Apresentação
A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.
Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos
Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado
ISSN 2525-8583
Domingueira nº 40 - Novembro 2024
Índice
- O fim da jornada 6x1 é uma questão de saúde - por Thiago Lopes Cardoso Campos
O fim da jornada 6x1 é uma questão de saúde
Por Thiago Lopes Cardoso Campos
A jornada 6x1 não é apenas uma escala de trabalho; é o retrato de um sistema que perpetua desigualdades, aprofunda injustiças e compromete a saúde física, mental e social de milhões de brasileiros. Trabalhar seis dias consecutivos para descansar apenas um não é somente uma afronta ao trabalhador; é uma agressão silenciosa às famílias que perdem o convívio, às crianças que crescem sem a presença dos pais e à própria sociedade, que se torna vítima de um modelo que normaliza o adoecimento e a exaustão.
A Constituição Federal, em seu artigo 196, preconiza a saúde como um direito que deve ser garantido mediante políticas públicas, sociais e econômicas, que atuem especialmente sobre as causas que possam gerar risco de adoecimento e promovam um ambiente saudável. Para além da assistência médico-hospitalar, a atuação sobre os agentes que produzem o adoecimento, entre os quais está o trabalho, é essencial para assegurar o direito humano fundamental à saúde, conforme preconizado pela Constituição.
Além dos impactos na saúde individual, as consequências da escala 6x1 reverberam na sociedade, tornando-se um problema de saúde pública.
É impossível desconsiderar a estreita correlação entre a jornada 6x1 e os resquícios de uma sociedade escravocrata. A exploração dos corpos negros foi a base da economia brasileira, calcada em um padrão de subjugação e submissão a um sistema laboral desigual, perverso e adoecedor. Diversos estudos (1) evidenciam que a população negra é a mais afetada pela escala 6x1, predominantemente ocupando postos de trabalho de baixa remuneração e alta exaustão física e mental. Esse padrão perpetua uma herança racista que trata o corpo negro como força de trabalho descartável, negando-lhe o direito ao descanso, ao lazer e ao cuidado pessoal. Combater a escala 6x1 é também combater o racismo estrutural e reafirmar o compromisso com a dignidade humana.
Estudos mostram que jornadas prolongadas têm impactos negativos na saúde física e mental dos trabalhadores, incluindo estresse, fadiga, transtornos mentais e aumento do risco de doenças cardiovasculares. Segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) (2), problemas relacionados ao trabalho, como depressão e transtornos osteomusculares, atingem uma parcela significativa dos trabalhadores brasileiros.
Comparar a carga horária no Brasil com outros países é revelador. Enquanto o Brasil ainda adota uma jornada máxima de 44 horas semanais, outros países têm avançado na redução desse tempo. Na Europa, por exemplo, a França implementou uma jornada de 35 horas semanais, refletindo um compromisso com a qualidade de vida e a saúde dos trabalhadores. Já na América do Sul, a Argentina possui uma jornada média semanal inferior à brasileira, de 37 horas.
Pesquisas europeias, como a European Working Conditions Survey (EWCS) (3), indicam que jornadas mais curtas estão associadas a uma melhor adaptação da vida laboral aos compromissos familiares e sociais, além de menos impactos negativos na saúde dos trabalhadores. Essa evidência sustenta a necessidade de revisar os modelos brasileiros de jornada de trabalho para promover condições que valorizem tanto a produtividade quanto a qualidade de vida.
Reduzir a jornada de trabalho é mais do que um ato de justiça social; é uma medida de saúde pública. Ao limitar jornadas extenuantes, podemos prevenir o adoecimento, reduzir gastos com saúde e melhorar a qualidade de vida da população. Assim como Ivan Ilitch, personagem de Tolstói que, ao enfrentar a doença, percebeu a inutilidade de sua dedicação a um modelo de vida vazio, o Brasil precisa encarar a escala 6x1 como um sintoma de sua própria contradição. A redução da jornada de trabalho não é um luxo, mas uma necessidade constitucional, social e humana.
Nesse sentido, o fim da jornada 6x1 deve ser visto como parte de um esforço maior para reequilibrar as relações de trabalho, garantir dignidade ao trabalhador e construir uma sociedade que priorize o bem-estar coletivo. Trabalhar é necessário, mas viver plenamente é um direito inalienável. Essa é a vitória que o Brasil precisa conquistar agora.
1) DIEESE. As dificuldades da população negra no mercado de trabalho. São Paulo: DIEESE, 2023. Disponível em: https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2023/conscienciaNegra2023.pdf. Acesso em: 20 nov. 2024. SANTOS, Rony; CAMPOS, Gisele. Os impactos dos racismos nas ocupações da população negra. Saúde e Sociedade, v. 32, n. 1, e220754pt, 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/8hQbLKzCx54dBDbcWDx5T3F/. Acesso em: 20 nov. 2024.
2) IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde 2019: percepção do estado de saúde, estilos de vida, doenças crônicas e saúde bucal: Brasil e grandes regiões. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.
3) EUROFOUND. European Working Conditions Survey 2024. Dublin: European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions, 2024. Disponível em: https://www.eurofound.europa.eu/en/surveys/european-working-conditions-surveys/european-working-conditions-survey-2024. Acesso em: 20 nov. 2024.
Thiago Lopes Cardoso Campos é advogado sanitarista, vice-presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado – IDISA, conselheiro estadual de saúde da Bahia e consultor jurídico da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares - Ebserh