Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 41 - Outubro 2020

Índice

  1. Boletim Cofin/CNS 2020/09/30 - por Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke
  2. PERFIL DA DÍVIDA ATIVA DA UNIÃO, Contribuintes devem R$ 2,4 trilhões - por Rubens Alves, Helder Alves, Francisco Vignoli e Francisco Funcia

Boletim Cofin/CNS 2020/09/30

Por Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke
























Francisco R. Funcia, Mestre em Economia Política pela PUCSP, Professor e Coordenador-Adjunto do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS e Consultor Técnico do Conselho Nacional de Saúde.

Rodrigo Benevides, Economista (UFRJ) e mestre em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ.

Carlos Ocké, Economista e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde - ABrES.



PERFIL DA DÍVIDA ATIVA DA UNIÃO, Contribuintes devem R$ 2,4 trilhões

Por Rubens Alves, Helder Alves, Francisco Vignoli e Francisco Funcia


Introdução

A Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados edita todo ano uma análise da proposta orçamentária encaminhada pelo Executivo ao Congresso. Para o exercício de 2021, estão previstos R$ 4,3 trilhões para a receita total e a despesa total, com um déficit primário [1] estimado em R$ 233,6 bilhões.

O documento, intitulado Raio X Orçamento 2021 PLOA [2], informa, de maneira sintética e didática, os aspectos relevantes da peça orçamentária comparados ao valor total da despesa, ao Produto Interno Bruto - PIB e à Receita Corrente Líquida - RCL.

Traz informações paralelas sobre Restos a Pagar (R$ 69,6 bilhões), total dos Gastos Tributários (R$ 330,8 bilhões) e, neste ano, acrescentou dados sobre a Dívida Ativa da União [3], vale dizer, quanto os contribuintes devem ao Poder Executivo Federal.
Esta informação nos parece merecedora de uma análise mais detalhada, tendo em vista a magnitude dos valores e a pouca divulgação do tema pela grande mídia.

1. Estoque da Dívida Ativa – R$ 2,436 trilhões

Comparado aos R$ 4,3 trilhões da proposta orçamentária, esse estoque representa 56,7% de todas as despesas previstas para o exercício de 2021, ou seja, se houvesse uma cobrança efetiva desses devedores, mais da metade do orçamento poderia ser financiada pela dívida cobrada. Não é, todavia, tão simples assim. É necessário conhecer o perfil desses devedores para se avaliar a viabilidade de recuperação desses créditos.

1.1. Composição do Estoque

No início de cada ano, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional - PGFN publica o relatório PGFN em Números, que, dentre outras informações, contém os resultados da gestão da Dívida Ativa da União do exercício anterior. Verifica-se no documento que a classificação dos débitos pode se dar de três diferentes formas: por tipo de débito, por tipo de devedor e pela qualidade do débito. A principal base normativa da referida classificação é a Portaria MF nº 293/2017 [4], que estabelece os critérios para classificação dos créditos inscritos em dívida ativa da União e institui o Grupo Permanente de Classificação dos créditos inscritos em dívida ativa da União - GPCLAS.

1.2. Tipo de Débito

Em 2019 [5], o total da dívida por tipo de débito distribui-se da seguinte maneira:

72,9% são tributos não previdenciários (impostos, taxas, contribuições);

22,3% são tributos previdenciários (INSS);

3,9% são débitos não tributários (preços públicos, multas); e

0,9% FGTS.

Quase três quartos do total da dívida, portanto, são relativos ao não pagamento de tributos não previdenciários, que decorre em boa parte de sonegação.

1.3. Tipo de Devedor

Esta classificação leva em consideração a relevância do valor do débito. São identificados como grandes devedores, conforme critério definido pela PGFN, os contribuintes cuja dívida seja igual ou superior a R$ 10 milhões [6].

Grandes Devedores – 66,7% do total = R$ 1,6 trilhão;

Demais Devedores – 33,3% do total = R$ 0,8 trilhão.

Segundo a publicação da PGFN, o número total de devedores é próximo de 5 milhões – precisamente 4.958.643. Desses, 22.675 são considerados como grandes devedores. Isso equivale a dizer que os grandes devedores da dívida ativa da União representam tão somente 0,45% do total de devedores e são responsáveis por dois terços do total da dívida – R$ 1,6 trilhão. Já os demais 4.935.968 devedores, que representam 99,55% do total de devedores, respondem pelo outro terço do estoque – R$ 0,8 trilhão.

1.4. Qualidade do Débito – “Rating” [7]

Na referida Portaria nº 293/2017, o então Ministério da Fazenda, atual Ministério da Economia, classificou os créditos inscritos em dívida ativa, por um sistema de rating bidimensional em ordem decrescente de recuperabilidade. O caráter bidimensional advém da análise de duas variáveis distintas e independentes, uma relativa ao débito e outra relativa ao devedor [8], que juntas compõem o Índice Geral de Recuperabilidade - IGR. São observadas as seguintes classes:

O destaque (em negrito) dado aos devedores classificados na letra “D” decorre da constatação de que mais da metade de todo o estoque da dívida ativa está enquadrada como créditos considerados irrecuperáveis. E, com certo rigor, pode-se acrescentar a esse percentual os devedores classificados na letra “C” – créditos com baixa perspectiva de recuperação. Por esse motivo, conforme o art. 13 da portaria do MF, “Os créditos classificados com rating C e D sofrerão desreconhecimento do Balanço Geral da União e deverão permanecer em conta de controle até sua extinção ou reclassificação”.

Portanto, 67,2% de todo o estoque são constituídos por créditos “podres”, isto é, que jamais entrarão nos cofres públicos, e, por conseguinte, apenas 32,6% do estoque têm possibilidade de serem recuperados, equivalentes a um montante realístico de R$ 794 bilhões.

2. Recuperação de dívidas

A PGFN informa ainda em sua publicação uma recuperação de R$ 24,4 bilhões em 2019, correspondente a 1% do estoque total. Sobre qualquer ângulo de avaliação, esse percentual se mostra irrisório. Mesmo considerando a hipótese de serem recuperáveis apenas R$ 794 bilhões, ainda assim chegaremos a uma recuperação de 3% dos créditos.

Não é, com certeza, um desempenho satisfatório.

3. Evolução da Dívida Ativa 2014-2019

A análise dessa dívida nos últimos 5 anos permite verificar como a gestão ineficiente da dívida ativa federal, constatada por esse desempenho insatisfatório da PGFN, estimula a inadimplência e, inclusive, a sonegação.

Segundo os dados da PGFN, em dezembro de 2014 a União tinha R$ 1,4 trilhão inscritos na dívida ativa distribuídos entre 3,5 milhões de devedores. Os responsáveis por dívidas de mais de R$ 10 milhões, inscritos como grandes devedores, eram 18,7 mil. A Tabela 2 compara esses dados com os relativos a 2019:

O valor do estoque da dívida ativa da União de 2014 atualizado a preços de 2019 é de R$ 1,8 trilhão o que evidencia um crescimento real de 33% no período 2014-2019. Da mesma forma, cresceu significativamente o número de devedores (40%) e de grandes devedores (21%), situação que nos permite inferir que é um bom negócio ser devedor do fisco não somente na esfera federal de governo, mas também nos Estados e Municípios, uma vez que isso também ocorre nas esferas subnacionais.

Enquanto isso, os REFIS (parcelamento de dívidas com anistia de multas e dispensa do pagamento de juros) proliferam pelo país, reescrevendo o dito popular para “Devo, não nego, pago quando quiser e se quiser”.

Considerações Finais

Esse quadro da dívida ativa federal evidencia a ineficácia da gestão financeira na esfera federal, na medida em que não parece haver uma política para a cobrança sistemática dos grandes devedores, cuja dívida representa 2/3 do total que o governo federal tem a receber – R$ 1,6 trilhão. A dívida ativa total de R$ 2,4 trilhões corresponde a cerca de 20 vezes os gastos federais com ações e serviços públicos de saúde realizados em 2019.

Esse resultado insatisfatório da gestão financeira do governo federal pode ser confirmado também pelo fato de que cerca de somente 1/3 dessa dívida ativa total está classificada como créditos com alta e média perspectiva de recuperação, revelando aqui questões de várias naturezas, como por exemplo: cadastros de contribuintes desatualizados, falta de planejamento da ação fiscal, falta de integração com os fiscos dos governos estaduais e municipais para compartilhamento de dados, dentre outros problemas.

Considerando a deterioração da situação fiscal no Brasil a partir de 2015, é inconcebível que a política econômica do governo federal priorize medidas para reduzir despesas, inclusive sociais, a ponto de retirar direitos de cidadania conquistados pela sociedade com a Constituição Federal de 1988, e não adote medidas para aumentar a arrecadação, principalmente por meio da intensificação da cobrança dos grandes devedores da União.

É inadmissível que 22,7 mil devedores não estejam sendo alvo de uma rigorosa ação para recuperação de créditos que totalizam R$ 1,6 trilhão, enquanto o governo federal retirou do SUS em 2019 mais de R$ 13 bilhões e, para 2021, encaminhou uma proposta orçamentária para o Congresso que, se for aprovada como está, vai reduzir R$ 35 bilhões em comparação aos valores atualmente existentes no orçamento do Ministério da Saúde para ações e serviços de saúde em 2020 – à guisa de comparação, essa perda, que prejudicará mais de 210 milhões de pessoas, corresponde a 2,2% do valor do total da dívida dos grandes devedores, beneficiados pela falta de efetividade na cobrança por parte da União.


[1] Déficit primário expressa o resultado negativo da diferença entre receita e despesa (exceto as financeiras)
[2] <https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/raio-x-do-orcamento-previdencia/raio-x-do-orcamento-2021-ploa-v2> acesso em: 21.set.2020
[3] Dívida Ativa União + FGTS base 2019
[4] <http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=83674> acesso em 24.set.2020
[5] PGFN em Números edição 2020 – Dados 2019 < https://www.gov.br/pgfn/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/pgfn-em-numeros-2014/pgfn-em-numeros-2020/@@download/file/pgfn-2020_2.pdf> acesso em: 21.set.2020
[6] Portaria PGFN nº 320, de 30.abr.2008 – Inciso I do art. 2º
[7] O termo “rating” foi adaptado ao sentido adotado pelas agências especializadas em analisar o nível de risco dos pleiteantes de financiamentos.

[8] Segundo o art. 3º da Portaria nº 293, a composição da variável relativa aos créditos inscritos (V-Deb) envolve análises de suficiência e liquidez das garantias (art. 4º) e de parcelamentos ativos (art. 5º). A variável relativa aos devedores (V-Dev) é composta pelas análises de capacidade de pagamento (art. 6º), endividamento total (art. 8º) e histórico de adimplemento.

Rubens Alves, Economista e Mestre em Administração pela FGV/SP, é auditor fiscal aposentado da PMSP e consultor em tributação e finanças públicas. Foi diretor do Departamento de Rendas da Prefeitura de SP.

Helder Alves, Especialista em Administração e Mestre em Gestão e Políticas Públicas pela FGV/SP e consultor em gestão pública.

Francisco Vignoli, Administrador Público e Mestre em Economia pela FGV/SP, é professor da FGV/SP e consultor em gestão e finanças públicas, foi Secretário de Finanças de Santo André e de Diadema.

Francisco Funcia, Economista e Mestre em Economia Política pela PUC-SP, é professor da USCS e consultor em gestão e finanças públicas e em economia da saúde, foi Secretário de Finanças de Ribeirão Pires.




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