Apresentação
A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.
Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos
Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado
ISSN 2525-8583
Domingueira nº 35 - Outubro 2024
Índice
- STF reforça autonomia do paciente e liberdade religiosa em tratamentos de saúde - por Fernando Aith
STF reforça autonomia do paciente e liberdade religiosa em tratamentos de saúde
Por Fernando Aith
Decisão que autoriza que testemunhas de Jeová não sejam submetidas à transfusão de sangue é um marco
—————————————————————————
Na última quarta-feira (25), o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou, por unanimidade, que testemunhas de Jeová não sejam submetidas à transfusão de sangue contra sua vontade, mesmo que isso coloque em risco a saúde e a vida desses pacientes. Além disso, os ministros ressaltam que o Estado deve custear tratamento alternativo eventualmente disponível, desde que sejam tratamentos cientificamente comprovados.
A tese aprovada afirma que "testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, têm o direito de recusar procedimento médico que envolva transfusão de sangue, com base na autonomia individual e na liberdade religiosa. Como consequência, em respeito ao direito à vida e à saúde, fazem jus aos procedimentos alternativos disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS), podendo, se necessário, recorrer a tratamento fora de seu domicílio”.
A decisão se deu em sede de repercussão geral, com potencial incidência da tese em todas as ações similares no Judiciário brasileiro.
No voto de relator exarado pelo ministro Luís Roberto Barroso foi asseverado que a liberdade religiosa tem relação com a dignidade da pessoa humana, com a autonomia do paciente e com valores familiares e comunitários. Segundo o ministro, "o Estado não pode ter religião oficial ou apoiar uma em detrimento de outra. [Mas] Laicidade não significa oposição às religiões, mas assegurar a todas as religiões o direito de se manifestarem dentro da lei. Portanto, por se tratar de interdição a transfusão de sangue um dogma de testemunhas de Jeová, é legítima a meu ver a recusa".
Além da tese principal, mais dois pontos foram debatidos, com soluções que consolidam o que já era jurisprudência majoritária nos tribunais. O primeiro ponto refere-se à situação de crianças e adolescentes cujos pais sejam testemunhas de Jeová. Para esses casos, os ministros Flávio Dino e Cristiano Zanin defenderam a proteção do melhor interesse dos menores de idade, e ficou consignado que a autorização para a recusa de transfusão somente vale para adultos que estejam decidindo sobre suas próprias vidas. Um menor de idade ainda não tem, legalmente, discernimento para firmar sua religião ou tomar uma decisão dessa envergadura que pode ter sérias consequências sobre sua vida.
Outro ponto levantado pelo ministro Dino é que o médico também não pode ser obrigado a aplicar tratamento alternativo, especialmente se não houver consenso científico do protocolo. Nesse aspecto, foi acompanhado pelo ministro Zanin, que afirmou que o profissional de saúde tem o direito à objeção de consciência.
A decisão do STF consolida a jurisprudência que já era dominante nos tribunais brasileiros e representa um reconhecimento da extensão da autonomia do paciente e do direito à religião aplicado aos tratamentos médicos e hospitalares.
O princípio do consentimento ou da autonomia do paciente decorre diretamente dos princípios da dignidade da pessoa humana e da liberdade. O princípio do consentimento é válido tanto para os médicos (ou para os agentes de saúde em geral) quanto para os familiares dos pacientes.
No que se refere aos pacientes, o consentimento é uma das suas defesas contra possíveis atitudes arbitrárias do médico ou de quaisquer agentes de saúde, sejam eles públicos ou privados. O consentimento repousa sobre o respeito que se deve à pessoa humana, ao seu corpo e a sua mente.
Em regra, nenhum tratamento médico poderá ser realizado sem o consentimento do paciente, que deve ser livre e esclarecido (o paciente deve ter condições para compreender o tratamento que lhe é proposto bem como para expor a sua aprovação de forma esclarecida). O consentimento deverá ser sempre dado pelo paciente e, apenas quando este não tiver condições físicas ou mentais para exprimi-lo (ou negá-lo), é que o consentimento poderá ser dado por pessoas próximas ou por representantes legais.
Ao afirmar o direito à religião como justificativa válida para não consentir com um tratamento, o STF afirma que os cuidados médicos devem respeitar a cultura e religião dos pacientes, incluindo religiões de povos originários e outras. Deve-se privilegiar a autonomia dos pacientes para que possam ser tratados na área da saúde de acordo com suas cosmovisões.
A decisão é correta e representa uma pacificação do tema na jurisprudência nacional. Resta ver como serão tratados os casos daqui em diante, e de que forma o SUS e os planos de saúde irão encaminhar esses pacientes para eventuais tratamentos alternativos existentes.
E também deve-se atentar para as consequências concretas à saúde destes pacientes que se recusam à transfusão de sangue, para que possam ser tratados no mais elevado nível de saúde possível, considerando sua opção religiosa e as alternativas terapêuticas disponíveis, conforme previsto no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, ratificado pelo Brasil.
Publicado em JOTA
Fernando Aith é professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Paris. Diretor do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP
De 14 a 16 de outubro próximo estejam conosco no Congresso Brasileiro de Direito Sanitário e Economia da Saúde debatendo temas relevantes do Direito e da Saúde para a sustentabilidade do SUS universal e de qualidade. Financiamento, direito à saúde, judicializacao, emendas parlamentares, o público e o privado são temas essenciais para o aperfeiçoamento do SUS.
Inscreva-se: congressodses.com.br