita tem gerado crescimento anual acima do estabelecido pelo NAF. Em outros termos, a margem para expansão da despesa primária total tende a ser apropriada integralmente (e até mesmo ser insuficiente) para o cumprimento desses pisos
constitucionais, inviabilizando as demais políticas públicas.

Diante desse cenário, para a garantia dos direitos de cidadania assegurados pela Constituição Federal, especialmente saúde e educação, é preciso que o governo federal execute uma articulação política capaz de promover uma nova política econômica compatível com a redução das desigualdades socioeconômicas, por meio de ações que fortaleçam a capacidade de arrecadação federal com justiça tributária (em respeito ao princípio da capacidade contributiva) e que aprimorem o processo de execução das despesas primárias.

--
[157] OCKÉ-REIS, Carlos Octávio; BENEVIDES, Rodrigo; FUNCIA, Francisco; MELO, Mariana. Evolução do piso federal em saúde: 2013-2020. Brasília, DF: Ipea, out. 2023. 12 p. (Disoc : Nota Técnica, 109). DOI: http://dx.doi.org/10.38116/ntdisoc109-port.
[158] Subfinanciamento do SUS é um conceito que expressa que os recursos federais têm sido inadequados e insuficientes para cumprir o preceito constitucional que a saúde é direito de todos e dever do Estado (artigo 196), cujas ações e serviços devem ser considerados de relevância pública (artigo 197)
[159] A Nova Política de Financiamento do SUS - Texto elaborado para Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES) por Francisco R. Funcia (coordenador), Bruno Moretti, Carlos Octávio Ocké-Reis, Erika Aragão, Esther Dweck, Maria Fernanda Cardoso de Melo, Mariana Melo e Rodrigo Benevides. Disponível em https://www.ie.ufrj.br/images/IE/grupos/GESP/gespnota2022_ABRES%20(2).pdf

--
Francisco R. Funcia, Economista e Mestre em Economia Política (PUC-SP) e Doutor em Administração (USCS), Professor dos Cursos de Economia, Medicina e Relações Internacionais da USCS, Pesquisador do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo, Inovação e Conjuntura e Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES).

--

Nota Técnica publicada na 32ª Carta de Conjuntura da USCS (Universidade São Caetano do Sul), Agosto 2025. Confira na íntegra AQUI




OUTRAS DOMINGUEIRAS