Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
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Conselho Editorial
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Nelson Rodrigues dos Santos
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Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira nº 26 - Julho 2024

Índice

  1. Os labirintos da judicialização da saúde - por Lenir Santos e Reynaldo Mapelli Júnior

Os labirintos da judicialização da saúde

Por Lenir Santos e Reynaldo Mapelli Júnior


A judicialização da saúde é hoje um fenômeno no SUS. Pode-se dizer que, a partir de 2003, ela tomou corpo e, passados 21 anos, seus crescentes números são preocupantes, com demandas de medicamentos não incorporados pelo SUS à fralda infantil e geriátrica, estas próprias da assistência social, sem luz no fim do túnel.

A pergunta que nos atenta é o que pode não ter dado certo na saúde brasileira, seja no SUS ou na saúde suplementar, para que as demandas judiciais tenham atingido os patamares que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apurou em 2023. Conforme sistematização de Clênio Schulze (1), esses números apontam para 1.307.991 processos judiciais (saúde pública e suplementar), sendo 803.149 somente contra a saúde pública (SUS) em suas três esferas de governo.

Números que causam apreensão, com debates nos mais diversos fóruns, congressos, seminários, reuniões, teses de mestrado, doutorado, pesquisas, jornadas de direito, comissões, sem conclusões ou propostas que levem à real desjudicialização.

Diversas são as teses fixadas pelo STF em julgamentos do tema com repercussão geral, sem que se consiga, entretanto, solucionar relevantes questões jurídico-sanitárias, dentre as quais, de especial relevância, a distribuição de competência entre os entes federativos no cuidado com a saúde da população, que deve obrigatoriamente decorrer do modelo constitucional e legal do SUS (Lei Orgânica da Saúde).

Modelo que está preso na teia do conceito jurídico de responsabilidade solidária dos entes federativos na competência comum que não coaduna com o sistema público de saúde, que leva em conta, na distribuição de competência, critérios como: a capacidade socioeconômica, demográfica, geográfica dos entes federativos; a epidemiologia; a organização da rede de serviços e escala.

A esses critérios devem somar-se as relações de medicamentos e de procedimentos, instituídas por pactuação dos gestores, em acordo às análises da Conitec e a incorporação do Ministério da Saúde (MS), sem esquecer-se da necessidade premente de nova política de precificação de medicamentos pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed), vinculada a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em compatibilidade a direito fundamental sob tutela do Estado.

Como os recursos públicos são limitados, uma vez que o Tesouro Nacional não é um saco sem fundo e que governar requer planejar com visão de futuro, é preciso definir políticas públicas fundadas em regramentos constitucionais e legais como as que organizam os serviços sanitários pautados pelo princípio da igualdade de atendimento, da universalidade e atendimento integral.

Como preconizado pela reforma sanitária e inscrito no artigo 198 da CF, o modelo assistencial tem como alicerce a atenção primária, competência originária dos municípios e supletiva dos estados, financiada pelos três entes federativos, em especial pela União, que deveria aplicar 15% dos valores de suas transferências obrigatórias nesse nível de atenção (2), por ser prioridade constitucional (artigo 198, II da CF), o atendimento preventivo que deve pautar o modelo assistencial do SUS suas políticas.

Não seria crível nos anos 1970/80, quando o SUS foi idealizado, que os municípios seriam demandados pela sociedade face ao Poder Judiciário, de modo individual, como os responsáveis pela realização de procedimentos assistenciais de alto custo, que em relação ao porte de mais de 80% deles, estaria a cargo do Estado ou da União.

No SUS, se considera, para a definição de atribuições sanitárias, o porte do município em acordo às condições acima mencionadas para então ser-lhe conferido um papel (móvel) na região de saúde e nas redes de atenção. A hipótese de o município ser o responsável por serviços para além das atribuições pactuadas federativamente, jamais fez parte do pensamento dos idealizadores da reforma sanitária por ser inconcebível a um sistema interfederativo de ações e serviços públicos de saúde executado por entes federativos profundamente desiguais, o que rompe com o modelo de assistência à saúde fundado na hierarquização da complexidade de serviços (artigo 198 da CF).

Solidariedade sistêmica

A responsabilidade solidária, do ponto de vista sanitário, é uma responsabilidade peculiar em relação ao conceito jurídico tradicional, que vê na competência constitucional comum deveres solidários dos entes federativos para com o cidadão (3), que faz sentido em setores que não se organizam de forma integrada, como é o caso da saúde pública, que se configura como um sistema de cooperação federativa obrigatória, nos termos do artigo 198 da Constituição.

Na saúde, deve-se compreender que há solidariedade sistêmica. Uma responsabilidade vinculada à resolutividade de um sistema interfederativo. A responsabilidade sistêmica se traduz na obrigatoriedade de os entes federativos serem resolutivos, seja mediante a prestação de serviço per se ou ao encaminhamento referenciado do paciente ao serviço adequado às suas necessidades na região de saúde, em suas redes de atenção. Ser responsável pela resolutividade sistêmica é uma peculiaridade do SUS, que não ocorre na educação, meio ambiente, assistência social, dentre outros.

Responsabilidade com a integralidade da atenção, que somente pode ser satisfeita nas redes-SUS, de modo sistêmico. A satisfação do direito à saúde se dá na rede de atenção, independentemente do local onde reside o usuário, sempre em acordo as competências executivo-sanitárias pactuadas entre os entes federativos. Um sistema interfederativo (4), uma rede interfederativa de ações e serviços de saúde. Essa responsabilidade sistêmica é retratada pelo compromisso de cada ente federativo com a resolutividade dos serviços na região, nas redes de atenção. São competências em acordo à complexidade de serviços e ao porte do ente federativo.

O disposto na Lei nº 8.080, de 1990, inciso XII do artigo 7° define como diretriz do SUS, a capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência, o que dá ensejo à responsabilidade solidária sistêmica que significa o acompanhamento do caminhar referenciado do paciente na rede de atenção à saúde.

O Poder Judiciário, ao conceituar a responsabilidade solidária como o dever de cada ente da federação, per se, realiza todo e qualquer serviço, mesmo aquele que não está sob a responsabilidade do ente demandado, rompe com o modelo organizativo, sistêmico, interfederativo do SUS. Ao mesmo tempo o Poder Judiciário reconhece haver atribuições distintas, sistêmicas, quando admite o ressarcimento ao ente demandado pelo ente responsável pelo serviço, em conformidade às pactuações interfederativas. Aplicar a concepção civil da responsabilidade solidária no SUS é não perceber a sua conformação constitucional sistêmica, interfederativa.

Reconhecer que no SUS a pactuação é um imperativo constitucional decorrente de seu modelo (artigo 198), ao mesmo tempo em que determina o cumprimento da decisão judicial por quem não lhe deu causa, é uma contradição que embaraça o funcionamento do sistema.

Este desrespeito às estruturas organizativas preconizadas na Lei nº 8.080, de 1990, e no Decreto nº 7.508, de 2011, é um dos fatores da intensidade da judicialização. Ora, nem mesmo o rol de serviços incorporados no SUS, em acordo a legislação (5), como a Relação Nacional de Medicamentos e a Relação Nacional de ações e Serviços de Saúde (Renases), são respeitados pelo prescritor do medicamento ou produto e pelo Judiciário. Essas relações de cunho nacional, e as complementares estaduais e municipais, devem dispor sobre os conteúdos do direito à assistência terapêutica integral, nela compreendida a farmacêutica, na forma da Lei nº 12.466, de 2011.

Não há sistema universal de saúde sem discriminação das ações e serviços de saúde que o compõem e conformam o próprio direito à saúde sob responsabilidade estatal (6). Quase todos os países com sistemas públicos universais, como Espanha, Portugal, Itália, Canadá, mantêm relação, caderno, listas, rol até porque não haveria como proceder ao próprio planejamento e orçamento público. Sem contornos jurídico-sanitários a definir a integralidade da atenção à saúde, o SUS não terá como se organizar executiva e orçamentariamente, conforme Lenir Santos. (7)

Se assim for, se deixará ao critério do mundo tecnológico e farmacológico e dos grandes conglomerados tecnoindustriais globalizados da saúde determinar o conteúdo do direito à saúde de nosso país, de acordo com seus interesses, sem a devida apreciação da Conitec, afrontando a realidade do País, o seu sistema público de saúde e financiamento. Uma captura indesejável.

Legitimidade da União sobre judicialização

Todas essas considerações preliminares nos levam a adentrar na mais recente discussão sobre a judicialização da saúde realizada pela comissão criada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), pelo ministro Gilmar Mendes, relator de um desdobramento do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1366243 com repercussão geral (Tema 1234), que versa sobre a legitimidade passiva da União e a competência da Justiça Federal nas demandas judiciais sobre medicamentos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas não incorporados no Sistema Único de Saúde (SUS) (8).

O ministro relator do RE, impetrado pelo governador de Santa Catarina, decidiu em abril de 2023 ser “imprescindível a determinação da suspensão nacional dos processos em tramitação sobre a matéria“, incluindo os processos que discutem a aplicabilidade do Tema 793, até o seu julgamento definitivo. E em setembro do mesmo ano, convocou comissão especial (9) para debater o financiamento, pelos entes federativos, dos medicamentos referentes ao Tema 1234, considerando a necessidade de “deflagrar processo de diálogo interfederativo e colaborativo com a sociedade, que propicie a construção de solução autocompositiva para a questão”.

Como parte desse diálogo federativo, o Ministério da Saúde apresentou em maio de 2024, à Comissão, acordo formalizado com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretárias Municipais de Saúde (Conasems), fixando a competência da Justiça Federal para as demandas de medicamentos não incorporados no SUS, cujo custo unitário seja igual ou superior a 210 salários-mínimos, cabendo à União o seu custeio integral. Valores inferiores, de forma graduada, ficariam na competência da Justiça Estadual, com a participação da União no cofinanciamento desses medicamentos. “É a partir dessa compreensão que a judicialização deve ser a exceção e, trabalhando com esse espírito tripartite que forma o SUS, que nós conseguimos esse avanço”, afirmou a ministra da Saúde (10).

Essa pactuação causou perplexidade no meio jurídico por não ser da competência do Poder Executivo fixar alçada judicial, que tem regras processuais de competência em razão de matéria, pessoa e função, que geram nulidade absoluta do processo se descumpridas (artigo 109, CF e artigo 64, §1º, CPC). E também pelo fato de a Comissão, muito bem vinda, não ter discutido temas relevantes da judicialização, como o não conhecimento pelo Poder Judiciário das peculiaridades do SUS em suas esferas de governo; as pactuações interfederativas; os critérios de rateio e repasse de recursos e o conceito de integralidade sistêmica regulada (Lei nº 12.466, de 2011, que alterou a Lei Orgânica da Saúde; Decreto nº 7.508, de 2011, que a regulamentou; e Lei Complementar nº 141, de 2012), mediante uma visão amplificada de solidariedade passiva que vai contra o caráter sistêmico do SUS.

A concepção de direito à saúde como uma norma aberta, sem os contornos jurídicos postos pela farta legislação do SUS, tem sido o móvel da intensa judicialização, deixando o seu conteúdo ser definido por profissionais da saúde (prescritores) e pelo mercado de tecnologias, produtos, insumos sanitários, com fraca regulamentação dado serem serviços de relevância pública mesmo que livre ao particular o seu exercício. O mercado influencia as políticas públicas de saúde, a incorporação de tecnologias, afetando o modelo assistencial do SUS que é predominantemente preventivo e protetivo. Se o direito à saúde corresponder a tudo o que existe na medicina no mundo de hoje e no futuro, em acordo aos interesses das indústrias e seus lobbies e marketing, não será possível planejar nem orçamentar o SUS, tampouco definir suas prioridades. Governar é também traçar prioridades.

É por isso que o Decreto nº 7.508, de 2011, que regulamentou a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080, de 1990), fixou balistas organizativas do SUS, como a Renases (Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde), a Rename (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais) e as regras para o usuário do SUS, que deve ingressar na rede pública de saúde e ser atendido pelos serviços segundo fluxos e protocolos definidos previamente.

No mesmo sentido organizativo, a Lei nº 12.401, que alterou a Lei nº 8.080, de 1990, define em seu artigo 19-M que a assistência terapêutica integral, a que se refere a alínea do inciso I do artigo 6º, consiste na “dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico” e na “oferta de procedimentos terapêuticos constantes de tabelas elaboradas pelo gestor federal do SUS, realizados no território nacional por serviço próprio, conveniado ou contratado“. Norma de claro contorno jurídico-sanitário do dever estatal.

Igualdade de atendimento do SUS

Desconsiderar toda a estrutura legal e decretual que organiza o funcionamento do SUS quanto à incorporação de tecnologias novas viola o princípio da legalidade, da orçamentação pública, do planejamento; reconhecer que medicamentos não incorporados no SUS podem ser incorporados individualmente, sem orçamentação que permita a incorporação coletiva, ao arrepio da igualdade de atendimento do SUS e sem o aval técnico da Conitec, enfraquece o SUS, e aceitando isso, a Comissão mostra pouco progresso.

No nosso entendimento, isso tudo significaria:

1 - reconhecer que há medicamentos não incorporados no SUS mas que deveriam sê-los, sem indicar os recursos;
2 - desconsiderar a prerrogativa legal do Poder Executivo para definir os conteúdos dos serviços e medicamentos que competem ao SUS e por conseguinte orientadores de seu planejamento e orçamentação;
3 - desconhecer que as pactuações definidas nas comissões intergestores tem lastro em lei específica;
4 - que pode ser concedido medicamento sem parecer da Conitec e de modo individual.

Infelizmente, nos parece que se busca tão somente aperfeiçoar os processos da judicialização. Isso corrobora com o argumento de que judicialização ganhou vida própria, sendo um quase “instituto“ autônomo do direito sanitário. E o Tema 6, ainda em julgamento, conforme for a decisão final, poderá dar vida a um sistema paralelo ao SUS, ao admitir que o direito à saúde abarca medicamentos não incorporados a ser garantidos pelo SUS somente àqueles que comprovarem não poder custeá-los, fere o princípio da igualdade, da universalidade e da gratuidade da saúde pública, em divergência à decisão exarada no RE 581.488 que considerou ser o SUS de acesso universal e igualitário, não sendo possível haver diferença de classe em seus serviços.

Aperfeiçoar a judicialização sem adentrar em suas causas, como o histórico subfinanciamento, é desorganizar o sistema público de saúde, seus princípios, diretrizes, competências constitucionais hierarquizadas quanto à complexidade de serviços, e a igualdade de atendimento, fragilizando ainda o sentido de sua relevância pública em relação ao controle dos serviços públicos e privados (artigo 197 da CF).

Isso acaba por favorecer o livre mercado da saúde; os altos preços dos medicamentos; a indústria farmacêutica e suas permanentes inovações, que nem sempre são inovações de fato; o modelo altamente tecnológico de prover saúde, com mitigação da prioridade constitucional (artigo 198, II da CF) de atuar preferencialmente na prevenção, na atenção primária e nas vigilâncias em saúde.

Não devemos, ante tantas demandas urgentes do SUS e muitas mal solucionadas, nos agarrarmos em narrativas de que o SUS é o maior sistema público de saúde do mundo sem poder afirmar ser ele o melhor sistema público de saúde, que conta com financiamento público sustentável; que qualifica a Conitec e a respeita; que regula o setor privado, especialmente o capital estrangeiro na saúde, assunto da ADI 5.239, ainda não julgada, e o crescente parque hospitalar privado, sem falar das subvenções/isenções.

Uma discussão da sociedade e do Estado quanto à escolha de prioridades no planejamento e orçamento públicos, medidas em relação à regulação de preço de medicamentos, autonomia da Conitec e nova forma do seu processo de incorporação que deveria, imediatamente ao registro de um medicamento ou tecnologia de saúde pela Anvisa, proceder à análise de sua incorporação no SUS e na saúde suplementar.

Enquanto não diminui a judicialização, talvez o caminho seja votar a PEC n° 45, de 2021, que estatui que o cumprimento da diretriz constitucional do atendimento integral (artigo 198, II, CF) deve observar que a incorporação de novos medicamentos, produtos e procedimentos ao sistema único de saúde será feita mediante análise prévia por órgão de âmbito nacional de avaliação da incorporação de tecnologias em saúde e que a dispensação de medicamentos e de produtos de interesse para a saúde e os procedimentos terapêuticos estejam adstritas às tecnologias expressas nas relações oficiais.

Temos evidências de que as causas da judicialização em relação ao Poder Executivo são o financiamento insuficiente; a ausência de política de saúde fundada na sobriedade e racionalidade na incorporação de tecnologias; a revisão da Cmed; regulamentação da autorização de serviços privados hospitalares de modo a não crescerem mais que o SUS para não capturarem as políticas de saúde no país.


1) Acessar: https://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-23-junho-2024

2) EC 29 de 2000, que alterou o art. 77 do ADCT, § 2°.

3) Conceito que remete as relações privadas, conforme o Código Cívil, que em caso de diversos devedores, o credor é livre para cobrar a dívida de um ou de todos, facultando-lhe escolher o devedor com maior potencial de quitá-la. Na esfera pública, a competência comum não coaduna com esse conceito, pelas grandes diferenças federativas, a rigidez das alçadas processuais, a burocracia quanto ao ressarcimento federativo. Não se pode escolher de quem cobrar na competência comum. Vejamos a educação, direito de todos e dever do Estado, com competências definidas em lei; e na saúde com competências delegadas pela lei à pactuações interfederativas, em acordo às realidades, para garantir proporcionalidade entre deveres e capacidades federativas. Foi o que fez a NOB 1, em 1993. Afora a necessidade de a lei definir, como o fez, os contornos da integralidade da atenção à saúde por não poder o céu ser o limite. Ou o céu será tudo o que o mercado detiver.

4) Um sistema interfederativo, diferentemente do sistema de educação que esgota o campo de atuação de cada ente com seus próprios serviços. Na saúde, ele se interpenetra. Um cidadão necessita complementar seus cuidados nos serviços de outro ente, que tem o dever de atendê-lo em sua região, em suas redes de atenção, sem ressarcimento porque as transferências interfederativas se dão para que haja essa compensação (Vide Lei Complementar n° 141, de 2012).

5) Ver Lei n° 12.401, de 2011 e Decreto n. 7.508, de 2011.

6) Qualquer direito individual, social, coletivo não pode ser aberto, mas sim precisa de balizas, contornos jurídicos para delimitá-lo, sob pena de tudo o que puder ser considerado como direito à educação, saúde, meio ambiente, moradia etc. ser pleiteado judicialmente face ao Estado.

7) Santos, Lenir. Os contornos jurídicos da integralidade da atenção à saúde. Disponível em: http://dspace.almg.gov.br/xmlui/bitstream/item/7630/geicIC_FRM_0000_pdf.pdf?sequence=1

8) O que não está incorporado no SUS pela via legal, não deveria ser objeto de discussão individual por ferir o princípio da igualdade (art. 196). Deveria sim haver a possibilidade de ser debatido pela sociedade junto à Conitec-MS, órgão responsável pela incorporação de medicamentos, produtos e tecnologias em saúde. Essa incorporação individualizada enseja a existência de dois SUS quanto à sua obrigatoriedade de garantir assistência terapêutica integral.

9) Comissão composta por representantes da União (Fundo Nacional de Saúde-MS), do Conselho Nacional de Saúde, da Conitec, Anvisa, Estados e Municípios.

10) https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2024/maio/ministerio-da-saude-entrega-proposta-sobre-judicializacao-em-saude-ao-stf


Lenir Santos é advogada, especialista em Direito Sanitário pela Universidade de São Paulo (USP), doutora em Saúde Pública pela Universidade de Campinas (Unicamp) e professora colaboradora do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp.

Reynaldo Mapelli Júnior é promotor de Justiça do MP-SP, doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP, professor do Mestrado em Direito Médico da Unisa, professor de Direito Sanitário da Uninove e em outras instituições e membro do Conselho Superior e Fiscal do Idisa.


Publicado no Consultor Jurídico




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