Apresentação
A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.
Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos
Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado
ISSN 2525-8583
Domingueira nº 27 - Agosto 2023
Índice
- A Saúde não pode mais perder recursos federais - por Francisco R. Funcia e Lenir Santos
A Saúde não pode mais perder recursos federais
Por Francisco R. Funcia e Lenir Santos
O objetivo desta nota é avaliar com preocupação o conteúdo da matéria do jornal “Folha de São Paulo" (1), de 16/08/2023, “Arcabouço cria impasse de R$ 6 bi com Saúde”.
O impasse refere-se à necessidade de remanejar recursos adicionais para o Ministério da Saúde cumprir o piso federal (2) do SUS de 15% da Receita Corrente Líquida, 2023, conforme decisão do atual governo em negociação com o Congresso Nacional, em dezembro de 2022, antes mesmo de sua posse, para interromper o nefasto processo de subtração de recursos federais do Sistema Único de Saúde (SUS), no período 2018 a 2022, em decorrência à Emenda Constitucional (EC) 95/2016.
Tabela 1
Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS): estimativa das perdas do orçamento federal em função da EC 95 e EC 113 - 2018-2022 (em R$ bilhões a preços correntes) (3)
A tramitação do Projeto de Lei Complementar do novo arcabouço fiscal no Congresso Nacional suspendeu a vigência da EC 95/2016, até a sua aprovação final, o que ensejou a retomada da regra do piso federal do SUS da EC 86/2015, compatível com o compromisso político deste governo federal, empossado em 1º de janeiro de 2023: 15% da RCL, o que representou um acréscimo em torno de R$ 22,7 bilhões aos cerca de R$ 150 bilhões encaminhados originalmente para compor o Orçamento de 2023 pelo anterior governo.
Esse acréscimo mantém sintonia com o entendimento do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva: de que saúde não é gasto, saúde é investimento. Eventuais cortes na área da saúde comprometem o esforço de retomada do crescimento econômico desse governo, considerando tanto o efeito benéfico da saúde para o conjunto da economia brasileira, em especial para o Complexo Econômico Industrial da Saúde, como a maior produtividade decorrente da melhoria das condições de saúde da população.
A matéria jornalística afirma que “o governo ainda avalia possíveis saídas jurídicas. Há a possibilidade de se fazer uma consulta ao TCU (Tribunal de Contas da União) para saber como tratar a questão”. Sobre isso, é oportuno destacar que o piso federal do SUS, 15% da RCL, é constitucional, devendo a sua suspensão pela EC 95, de 2016, transformar-se em revogação com a aprovação do novo arcabouço fiscal, que dará novamente vida à EC 86, de 2015. Compete ao Poder Executivo Federal cumprir a Constituição Federal.
Segundo o Jornal, como a arrecadação federal está se comportando acima do previsto, os 15% da RCL corresponderiam a R$ 188,7 bilhões para o SUS federal, ou seja, o orçamento do Ministério da Saúde precisa ter um acréscimo superior a R$ 18 bilhões. O impasse acima citado não corresponde a R$ 6 bilhões, mas a um valor três vezes maior que aquele. É oportuno destacar que esse acréscimo de recurso precisa ocorrer imediatamente, para que a Lei Complementar n. 141, de 2012, seja cumprida, ou seja, os recursos orçamentários em acordo ao valor do piso devem estar disponíveis imediatamente e não ao final do exercício financeiro (dez).
A matéria traz ainda uma “informação reservada” de técnicos do governo federal para não repassar integralmente para o Ministério da Saúde esse valor adicional de R$ 18 bilhões do piso federal. “o cenário mais provável é que o Executivo precise assegurar o novo mínimo de maneira proporcional, a partir da sanção do novo arcabouço”. Trata-se de interpretação similar àquela que “técnicos” à época do Ministro da Saúde Ricardo Barros, no governo Temer, no final de 2016. Tentaram adotar para evitar que os 15% da RCL vigorasse também em 2016, na medida que a EC 95 foi aprovada em dezembro/2016. É bom lembrar que o Conselho Nacional de Saúde reprovou em 2017 o Relatório de Gestão do Ministério da Saúde de 2016, entre outros motivos, pelo fato de o valor aplicado em ações e serviços públicos de saúde ter ficado abaixo dos 15% da RCL.
Para assegurar:
a- que “saúde é direito de todos e dever do Estado” (artigo 196), considerada de “relevância pública” (artigo 197),
b- as deliberações aprovadas na 17ª. Conferência Nacional de Saúde (realizada em julho/2023, em cumprimento aos ditames da Lei 8142/90), especialmente as que tratam da alocação de recursos adicionais para o financiamento do SUS federal,
c- as deliberações sobre a necessidade da ampliação do financiamento do SUS, expressas em diversas recomendações e resoluções do Conselho Nacional de Saúde, e
d- a determinação do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (saúde não é gasto, saúde é investimento)
é preciso garantir em 2023 e 2024, no mínimo, 15% da Receita Corrente Líquida como piso federal do SUS, sem nenhuma interpretação reducionista, bem como o governo federal precisa abrir diálogo com a saúde para apresentar proposta de recomposição parcelada (a partir de 2024) dos R$ 70 bilhões suprimidos do Ministério da Saúde de 2018 a 2022 em razão da EC 95. Em outros termos, é preciso fortalecer, e não reduzir, a capacidade de financiamento do SUS, sob pena de saúde não ser direito de todos e dever do Estado, mas sim mera proclamação de direito sem concretude.
1 - Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/08/avanco-do-arcabouco-fiscal-cria-impasse-sobre-piso-de-gastos-com-saude-em-2023.shtml)
2 - A questão do piso federal da saúde foi tratada pelos autores desta nota recentemente em “Guerra nas Estrelas - As eternas lutas de Jedi contra a quebra do piso da saúde”, Domingueira da Saúde, nº 23, julho/2023 , disponível em http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-23-julho-2023
Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/08/avanco-do-arcabouco-fiscal-cria-impasse-sobre-piso-de-gastos-com-saude-em-2023.shtml
3 - Elaboração: Francisco R. Funcia (15/05/2023 - 1ª versão preliminar, sujeita à revisão)
Fonte: Adaptado de ABrES e IE/UFRJ (Nova Política de Financiamento para Saúde, setembro/2022, disponível em https://www.ie.ufrj.br/images/IE/grupos/GESP/gespnota2022_ABRES%20(2).pdf) para o período 2018-2021; Adaptado de Boletim Cofin/CNS 31/12/2022 (disponível em https://conselho.saude.gov.br/images/comissoes/cofin/boletim/Boletim_Cofin_31_12_22.pdf), de Relatório Anual de Gestão 2022 do Ministério da Saúde (disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/relatorio_anual_gestao_2022.pdf) e de STN (RCL de 2022) para 2022 (disponível em https://www.tesourotransparente.gov.br/publicacoes/receita-corrente-liquida-rcl/2022/29).
Francisco R. Funcia é economista e mestre em Economia Política (PUC-SP), doutor em Administração (USCS), professor dos cursos de Economia e Medicina da USCS e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES)/gestão 2022-2024.
Lenir Santos é advogada, doutora em saúde coletiva pela Unicamp, professora colaboradora da Unicamp, e presidente do Idisa – Instituto de Direito Sanitário Aplicado.