Apresentação
A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.
Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos
Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado
ISSN 2525-8583
Domingueira Nº 45 - Dezembro
Índice
- Domingueira da Saúde
- Desafios da diplomacia da saúde em 2022-2023 - por Paulo M. Buss
Domingueira da Saúde
A Revista Eletrônica Domingueira da Saúde está publicando dez artigos (2.10 a 4.12) sobre O SUS NA PROXIMA DÉCADA, de diversos autores, contribuição para os debates eleitorais e futuras políticas públicas sanitárias.
Desafios da diplomacia da saúde em 2022-2023
Por Paulo M. Buss
Nas duas últimas semanas, reuniram-se a COP27 das mudanças climáticas, no Egito, e a Cúpula do G20 – os países mais ricos do mundo – na Indonésia. Os resultados destes dois últimos grandes eventos políticos globais de 2022 reforçam a percepção de que nada mudou na ordem política ou econômica mundial, mesmo que todos os fóruns realizados desde o início da pandemia venham apontando para a necessidade de mudanças profundas nos modelos de desenvolvimento e nos acordos multilaterais vigentes.
Desde 2020, ainda no início da pandemia, alertávamos em diversos artigos que manter o status quo econômico, social, político e ambiental que nos trouxe até aqui, e que permitiu a instalação da pandemia de Covid-19, seria catastrófico para o futuro da saúde humana e planetária, e sinal de enorme irresponsabilidade política dos que detém o poder mundial: países ricos, grandes empresas dos combustíveis fósseis, agrobusiness irresponsável, capital financeiro interessado no lucro fácil e rápido, grandes corporações transnacionais com compromisso único de bem remunerar seus acionistas, certas burocracias internacionais, entre outros atores políticos.
O resultado da COP27 foi um copo meio cheio-meio vazio. Esperavam-se compromissos firmes e concretos quanto à redução na emissão de gases de efeito estufa que não param de crescer e já ameaçam a saúde humana e planetária de forma quase irreversível. Interesses econômicos dos maiores poluidores (Estados Unidos e China) e de outros agentes econômicos globais (a exemplo dos grandes produtores mundiais de combustíveis fósseis) mais uma vez adiaram compromissos concretos na COP do clima.
De outro lado, a COP27 chegou a acordo histórico sobre ‘perdas e danos’ que beneficiariam países em desenvolvimentos, os mais prejudicados pelas mudanças climáticas, cuja causa primeira são os processos de produção e consumo insustentáveis dos países desenvolvidos ao longo de décadas. Mas deixa detalhes vitais, como quem paga a conta, para o ano que vem, na COP28 dos Emirados Árabes Unidos, ou até na COP30, de 2025, que Lula reivindica que seja realizada no Brasil. Ou seja, tudo prometido, mas nada acertado quanto à implementação. O lamentável é que de nada adiantará apoiar os países mais pobres na mitigação das perdas e danos, sem atacar a causa primeira, que são as imensas emissões de gases de efeito estufa, pelo modelo de desenvolvimento adotado globalmente, o modo de produção e consumo, e o descompromisso político em fazer as transformações necessárias.
Lula esteve na COP, foi saudado com entusiasmo, ligou clima, fome e paz na sua alocução, anunciou que o Brasil está de volta ao protagonismo quanto ao clima e à cooperação solidária entre os povos, e quer fazer a COP30 na Amazônia. Belo desempenho. A ver se a o presidente e a diplomacia brasileira conseguem transformar ‘intenção em gesto’. A prometida convocação da Cúpula presidencial sobre a Amazônia,reunindo todos os países que compartilham a floresta tropical sul-americana, pode ser um grande primeiro passo.
Já o G20, grupo que reúne as 20 economias mais poderosas do planeta, per se teria capacidade de produzir mudanças globais significativas. Três temas prioritários do encontro realizado em Bali refletem os pilares perseguidos pela presidência pro tempore da Indonésia: o fortalecimento da infraestrutura global de saúde, a transformação inclusiva da economia digital e a promoção de uma transição energética sustentável. Contudo, a temática da guerra na Ucrânia e todos os seus desdobramentos, como questões relacionadas às crises energética e alimentar, permearam grande parte das discussões, e ofuscaram alguns dos objetivos pretendidos.
Nesse sentido, a Cúpula de Bali, a nosso ver, também foi pouco produtiva, o que se reflete no mais-do-mesmo retórico da Declaração resultante . No seminário avançado em saúde global e diplomacia da saúde do CRIS de 24/11 sobre saúde nos grupos de países, já disponível no YouTube da Fiocruz , os resultados do G20 foram discutidos em profundidade, assim como as posições recentes do G7, BRICS e G77.
Verdade que a grandiloquência da declaração impressiona. Parece que “desta vez, vamos”, mas a se repetir processos passados, permaneceremos sem a efetividade esperada do G20. Atacar a insegurança alimentar nos países em desenvolvimento ocupou boa parte da declaração. Compromissos com a implementação dos acordos alcançados na COP27 do clima foram explicitados. Nesse caso, o problema está na frase “também apoiamos as deliberações contínuas sobre uma nova e ambiciosa meta quantificada coletiva de financiamento climático de um piso de US$ 100 bilhões por ano para apoiar os países em desenvolvimento, que ajude no cumprimento (etc. etc.)”, o que definitivamente significa, mais uma vez, o adiamento da disponibilização dos recursos financeiros. Esperando mais o quê?
Recomenda a adoção da Quadro de Biodiversidade Global Pós-2020 (GBF) , com o objetivo de realizar a Visão 2050 de “Viver em harmonia com a Natureza”, na segunda parte da COP15 em Montreal, e a atualização das Estratégias Nacionais de Biodiversidade e os Planos de Ação correspondentes. O lamentável é que nenhum chefe-de estado do G20 sequer anunciou sua presença na reunião. Enquanto isso, a biodiversidade tão importante para a higidez planetária e nossa própria sobrevivência continua a esperar medidas e recursos concretos.
Na saúde, o G20 declara-se comprometido com “promover uma recuperação saudável e sustentável que contribua para alcançar e sustentar a cobertura universal de saúde, sob os ODS (...); fortalecer a governança global da saúde, sob a liderança e coordenação da OMS e o apoio de outras organizações internacionais (...); e apoiar o trabalho do Órgão Intergovernamental de Negociação (INB), que prepara instrumento para fortalecer a prevenção, preparação e resposta (PPR) à pandemia (...); assim como o grupo de trabalho sobre o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), que considerará emendas ao mesmo”. Como sabemos, o GT teve seu ‘draft zero’ divulgado nesta semana, o que será tema de uma próxima ‘Domingueira’ deste autor.
Um Fundo Pandêmico foi aprovado, para apoiar os países menos desenvolvidos na prevenção, preparo e resposta à pandemias, no valor de USD 1,5 bilhões, irrisório diante das necessidades imediatas reconhecidas de cerca de USD 10 bilhões.
Finamente, o G20 reconhece que a ampla imunização contra a COVID-19 é um bem público global e se compromete a avançar nos esforços para garantir o acesso oportuno, equitativo e universal a vacinas, terapias e diagnósticos (VTDs) seguros, acessíveis, de qualidade e eficazes. A conferir as posições que adotará na OMC e na OMPI, onde os temas críticos da ‘flexibilização das patentes’ e da ‘transferência de know-how’ continuam emperrados, exatamente por posições postergatórias de integrantes do G20.
Na América Latina vemos a possível emergência de uma nova ‘onda rosa’ , que traz a possibilidade de uma diplomacia da saúde ‘progressista’, com o novo posicionamento do Brasil, sob a presidência de Lula, um campeão da integração multilateral, e a construção de uma cooperação verdadeiramente solidária entre os países da região.
Ao se examinar as agendas das diversas organizações multilaterais regionais e sub-regionais da América Latina e Caribe (CELAC, Mercosul, Comisca, Organismo Andino de Saúde, Caricom Saúde) observa-se uma grande convergência, na qual predominam a cooperação na aquisição e produção de insumos para a saúde (vacinas, terapias e diagnósticos (VTD), além de esforços comuns na formação de recursos humanos, saúde nas fronteiras, entre outras áreas.
O pessimismo da vontade e o otimismo da razão. Este célebre enunciado de Antonio Gramsci, em 1920, continua orientando nossa atuação. Ainda que por dever de ofício tenhamos que analisar os espaços políticos relevantes na cena global e concluir que os resultados da diplomacia da saúde não foram animadores em 2022 e se desenham difíceis em 2023, temos que manter a militância, como academia e sociedade civil, pressionando os governos para adotarem posturas mais sérias e consequentes diante da insanidade que parece ser a tônica nas relações internacionais gerais e em saúde no nosso tempo.
Paulo Marchiori Buss, é médico, pesquisador e professor titular da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, desde 1976, membro Titular da Academia Nacional de Medicina do Brasil (2005). Foi Vice-presidente do Comitê Executivo da Organização Mundial da Saúde (OMS) (2010-2011),foi Presidente da Fiocruz por dois mandatos (2001-2008)e Diretor da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz por duas vezes (1989-1992 e 1998-2000), tendo também sido Vice-Diretor da ENSP (1985-1989) e Vice-Presidente da Fiocruz (1992-1996). Atualmente é diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz. Representa o Brasil no Conselho de Saúde da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) e na Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP).