Apresentação
A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.
Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos
Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado
ISSN 2525-8583
Domingueira Nº 45 - Novembro 2020
Índice
- Boletim Cofin/CNS 2020/10/28 - por Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke
- O SUS NÃO ESTÁ A VENDA! - por Lenir Santos, Francisco Funcia
Boletim Cofin/CNS 2020/10/28
Por Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke
Francisco R. Funcia, Mestre em Economia Política pela PUCSP, Professor e Coordenador-Adjunto do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS e Consultor Técnico do Conselho Nacional de Saúde.
Rodrigo Benevides, Economista (UFRJ) e mestre em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ.
Carlos Ocké, Economista e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde - ABrES.
O SUS NÃO ESTÁ A VENDA!
Por Lenir Santos, Francisco Funcia
O Sistema Único de Saúde (SUS) foi surpreendido no dia 26 de outubro de 2020 com o Decreto n° 10.530, dispondo sobre “política de fomento ao setor de atenção primária à saúde [1], para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, cujos projetos pilotos serão selecionados em ato da Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos do Ministério da Economia”.
Esse decreto resgatou a Resolução nº 95, de 19 de novembro de 2019, do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, de teor similar, editado contemporaneamente à Portaria 2979, de 12 de novembro de 2019, do Ministério da Saúde, que instituiu o novo modelo de financiamento da atenção primária à saúde [2], o qual, dentre outras medidas, extinguiu o Piso de Atenção Básica enquanto mecanismo que respeitava o critério populacional na definição das transferências do Fundo Nacional de Saúde e estabeleceu a regra de usuários cadastrados para esse fim, o que coloca em risco a universalidade do atendimento e pressiona ainda mais os municípios na alocação de recursos adicionais para financiar o SUS diante da queda esperada das transferências federais, principalmente no contexto do teto (em queda) dos gastos primários e da redução do piso federal do SUS decorrentes da retomada das regras da Emenda Constitucional 95/2016 (EC 95) na formulação do Projeto de Lei Orçamentária da União para 2021.
Ainda que revogado no mesmo dia, dada a pronta reação nacional contra a proposta de estudos para privatizar o serviço-alicerce do SUS, a atenção primária em saúde, tal decreto merece considerações ante o seu escopo de privatizar serviço estrutural do SUS, o qual ordena todos os demais. Impensável pois a sua privatização que significaria, se isso fosse possível à União que não detém tal competência, retirar da gestão do dirigente municipal de saúde primordialmente, e do dirigente estadual, secundariamente pelo seu papel supletivo na atenção primária, transferindo essa competência para o Ministério da Economia, a quem caberia selecionar os projetos de parceria de investimentos, e assim levar o SUS para o mercado, ávido pelo seus recursos – como nos mostra a história do capitalismo, o capital está sempre em busca de novas oportunidades de investimento lucrativo, bem como da apropriação dos fundos públicos por meio da terceirização e/ou concessões de serviços públicos. Conforme nota publicada pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS), “o decreto apresentado não trata de um modelo de governança, mas é uma imposição de um modelo de negócio” [3].
A atenção primária atua como o serviço porta-de-entrada principal do SUS, o qual deve estar o mais próximo possível do seu usuário para uma “atenção à saúde centrada no cidadão” mediante programas de promoção e proteção à saúde, podendo ainda cuidar de serviços assistenciais de baixa complexidade tecnológica, com os agentes comunitários – servidores que vivem na mesma comunidade – estabelecendo o elo serviço-cidadão, com visitas domiciliares para a promoção da saúde. Tal estratégia de atenção à saúde é essencial para a resolução de 80% das necessidades de saúde das pessoas, referenciando-se para serviços de maior complexidade as situações o que o exijam.
Serviços de saúde de acesso universal, igualitário, integral, gratuito e organizados de forma sistêmica requerem estruturas básicas de atenção à saúde para o seu sucesso. O SUS tem organização sistêmica o que implica em integração de serviços de entes federativos em todos os níveis de complexidade e gestão interfederativa. Está acessível para 212 milhões de pessoas em 5570 municípios num território de 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Introduzir a privatização na atenção primária, separando-o dos demais serviços, mediante supostas parcerias com o mercado da saúde que visam ao lucro acima de tudo e de todos, excluindo do SUS o seu elemento essencial que é o bem comum, a integração de serviços públicos, o compartilhamento federativo, a gestão interfederativa, é desarticular, desmembrar o SUS em sua essência organizativa, é o começo do fim [4].
Um sistema de saúde que, mesmo com insuficiência de recursos há mais de 30 anos, respondeu positivamente à pandemia da Covid-19, demonstra o acerto da Constituição de 88 que garantiu um sistema público de saúde de acesso universal e igualitário, o qual somente deve contar com serviços privados quando os públicos forem insuficientes para o atendimento da população. Privatizar a atenção primária num país que abriu, ao arrepio da Constituição, o investimento de capital estrangeiro na saúde, é querer dar a quem só visa o lucro a saúde das pessoas. É preciso como diz Michel Sandel [5] colocar limites morais ao mercado, acabar com o seu triunfalismo e decidir que certas coisas o dinheiro não pode comprar pois o bem comum deve triunfar sobre essa expansão que tomou conta do mundo em razão do império do mercado.
Além das considerações anteriores sobre a impossibilidade constitucional de privatizar a atenção primária à saúde, o Decreto revogado – que mostrou as reais intenções do Governo – apresenta outras irregularidades: (i) retira da saúde a sua gestão (passou para o Ministério da Economia) numa afronta ao disposto na Constituição, art. 198, I, a direção única da saúde em cada esfera de governo, sendo na esfera federal, o Ministério da Saúde (art. 9° da Lei n. 8.080, de 1990), (ii) despreza a diretriz constitucional da descentralização dos serviços e da gestão tripartite do SUS, Lei n° 12.466, de 2011, ao ignorar as competências da Comissão Intergestores Tripartite em questões de tamanha relevância, (iii) desconsidera o princípio federativo de autonomia dos entes ao discutir privatização de serviços que não estão na competência da União, a qual não tem serviços de atenção primária em saúde, reservados ao município principalmente e aos estados em caráter supletivo e (iv) não respeita a competência do Conselho Nacional de Saúde [6] em seu papel de definir junto com o Governo as estratégias da política de saúde, à luz das diretrizes aprovadas na Conferência Nacional de Saúde, nos termos da Lei n° 8.142/90.
Além do mais a área da saúde não está sujeita a concessão nos termos do art. 175 da Constituição por não ser serviço exclusivo nem tarifado e qualquer forma de parceria com iniciativa privada que seja adotada com base nesse decreto retiraria do secretário estadual ou municipal de saúde seu dever-poder de gerir a saúde em seu território.
O modelo assistencial do SUS (art. 198 da CF) não admite privatização nem voucher [7]; menos ainda obviamente a atenção primária em saúde, que é o elo direto e imediato entre o cidadão e o SUS, “porta de entrada” do sistema, cabendo-lhe proteger e promover a saúde da pessoa e garantir que qualquer agravo seja resolvido na rede interfederativa de atenção à saúde de saúde, cuidando de seu caminhar na rede de atenção especializada, hospitalar e de apoio diagnóstico.
Privatizar a atenção primária seria uma prática de desagregação do SUS, a corromper a sua essência sob a alegação de que o mercado é mais capaz que o Estado que existe para cuidar do bem comum. Se o próprio Estado subverter o público, o bem comum estará morto e tudo então estará à venda e o Estado perderá a sua função primordial e seus valores. A extensão dos mercados a campos que não lhes são próprios tem gerado conflitos morais como os da saúde pois o SUS não é produto de mercado, mas sim direito fundamental e não estando à venda; seus valores não têm a ver com o mercado, são valores que visam o bem comum, o bem-estar das pessoas, o viver mais e melhor de modo coletivo. A pauta do bem comum não pode ser dada pelo mercado nem para satisfazer os seus interesses.
É falsa a alegada supremacia do setor privado sobre o setor público em termos de eficiência da gestão – qual é a experiência da gestão privada de uma rede de serviços de saúde que atenda 212 milhões de pessoas em 5.570 municípios num território de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, abrangendo vacinação de pessoas e animais; consultas básicas e especializadas; cirurgias simples a transplantes; exames laboratoriais e de imagem; fiscalização sanitária em portos, aeroportos, fronteiras, restaurantes, estabelecimentos de saúde; produção de insumos, vacinas, dentre outros, com R$ 3,60 (três reais e sessenta centavos) per capita-dia?
A revogação do Decreto 10530 não significa que a pressão do mercado sobre o SUS foi encerrada, porque, dentre outros, os interesses do capital sobre a saúde continuam representados no governo. A forte reação da sociedade expressada de forma negativa nas redes sociais levou a revogação do Decreto n° 10.530 numa demonstração que a defesa do SUS nesses tempos de pandemia deve prosseguir sem trégua.
Nestes tempos de eleições municipais, mais do que em qualquer outra época, cabe à sociedade escolher candidatos a prefeito e vereador que defendam explicitamente a defesa do SUS e a luta pela ampliação do financiamento federal para saúde. É preciso que tanto a defesa do valor do orçamento federal para o SUS em 2021 inclua os recursos autorizados para o Ministério da Saúde enfrentar a Covid-19 em 2020 (R$44,2 bilhões) , como a revogação da EC 95/2016, estejam presentes em seu programa de governo municipal – trata-se de uma ação que pode mudar o país a partir do voto no dia 15 de novembro para resgatar no Brasil a defesa dos direitos de cidadania. Saúde é Democracia. Democracia é Saúde.
[1] A atenção primária em saúde não é serviço federal, mas sim municipal e estadual. Propor estudos para privatizar serviço municipal e estadual vai do absurdo à afronta do princípio federativo.
[2] Ver Nota Técnica do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo (Disponível em http://www.cosemssp.org.br/noticias/nota-tecnica-cosems-sp-novo-modelo-de-financiamento-da-atencao-primaria-em-saude/).
[3] Ver Nota à Imprensa – Decreto 10530 (disponível em https://www.conass.org.br/nota-a-imprensa-decreto-10-530/).
[4] “Um Sistema Único de Saúde estruturado, funcional e sem subfinanciamento cria muitas dificuldades, quando não inviabiliza, à atuação do capital tanto no mercado de planos de saúde quanto no provimento de serviços privados de saúde” (Noronha J.C; Noronha G.S; Pereira T.T; Costa A.M.. Notas sobre o futuro do SUS: breve exame de caminhos e descaminhos trilhados em um horizonte de incertezas e desalentos. Cien Saude Colet, 2018; 23(6):2051-2060). Nestes termos, considerando o subfinanciamento existente, esse decreto foi uma iniciativa importante para o desmonte do SUS.
[5] Sandel, MJ. O que o dinheiro não compra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. 1ª edição, 2012.
[6] Os Conselhos de Saúde têm representação dos segmentos de usuários, trabalhadores e gestores do SUS.
[7] Voucher: termo de origem inglesa que significa atestar e se refere a um documento comprobatório de um pagamento ou direito a serviço ou produto. Pretensão do governo, pelo desejo do mercado, de abandonar um sistema complexo de saúde, direito fundamental, por um pagamento isolado de um procedimento realizado no serviço privado, de forma desconectada, absolutamente na contramão do significado do SUS.
Lenir Santos, advogada, doutora em Saúde Pública pela Unicamp, professora colaboradora do Departamento Saúde Coletiva Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário – IDISA.
Francisco R. Funcia, Mestre em Economia Política pela PUCSP, Professor e Coordenador-Adjunto do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS e Consultor Técnico do Conselho Nacional de Saúde.