Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira nº 25 - Julho 2024

Índice

  1. Carta a Gilson Carvalho, 10 anos depois - por Francisco Funcia

Carta a Gilson Carvalho, 10 anos depois

Por Francisco Funcia


Gilson,

Dia 10 de julho de 2024 fará 10 anos de sua morte, você tanto ainda poderia contribuir para o país, sua família e amigos, mas a vida dispôs de modo diferente. Você, meu amigo, foi fonte de inspiração para tantos pela sua permanente ação na luta em defesa do SUS e seu financiamento adequado e suficiente. A saudade é grande. Sua coerência, ética, coragem no enfrentamento de tantas batalhas na defesa de seus ideais nos inspiram e faz muita falta nessa trincheira de luta em defesa do SUS e do seu financiamento adequado e estável.

Nesses 10 anos, tantas coisas aconteceram e escrevo a você, que certamente na dimensão da transcendência da vida, tomará conhecimento destas linhas e ficará a par sobre o que se passou no Brasil desde que você foi para a outra margem do rio.

Em 2014, meses depois de sua morte, Dilma Roussef, do PT, foi reeleita para a Presidência da República, num cenário de forte instabilidade política e econômica, que tudo leva a crer artificialmente criada por aqueles que nem sempre defendem políticas de igualdade social.

No início de 2015, nesse cenário de instabilidade política e econômica, foi sancionada lei que permitiu a entrada de capital estrangeiro na saúde, um grave retrocesso aprovado pelo Congresso Nacional, não vetado pelo governo federal e até hoje não julgado pelo Judiciário.

Em 2015, foi aprovada a EC 86 que mudou a regra de cálculo do piso federal do SUS para 15% da Receita Corrente Líquida, de modo escalonado, por cinco anos. Ainda que suspenso o escalonamento por medida liminar do Ministro Lewandowski, do STF, a ação foi julgada improcedente e perdeu-se o que defendíamos: a vedação de retrocesso na garantia de direitos fundamentais.

Junto com a EC 86, o caminho foi aberto para o aumento das emendas parlamentares no SUS, equivalentes a 0,6% das Receitas Correntes Líquidas, o que significava quadruplicar os gastos federais do SUS com emendas parlamentares descoladas do planejamento e do plano de saúde, e pior ainda, computadas no cálculo do piso.

Querido Gilson, sabemos que defendeu o Projeto de Lei de Iniciativa Popular (PLP 321/2013), sepultado pela EC 86 com o sonho de 10% das Receitas Corrente Brutas da União, como regra de cálculo do piso federal do SUS, que foi por água abaixo.

Por fim, o impeachment em 2015 tirou do poder a primeira mulher Presidente da República do Brasil (2016) e o novo presidente, o seu vice Michel Temer, entendeu, junto com o Congresso Nacional, que as despesas públicas federais deveriam ser congeladas, ressalvados os juros e encargos da dívida, e tivemos promulgada a EC 95/2016.

A EC 95 congelou os pisos federais da saúde e da educação por 20 anos (nos valores de 2017), bem como as despesas primárias (todas, exceto como se disse, os juros e encargos da dívida).

A justificativa dada para isso, Gilson, foi algo contra o que você lutou enquanto esteve vivo (e que até adoeceu numa ocasião): cortar despesas, inclusive da saúde, para fazer ajuste fiscal.

Para você ter uma ideia, Gilson, o SUS perdeu entre R$ 65 bilhões e R$ 75 bilhões de 2018 a 2022, conforme estudos do Ipea, em comparação ao que seria o valor da regra da EC 86, que já era insuficiente.

Mas o pior ainda estava para acontecer, com a eleição do novo presidente da República em 2018, que assumiu em 2019, houve um aprofundamento da austeridade fiscal e tentativa de desmonte do SUS, com medidas polêmicas quanto à sua constitucionalidade. Mesmo assim o SUS a duras penas conseguiu bravamente enfrentar a pandemia da Covid-19, mostrou a sua força de sistema interfederativo e a garra dos gestores, trabalhadoras e trabalhadores.

Em outubro de 2022, Lula foi eleito para a Presidência da República e antes mesmo de tomar posse, articulou com o Congresso Nacional a aprovação de mais R$ 20 bilhões para o orçamento do Ministério da Saúde, o que corresponderia aos 15% da Receita Corrente Líquida (regra da EC 86 dada a suspensão da EC 95).

Além disso, o governo do novo Presidente eleito, articulou a revogação da EC 95, que ficou suspensa até agosto de 2023, quando foi revogada definitivamente. Assim, os pisos da saúde e da educação passaram a ser calculados com base nas regras anteriores, 15% da Receita Corrente Líquida e 18% das receitas de impostos federais.

Mas, Gilson, como sempre, há 36 anos, a pressão pela revisão dos pisos constitucionais (saúde e educação) voltaram ao cenário político e os defensores do mercado, como algumas pessoas da área econômica do governo, sem o aval do Presidente da República que defende saúde como investimento e não como gasto público, passaram a defender a revisão do piso, sob a alegação da necessidade de se cumprir o novo arcabouço fiscal, que fixou o crescimento da despesa federal a 2,5% ao ano).

Isso sem falar na luta pelo cumprimento do piso da saúde em 2023, que teve aval do próprio TCU para o seu não cumprimento, como você experienciou fatos parecidos nas crises do SUS dos anos 90.

Gilson, mesmo após integrantes de um novo movimento em defesa do SUS, denominada Frente pela Vida, terem participado de audiência no Ministério da Fazenda, que afirmou não haver estudo visando reduzir o piso da Saúde e apesar do Anexo de Riscos Fiscais do PLDO 2025 da União apontar para um crescimento das despesas com saúde pelo envelhecimento populacional, de cerca de R$ 60 bilhões, a imprensa tem divulgado, com base em algumas entrevistas de autoridades econômicas, a necessidade de mudar a regra de cálculo da receita corrente líquida para expurgar receitas, o que na prática significa reduzir o valor do piso do SUS. O que ocorreu na sua época com a EC 20/98 que vinculou receitas da seguridade social exclusivamente para a previdência. E não se iluda, tem sido aventada a hipótese de mudar a CF para limitar o crescimento das despesas do SUS em 2,5% ao ano, o que também reduziria o valor do seu piso federal.

Mas, Gilson, como sempre, nunca se esgotam neste país, as investidas contra os recursos do SUS, ou seja, sua sustentabilidade. Acho que o SUS nunca foi bem visto por aqueles que defendem o neoliberalismo desde a era Thatcher e do consenso de Washington. Veja só, o Senado Federal acabou de aprovar um Projeto de Lei Complementar que permitirá que investimentos em Hospitais Universitários públicos (por si ou pela Ebserh) e privados deixem de ser da Educacao e passem para a Saude, computados em seu piso, o que significa uma redução para a Educação e um acréscimo para a saúde. Quem sabe você do outro lado da margem do rio, você possa ajudar a Câmara Federal freiar tal medida em favor do SUS.

Gilson passados 10 anos gostaria muito de lhe escrever para dizer da saudade e lhe dar boas notícias sobre o SUS, o que coroaria os seus esforços nesse plano terreno, mas não está sendo possível. Quem sabe onde você está a justiça seja um valor levado a sério, o que não continua sendo por aqui.

Mandam lembranças Lenir e Nelsão que gostariam também de lhe dizer quase as mesmas coisas.

Abraços saudosos do amigo,

Francisco Funcia


Francisco R. Funcia é economista e mestre em Economia Política (PUC-SP), doutor em Administração (USCS), professor dos cursos de Economia e Medicina da USCS e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES)/gestão 2022-2024.




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