Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira nº 26 - Agosto 2025

Rede Nacional de Dados em Saúde: uma riqueza nacional

Por Lenir Santos


No último dia 23 de julho foi editado o Decreto n° 12.560, dispondo sobre a Rede Nacional de Dados em Saúde, instituída em 2020 pela Portaria GM/MS 1.432, como estrutura oficial de interoperabilidade do ecossistema de dados em saúde visando a sua padronização e segurança. A RNDS surgiu na esteira das novas políticas e estratégias de saúde digital.

O tema passa agora a ser regulado pelo referido decreto que dispõe sobre o uso compartilhado de dados, a interoperabilidade, as plataformas digitais do Sistema Único de Saúde (SUS), bem como sobre as atividades de tratamento de dados pessoais, que, por sua vez, devem observar a Lei n° 13.709, de 2018 (LGPD), que estabelece normas sobre o tema.

Apenas para contextualizar, a Dataprev — Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social, criada em 1974 sobre outra forma jurídica, era a responsável pelo processamento de dados públicos previdenciários e os de saúde assistencial, que na época eram considerados um benefício previdenciário. A Dataprev talvez tenha sido à época a maior processadora de dados públicos no país, sob a forma manual, analógica ou mecanizada.

Após o nascimento do SUS, a Lei n° 8.080, de 1990, artigo 47, determinou que fosse organizado, dentro de dois anos, um sistema nacional de informações em saúde, tendo sido criado, em 1991, o Departamento de Informática do SUS (DataSUS), órgão integrante da estrutura do Ministério da Saúde, com a finalidade de processar os dados do SUS, lembrando que foram incorporados no DataSUS os dados de saúde do Inamps, até então processados pela Dataprev.

Importante considerar que no final do século 20, e essencialmente neste século, o avanço da tecnologia transformou o mundo, com a biotecnologia revolucionando o campo da saúde e inovando nas estruturas de processamento de dados e da prestação de serviços. Essa transformação exigiu mudanças no sistema nacional de informações em saúde.

O Decreto n° 12.560, de 2025, dispõe que a plataforma de interoperabilidade do ecossistema de dados do SUS deve ser integrada em todo o território nacional para o compartilhamento interfederativo de dados de saúde em acordo aos regramentos do governo digital e da saúde digital. O decreto trata ainda das plataformas dos entes federativos que devem, todos eles, ser interoperáveis com a RNDS, cabendo ao Ministério da Saúde a adoção e gestão de padrões nacionais de interoperabilidade de dados em saúde e a definição de diretrizes e regramentos nacionais.

A RNDS deve conter dados não tão somente de serviços assistenciais e pessoais de saúde, mas também os financeiros, administrativos, cadastrais, devendo o seu tratamento observar as finalidade definidas no decreto e observar a LGPD.

Na sociedade atual, os dados que a RNDS irá produzir se configuram como uma fonte de riqueza nacional de valor inestimável, que poderá ser, ou vir a ser, um dos maiores bancos de dados em saúde do mundo em plataforma única, sob responsabilidade pública, a qual será a depositária de todas as informações em saúde públicas e privadas do país.

Como o conceito de riqueza no mundo pós-moderno mudou de forma, sendo muitos deles bens intangíveis, como o conhecimento, as redes, os algoritmos, os dados, as plataformas de conexão, o domínio de um banco de dados como o da RNDS destaca-se como uma fonte de riqueza e exige forte estruturação, proteção e segurança. E corretamente o decreto considera, dentre os princípios da rede, a segurança da informação, a privacidade das pessoas, a confidencialidade dos dados, o uso ético e legal, a transparência, a confiabilidade, aspectos relevantes para a estruturação adequada de uma rede que contém dados pessoais de saúde de cunho interfederativo.

Desse modo, é importante a coordenação e regulação nacional da rede, com padronização do seu acesso, da interoperabilidade, dentre outras medidas necessárias à formação, manutenção e gestão de rede de informações. Como cabe à União legislar sobre saúde, produzindo normas gerais, diretrizes nacionais, cabe ao Ministério da Saúde regular, dentre outros aspectos, padrões nacionais de interoperabilidade – um dos gargalos do SUS, dada a grande diversidade e desigualdades regionais – de cumprimento obrigatório pelos entes federativos, uma vez que o SUS, nos termos do artigo 198 da CF, resulta da integração das ações e serviços de saúde de todos os entes federativos, de modo obrigatório, o que exige, no caso, compartilhamento de dados e padrão de interoperabilidade que possibilitem à rede a realização de suas finalidade em âmbito nacional.

Federalização
Não obstante ser obrigatória a integração dos dados produzidos pelos entes federativos à RNDS por caber ao Ministério da Saúde manter a unicidade conceitual do SUS, seus princípios e diretrizes nacionais, o decreto dispõe, de modo equivocado, sobre a federalização da RNDS, o que é juridicamente estranho.

O modelo constitucional do SUS não é de federalização de serviços, mas sim de integração de ações e serviços em todos os seus aspectos. A RNDS é um serviço que se constitui pela integração dos dados em saúde. Federalizar, como exemplo, uma pessoa jurídica de outra esfera de governo ou até mesmo privada, como ocorreu com a Escola Paulista de Medicina, exemplificativamente, é diferente do modelo do SUS e da competência do Ministério da Saúde para coordenar nacionalmente determinados serviço do SUS, como é o caso da RNDS. Parecer haver confusão entre competência e federalização. Lembramos ainda que o federal difere do nacional, dependendo da abrangência da competência quanto ao território ou quanto ao tema. Há tema da União cuja competência abrange o território nacional e outros que são somente de âmbito federal. O capítulo IV do decreto nos soa como um erro conceitual quanto à pretensão do Ministério da Saúde de coordenar em âmbito nacional a RNDS, nos termos do artigo 47 da Lei n° 8.080, de 1990, em articulação com os demais entes federativos.

Na saúde, a competência da União para legislar sobre normas gerais, principiológicas, de diretrizes gerais (artigo 24, inciso XII da CF), desdobrada no artigo 16 Lei n° 8.080, de 1990, confere ao Ministério da Saúde disciplinar e coordenar o sistema nacional de dados em saúde, em articulação com os demais entes federativos, por se tratar de uma rede nacional que envolve a todos os entes federativos no SUS.

Indo adiante, o decreto define que a construção da RNDS terá como parâmetro a interoperabilidade, utilizando-se tecnologias que assegurem a acessibilidade dos dados de modo a manter a sua confidencialidade, ou seja, a sua proteção. Certamente cabe ao Ministério da Saúde a adoção de padrões nacionais, fundado em critérios técnicos, econômicos e estratégicos, devendo haver pactuação na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e de observância obrigatória. Não se trata de uma faculdade, mas de uma obrigação.

As plataformas “SUS digital” são canais de disseminação de informação às pessoas, aos profissionais de saúde e aos gestores públicos, o que amplia o acesso, fortalece a RNDS, melhora os serviços de saúde. Um aspecto relevante é a segurança da rede e o seu uso voltado às suas finalidades públicas, com a necessária transparência e responsabilidade públicas, uma vez que o setor privado também terá acesso à RNDS, o que exige a máxima segurança e controle. A RNDS é um avanço, iniciado com a criação do DataSUS em 1991, que, entretanto, foi um tanto quanto lento para promover as necessárias mudanças do mundo da saúde digital.

Com os avanços tecnológicos, a rede pode se transformar num dos maiores bancos públicos de dados em saúde, por ser o SUS um sistema público de acesso universal, com competência para regular, fiscalizar e controlar, nos termos do artigo 197 da CF, todos os prestadores de serviços de saúde do país, os públicos e os privados. Essa determinação constitucional confere ao SUS poderes para gerir a RNDS, cabendo à direção nacional do SUS, Ministério da Saúde, coordená-la pela sua abrangência nacional, exigente de padrões nacionais de interoperabilidade e definição de parâmetros e diretrizes nacionais, em articulação com os demais entes federativos.

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Lenir Santos, é advogada, doutora em Saúde Pública pela Unicamp, professora colaboradora da Unicamp e presidente do Idisa (Instituto de Direito Sanitário Aplicado).

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Publicado em conjur.com.br




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