Endereço: Rua José Antônio Marinho, 450
Barão Geraldo - Campinas, São Paulo - Brasil
Cep: 13084-783
Fone: +55 19 3289-5751
Email: idisa@idisa.org.br
Adicionar aos Favoritos | Indique esta Página

Entrar agora no IDISA online

2013 - 35 - 683 - DOMINGUEIRA - 25 ANOS DE SUS-CESSO - 27/07/2013

1.PRIMEIRA PÁGINA – TEXTOS DE GILSON CARVALHO
 
Vinte cinco anos de SUS-CESSO[1]
Gilson Carvalho[2] 
 Nossa conversa será sobre o que chamo de “25 anos de SUS-CESSO”. Mesmo analisando o momento de crise que atravessa a saúde, a gente não pode deixar de reconhecer e valorizar realmente os grandes feitos que aconteceram na área de saúde pública neste país nos últimos 25 anos. Quero, exatamente, mostrar isso para vocês. Tive outras oportunidades em outros eventos aqui em Santa Catarina de comentar esse fato. Tenho feito isto Brasil afora com muita satisfação, porque, hoje, já estou com 50 anos de militância na área da saúde.
Comecei moleque, novo ainda, como atendente de enfermagem. Hoje estou com 40 anos de medicina. Sempre me lembro que ao me formar, em 1973, fui trabalhar no interior de Minas Gerais e não havia SUS, não havia AIS e nem toda a classe trabalhadora era registrada na previdência. A maioria não tinha direito ao INAMPS. Eu atendia as pessoas que tinham algum recurso para arcar com os custos do atendimento à saúde. Porém, mais da metade da população dependia exclusivamente da caridade nossa, de profissionais de saúde e das Santas Casas de Misericórdia.  Ou os profissionais tinham essa solidariedade, essa filantropia, ou a maioria das pessoas não tinham nada em relação à saúde.
Com esse SUS que eu quero mostrar para vocês (que não nasceu há 25 anos, tem uma gestação anterior a ele), mudamos esse quadro. Se vocês me perguntarem quais são os problemas do SUS, os desafios, eu mostro o que já foi mostrado aqui e muito bem, com muita propriedade, pelos que me antecederam, e mais um punhado de outras coisas não ditas. Porém, eu não posso deixar de mostrar aquilo que realmente faz o sucesso de um sistema em construção. Se nós hoje tivéssemos que fazer um grito de guerra, seria o grito de guerra de defesa de um SUS que é de vocês e que é meu, é de todos nós. Eu acho que o grande problema é que aqueles que têm vocalização na sociedade ainda não entenderam que o SUS não é um sistema de saúde de pobres, mas é um sistema de saúde do cidadão brasileiro. Enquanto ele for visto como de pobres e apenas defendido pelos pobres ou pelos militantes da defesa do social, ele será paralelo e restará periférico realmente.
É dentro dessa ideia que eu quero falar para vocês, lembrando, em primeiro lugar, que nós não podemos perder de vista qual é o objetivo do Sistema Único de Saúde. Qual é a missão que nós temos hoje, nós profissionais de saúde? Nós, trabalhadores de saúde? A nossa missão não é fazer consultas, dar remédio: isso é um instrumental, uma ferramenta para a gente conseguir atingir o objetivo maior que estamos perdendo de vista. Nós só temos uma coisa a fazer: ajudar as pessoas a viverem mais e melhor. Temos ainda a visão antiga de que nossa missão seja evitar a morte. Isso é uma impropriedade total! A coisa mais inexorável para quem vive é morrer. O máximo que conseguimos é ajudar as pessoas a viverem mais na linha do tempo e a viverem melhor na linha da qualidade.
Não podemos perder isso de vista. Mas, está escrito na Constituição, está escrito na Lei Orgânica de Saúde, não depende exclusivamente do povo da saúde, de nós operários, operadores de saúde, conquistar saúde como vida por mais tempo e melhor.  Está escrito: é dever do Estado, mas depende também do indivíduo, da família, das empresas e da sociedade. E nós da saúde, o mais das vezes, queremos puxar pra nós mesmos, exclusivamente, essa responsabilidade que é de todos.
Outro ponto é que a saúde (isso já foi discutido há tanto tempo, e não levamos para a prática) tem determinação econômica e social, e nós fomos incapazes de mostrar isso para as pessoas. Muitas vezes, montamos um serviço exatamente para dizer para as pessoas: “é remédio, é médico, é internação, é UTI, é disso que vocês estão precisando”, e nós não mostramos que o grande determinante é econômico e social. Mudar o econômico e social não é função do SUS, é função do Estado brasileiro e de todos nós, cidadãos: mexer no extrassetorial para diminuir os riscos e agravos à saúde.
Tenho uma séria dúvida. Será que nós estamos fazendo o SUS constitucional, esse que estamos construindo há cerca de 50 anos? Não dá só 25 anos, não. É uma história que vem lá de longe, da construção e da garantia do direito à vida e à saúde das pessoas. Só chamando a atenção: se vocês olharem ali na Constituição, os três objetivos desse sistema são, em primeiro lugar, identificar e divulgar os condicionantes e determinantes. Quando há pouco eu falava, notei as pessoas estranhando que nós não estamos mexendo no extrassetorial. É preceito: nós temos que divulgar o que condiciona e determinada a saúde, isso é fazer SUS. E eu fico na dúvida se estamos identificando condicionantes e determinantes. Nós estamos puxando para nós a culpa de tudo, e não é só nossa do setor saúde. Um segundo objetivo é planejar para mudar os condicionantes e determinantes. O setor saúde tem que ser provocador e instigador dos outros setores para mudar, através do planejamento e execução de ações que diminuam as condições de risco, de doenças e de agravos. O terceiro objetivo, aí sim, é fazer as ações que são próprias nossas, do povo da saúde especificamente, que são as ações e serviços de saúde.
Mas, de novo, aí nós estamos pecando. Porque está dito: “ações de promoção”, mexer com as causas; “ações de proteção”, mexer com riscos, e “ações de recuperação”, que são as destinadas a quem já tem a doença, o agravo. E eu fico me perguntando: é esse SUS que nós estamos fazendo? É esse o SUS que nós estamos discutindo? Ou esse é o SUS “ilustre desconhecido”, do qual nós estamos querendo comemorar os 20 anos de SUS-CESSO? Isso tinha que estar na ponta da língua, tinha que ser ensinado em todas as cadeiras, em todos os lados desta universidade, para todo mundo estar ciente: é isto. Até para tentar ou querer mudar. Como achar que eu deva mudar algo que eu nem tentei experimentar? O que dá para fazer da maneira como o SUS foi bolado, como foi imaginado? Enfrentaremos este desafio de fazer o SUS constitucional?
Como andam os princípios e diretrizes constitucionais e legais do SUS? Universalidade, integralidade, igualdade (equidade), intersetorialidade... Ilustres desconhecidos! Nós estamos tentando construir o novo, mas nós estamos todos viciados no velho. É um modelo velho de fazer saúde que impera dentro de grande parte da rede de serviços de saúde. É um império da queixa-conduta: “Dói aqui, dói ali...”, “Toma isto, toma aquilo...”. É o pronto atendimento desqualificado que vai ficando moda. Então, 25 anos de SUS-CESSO nós temos, e – eu vou mostrar para vocês – temos muito a comemorar, mas nós também temos que desentocar, desentranhar da Constituição aquilo que está lá e que anda longe de estar sendo praticado como SUS.
Anos atrás, logo depois da Declaração de Alma-Ata, nas unidades de saúde da minha cidade, São José dos Campos, nós fizemos um pôster de um metro por meio com essa declaração, na qual já havia muito do que ajudou a plasmar o SUS. Hoje eu queria que objetivos, funções, princípios e diretrizes do SUS estivessem expostos em cada unidade de saúde para que nós – gestor, profissional, estudante, professor – todos os dias pudéssemos avaliar se estamos fazendo SUS.  Temos que parar de pensar que o SUS é o sistema do governo, o sistema do gestor. O SUS é o sistema de saúde do cidadão brasileiro! É o meu sistema de saúde!  Eu fico pensando no SUS dos outros, mas é o meu sistema. Hoje, transitoriamente, eu posso ter dinheiro, você pode ter dinheiro e pagar um plano de saúde. Que garantia nós temos de poder pagar, além do SUS, mais um sistema de saúde? Nós vamos ter condições, nossos filhos, nossos netos, de estar arcando com os custos de um sistema privado? É em cima do SUS que nós temos que defender o direito de cidadania. Inclusive lembrando que, mesmo pagando privado, nós somos os únicos usuários perenes do SUS desde que levantamos até irmos dormir. Estamos usando o SUS em todas as ações genéricas que o SUS faz. E faz muito melhor e mais do que já foi feito. Com todos os nomes complicados que adotamos: “vigilância sanitária”, “vigilância epidemiológica”, “vigilância em saúde”, CEREST, SAMU e outras invencionices. Todas são ações importantes que dizem respeito a todos os cidadãos.
Lembrando um pouco de história, eu gosto sempre de começar por 1963, na antevéspera da ditadura militar, na época de João Goulart. Foi a época do sonho de se fazer as grandes reformas neste país: reforma da educação, reforma da seguridade, da previdência, reforma agrária e a reforma da saúde. Aliás, a Terceira Conferência aconteceu exatamente em dezembro de 1963, quando foi defendida como ponto crucial a questão da saúde para todos os cidadãos, um direito universal. Estava lá também sacramentada a questão da descentralização, da municipalização, de colocar o poder perto do cidadão.
Hoje eu me envergonho do que faz o meu país, em nível central, totalmente contrário ao princípio constitucional da descentralização. Basta ver o financiamento federal para a saúde mandando dinheiro carimbado para estados e municípios, ou em 130 caixinhas, ou em cinco blocos (prenhes de caixinhas dentro), é a mesma coisa. É muito interessante a diferença do discurso e da prática. De um lado, o aparato central da saúde quer contratar o privado via modelo de contratualização global, denominando-o de parceiro; de outro, trata o parceiro constitucional, estado e município, como prestador de serviço, com dinheirinho carimbado. Faz parte das contradições: contratualização global para os prestadores de fora e recursos carimbados para as esferas de governo estadual e municipal! É o mesmo que pagar por procedimento, não muda nada. Dinheiro carimbado é pagamento por produção, tanto faz se pouco ou muito dinheiro. Carimbo pequeno, menor ou maior.
Esse marco de 1963 (III Conferência Nacional de Saúde) para mim é fundamental. Depois, no cenário renovador da saúde, teve o movimento dos departamentos de medicina preventiva, que ajudavam a formar novas cabeças, a discutir e ampliar a questão da saúde trabalhando com a integralidade e os determinantes econômicos e sociais. Foi feita uma parceria com vários municípios, e vocês tiveram aqui na universidade de vocês também esse momento. Faço uma homenagem aqui ao Marco Aurélio da Ros, o Marcão, que logo em seguida se envolveu nesse trabalho novo de transformação das faculdades de medicina, ajudando a formar novos profissionais de saúde, com outra mentalidade.  Foram profissionais forjados nessa época que deram continuidade ao Movimento da Reforma Sanitária.
Mais à frente o Ministério da Saúde fez um projeto chamado Programa de Interiorização das Ações em Serviços de Saúde (PIASS) para as regiões Norte e Nordeste, que teve seu papel, mas não foi para frente. Surge nessa época um grande movimento, denominado Movimento Municipalista da Saúde, o de 1976, com a adesão de várias prefeituras. Aqui em Santa Catarina, eu me lembro de Lages e de outras  prefeituras assumidas pelo governo progressista, que na época era o do MDB, que se contrapunha à Arena, que era o partido dos militares. Aconteceu um Movimento Municipalista calcado nos primeiros cuidados com a saúde da população. Não tinha SUS, por isso eu quero lembrar que não são 25 anos de SUS. Se quisermos contar a partir de 1963, são 50 anos de construção do SUS. Se quisermos contar a partir de 1976-78, já serão 37 anos de SUS, de construção do direito à saúde de todo o cidadão brasileiro.
Depois veio a crise da previdência. Quem vai salvar é o público: foi lançado o Programa de Reorientação da Previdência e começaram as parcerias da previdência com o serviço público de saúde através das Ações Integradas em Saúde (AIS). Em sequência veio a 8ª Conferência Nacional de Saúde, onde toda essa efervescência sintetizada num movimento denominado de Reforma Sanitária trouxe a proposta de um novo sistema de saúde, que se tornou vitoriosa e foi levada à Assembleia Nacional Constituinte, quando foi criado o SUS. Enquanto se discute o SUS, em 1987 juntaram os sistemas públicos de saúde naquilo que se denominou de Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde (SUDS). É muito interessante que o SUS nasce não de cima para baixo, nasce de baixo para cima. Nasce da junção de técnicos, gestores e população para construir um sistema que fosse para todo mundo. Depois vêm as leis, as portarias.
Dois movimentos essenciais se juntaram. O dos gestores no Movimento Municipalista, porque desde 1976 foi implantando um sistema de saúde universal e buscando a integralidade. Junto aos municipalistas esteve sempre a população que se organizava nas associações de moradores e com a Igreja Católica nas Comunidades Eclesiais de Base. Podemos pensar que é com essa junção de comunidade e dirigentes que vão se organizar nas AIS os Conselhos de Saúde. Oficializa-se nas AIS a participação da comunidade na saúde, que é muito mais do que o “controle social” que a gente vive repetindo. Participação da Comunidade na Saúde é o preceito que está na Constituição.
 Foi só a partir desses dois movimentos, e principalmente, na década de 1980, da criação das AIS, que se fez uma primeira conferência com grande participação da comunidade, que foi a 8ª Conferência Nacional em Saúde. Enquanto a 7ª Conferência teve 400 participantes, na 8ª havia cinco mil pessoas para discutir saúde.
Quais foram as vitórias dessa construção do direito à saúde? Nós fizemos um marco regulatório com mais de duzentas leis, algumas transitórias, orçamentárias, mas tem leis importantíssimas. Nós fizemos a lei própria do SUS, a 8080, a 8142 depois a 8689. Fizemos a lei de saúde mental, a lei do sangue, as leis das agências reguladoras. Tudo isso é um SUS-CESSO. Não tínhamos essa legislação antes. Houve também um crescimento quase exponencial da rede de postos e centros de saúde com a maioria municipal e expansão no número de leitos públicos.  
Outro SUS-CESSO foi o emprego em saúde. Eu ouço as pessoas falando em precarização do trabalho. Olha que coisa interessante: a minha cidade desde 1978 tem a obrigatoriedade de concurso público. Essa questão de precarização nunca foi problema na minha cidade, São José dos Campos. Por quê? Porque os primeiros agentes comunitários de saúde, quando a gente criou o programa de primeiros cuidados de saúde em São José dos Campos, todos eles já eram contratados por concurso público, com carteira assinada, dentro da legislação, tudo direitinho. Então, assusta que a gente tenha caminhado para esta delinquência da precarização do trabalhador de saúde. Não deveria ter sido assim.
Na área de educação permanente do povo da saúde nunca se fez tanto. Ainda é pouco, precisa fazer mais, mas já se andou bastante. A produção científica. Nunca se produziu tanto, nunca se analisou tanto, nunca houve tanto trabalho operacional que não é da academia olhando a realidade, é o pessoal da realidade, é o pessoal que está vivendo o problema quem está produzindo. Isso é um SUS-CESSO!
Outro exemplo é a vacinação. Há praticamente 100% de vacinação para menores de um ano, 87% de vacinação antigripal de idosos. A vacinação contra rubéola, a maior campanha de vacinação do mundo! Meta de vacinar 70 milhões de jovens e adultos. Depois o sucesso da vacinação contra a influenza. Temos que aprender a reconhecer. A questão de promoção da saúde, o incentivo à atividade física, a discussão sobre a alimentação, a campanha de combate ao fumo e ao alcoolismo. Olhem que interessante: com o trabalho intersetorial conseguimos grandes feitos, como com a Lei Seca.  Nós estamos derrubando a questão do acidente de trânsito, da morbimortalidade por alcoolismo no trânsito, e esta é uma medida intersetorial. Com nenhuma medida específica da área da saúde conseguiríamos esse feito de derrubar a morbimortalidade no trânsito.  Não temos o hábito das ações intersetoriais, e precisamos delas.
DST/AIDS. São perto de 200 mil pessoas vivendo com o vírus da AIDS em tratamento pelo SUS, um dos maiores programas do mundo para a área. Foram criadas as agências reguladoras (ANS, ANVISA). Produzimos mais medicamentos. Criamos os genéricos. Lembro a questão da renúncia fiscal. Nós temos cerca de dois bilhões a cada ano de renúncia fiscal para medicamentos, que têm diminuição dos seus preços nas farmácias, mas as pessoas nem sabem que isso existe. É muito interessante, você coloca dois bilhões de renúncia na produção dos medicamentos sem nenhuma repercussão, nem política, nem de satisfação da população, porque isso não é lembrado. O SAMU está atendendo a mais da metade da população. Os procedimentos de alta complexidade e vários programas foram estendidos à população, ainda que com os desvios de centralismo, de verticalismo.
O grande avanço da participação da comunidade. É bom lembrar que o termo “controle social” não existe, nem na Constituição, nem na Lei Orgânica da Saúde. A palavra que está lá é “participação”, que inclui as conferências e conselhos. Eu quero só lembrar uma coisa: nós precisamos ir além dos conselhos e das conferências.  Esquecemo-nos que, quando dizemos que todo o poder é exercido pelo povo, que o faz diretamente ou através de seus representantes eleitos (democracia representativa), não tiramos do cidadão o poder da democracia participativa. Muitas vezes, nós queremos reduzir aos conselhos e conferências o direito de participação das pessoas na saúde. As pessoas, quando elegem seus representantes para os conselhos, não perdem seu direito à participação direta. Deixamos de ir buscar o apoio ao SUS na sociedade já organizada fora da saúde. Com respeito a todas as crenças religiosas, nós não estamos indo atrás das igrejas (muitas delas criticadas por nós), que estão fazendo um trabalho substitutivo e paralelo na área da saúde. Várias igrejas estão trabalhando com hábitos higiênicos das pessoas, nas suas casas. Trabalho de saúde mental das pessoas dentro ou fora de seus ritos religiosos. Nós do SUS não estamos indo atrás dessa sociedade para ajudar a discutir o SUS e o direto à vida.
Descentralização e municipalização. Já se falou bastante disso, foi um grande avanço. Não existe no mundo um processo de descentralização, com todos os seus erros e defeitos, como o que aconteceu no Sistema Único de Saúde no Brasil. Mas as pessoas não entendem isso. Nós temos ainda entraves? Temos. Eu brinco que o Ministério da Saúde e as Secretarias Estaduais de Saúde são, muitas vezes, o túmulo de todo municipalista revolucionário.  Quero dizer, existem vários municipalistas revolucionários que o são quando estão na base. Quando sobem e são guindados a posições nas Secretarias Estaduais de Saúde ou no Ministério da Saúde assumem o viés centralista e passam a fazer com o sistema descentralizado tudo que condenavam. 
 Não sei se é por isso, mas o movimento descentralizatório faz parte de um anseio do mundo. Existe todo um esforço mundial no sentido de trazer o poder para perto da necessidade. Eu me lembro das rádios locais que às seis horas da manhã já estão criticando as deficiências da saúde, as filas etc. Reclamam da prefeitura e da secretaria de saúde, que não fazem isso.  Vivi essa situação como secretário de saúde em meu município. A gente se perguntava: “mas por que eles fazem isso?”. Mas quando defendíamos a descentralização do poder, era isso mesmo que nós queríamos: que as pessoas tivessem a possibilidade de acessar aqueles que estão com poder para dar uma resposta mais efetiva. Quando eu estou lá no meu município, a minha família está lá e é lá que eu vou jogar bola no final de semana, é lá que eu vou ao bar, aos restaurantes, que meus filhos vão para a escola.  É onde eu tenho a possibilidade de captar tudo isso e de dar uma resposta mais pronta, ainda que às vezes a gente não saiba aproveitar esse momento.
Para terminar essa análise dos sucessos do SUS e entrarmos na questão crítica, eu gostaria de lembrar alguns números que estou desafiando gestores e profissionais a divulgarem. O SUS, que é criticado e acusado de “ser uma droga”, de “não funcionar”, de “não fazer nada”, tem uma série de feitos.
No ano de 2012 foram feitos 3,9 bilhões de procedimentos, 583 mi de ações de promoção e proteção, 11,4 milhões de internações, 2 milhões de partos, 3,3 milhões de cirurgias, 887 mi de procedimentos di9agnósticos e terapêuticos. Este é o SUS que “não vale nada”, que “não faz nada”, que é desqualificado pela sociedade, pelos profissionais de saúde, pelos gestores!...
 Nós não divulgamos o que fazemos. Sugiro que o secretário de saúde pegue uma folhinha todo mês divulgando o que faz. Não faça folder, não. Folder de quatro cores fica muito caro. Sugiro uma folhinha de papel sulfite, que custa cinco centavos cada cópia. Reproduza mil, passe para todos os funcionários, afixe em todas as unidades, nos cursos e nas universidades. É preciso discutir no curso de farmácia, de enfermagem, de odontologia, em todo lugar. O SUS que não é do gestor, é de todo cidadão. Infelizmente, nós não fazemos isso, e quem não divulga, leva a fama de nada fazer, acaba levando a crítica.  Nós não mostramos o que fazemos, até para dizerem “não, isso aí é mentira, é falso”. É importante divulgar para ter crítica, para aprimorar. Como é que nós vamos mexer com os dados?
Agora, os desafios. Isso eu já lembrei, nós precisamos mexer no setorial. E nós não estamos fazendo, nós não estamos apontando. Cada criança desnutrida que chegasse ao serviço de saúde tinha que ter um rito de reapresentação à sociedade: “Eis aqui! Uma criança não pode mais chegar aqui desta maneira!” Mas nós não fazemos. Nós  somos considerados os culpados. Nós somos culpados pela desnutrição, pelos acidentes, nós somos culpados pelo trabalho insalúbre, por tudo. Nós somos culpados pelas vidas que chegam já morrendo dentro das nossas unidades, dentro dos nossos hospitais. Nós somos responsáveis pela ineficiência, como se nós tivéssemos sido a causa desencadeadora de tudo isso.
O Brasil é a nona potência econômica mundial em dólar pela capacidade de poder de compra e somente a 78ª economia mundial quando eu divido essa economia pelo número de gente que nós somos. E ainda temos um grande problema: este dinheiro não tem distribuição uniforme entre as pessoas. Há uma concentração de riqueza nas mãos de alguns e baixa renda nas mãos da maioria. Os condicionantes e determinantes da saúde situados no extrassetorial são todos dependentes de renda. Temos problema com trabalho que pode garantir renda. Da renda depende casa, comida, vestuário, saneamento, meio ambiente, educação, lazer, transporte. Todos condicionantes e determinantes da saúde.
Existe um círculo virtuoso envolvendo saúde e desenvolvimento.  Já está na Declaração de Alma-Ata: a saúde gerando desenvolvimento e o desenvolvimento gerando saúde.  Nós, muitas vezes, somos acusados e ficamos pensando que somos gastadores de dinheiro. Esquecemos que na hora em que deixamos o ser humano um pouco mais feliz, com um pouco mais de vida, com mais saúde, nós estamos ajudando o desenvolvimento. Dinheiro gasto em saúde é investimento. É investimento real. Às vezes, nós ficamos presos aos ditames do capitalismo, do mercado, considerando os bens de consumo (carro, casa, etc.) como coisas essenciais, como investimento: “vou investir na minha casa”, “vou investir no meu carro”. E investir em saúde fica lá, renegado para segundo, quarto, quinto lugar.
Só lembrando alguns dados: são milhões de desempregados, incluindo os subempregados. Quando se fala em 78o lugar na distribuição de renda, fica visível a disparidade enorme nessa área.
Análise da POF – Pesquisa de Orçamento Familiar 2008-09 mostra que os 10% mais pobres têm uma renda per capita de 64 reais, e os 10% mais ricos, de 2.850 reais. O 1% mais rico deste país é detentor de 19,6 % do PIB, enquanto os 50% mais pobres têm 15% do PIB.  Não estamos discutindo isso, mas nós temos que mexer nessas coisas para melhorar as condições de saúde da população.
 Quando eu não tenho trabalho, não tenho renda começam os problemas. Sem renda não tenho comida, ou tenho comida errada, ou comida que é a mais barata e que talvez faça mais mal ao organismo humano. Tem o problema do déficit habitacional (faltam 7,8 milhões de habitações), do saneamento básico (40,75% apenas tem  tratamento de esgoto), o acesso à água potável (24,17%). São milhões de crianças na rua ou de manhã, ou de tarde, ou de noite, ou o dia inteiro. Então, surgem os problemas que vão levar a esse diagnóstico que aqui se falou, do tríplice impacto das doenças que temos hoje sobre a população. Este é o nosso quadro, com gente morrendo de doenças em que jamais poderíamos pensar como tuberculose e diarreia. São doenças em que há possibilidade de intervenção, de vacina, de diagnóstico, de tratamento. Então, começam a aparecer os problemas relacionados à falta dos condicionantes gerais e também do acesso a saúde. E se eu falo em mexer, o grande desafio é fazer essa associação de que o econômico e o social determinam o estado de saúde. A gênese da doença está ligada às questões relativas à pobreza, e nós temos que mexer nisso.
Outra questão é a do financiamento. Em 2011 gastamos 154 bilhões de reais de dinheiro público. De dinheiro privado foram 172 bilhões, totalizando 326 bilhões de reais. A União participou desse dinheiro público em 47%, os estados em 26% e os municípios em 27%. Se for analisada a arrecadação, veremos que é diferente.  De tudo o que se arrecada neste país, em imposto e contribuições, a União fica com 60% e coloca em saúde apenas 47%. Os estados ficam com 24% da receita e colocam em saúde mais ou menos o equivalente. E os municípios? Estes ficam com o restante da arrecadação, apenas 16%, mas são responsáveis por 27% do financiamento da saúde e ainda são os mais criticados. Nós queríamos o SUS com sua direção perto da população e que estes dados fossem mostrados. 
A União, com a Emenda Constitucional 29 (que teve alguns avanços e um  grande fracasso), diminuiu em praticamente um terço o que estava previsto com a PEC 169 do Eduardo Jorge, pela qual nós tanto lutamos. Várias pessoas já sabiam que o governo iria aprovar a PEC169, mas não era o projeto inicial do Eduardo Jorge, era um substitutivo que reduzia o gasto federal com saúde. A grande massa de profissionais e militantes da reforma sanitária ficou defendendo a proposta do governo como se fosse igual à da PEC 169. O Governo mudou a proposta, retirou a inicial do Eduardo Jorge e colocaram a do Malan-FHC, e o SUS levou uma tunda!!!!  Aumentou-se em 20% o volume de recursos exigidos dos estados e em 50% o volume exigido dos municípios e reduziu-se para menos de 50% a contribuição federal da saúde.
Os dados de gastos com saúde mostram uma coisa triste: a medicalização da população. Só de medicamentos comprados diretamente nas farmácias em 2011, foram gastos 61 bilhões de reais. Nestes 61 bilhões não estão os remédios do SUS, nem os dos planos de saúde. Estimamos que se gastem em remédios cerca de 50 bilhões de reais. Ou nós assumimos que queremos um modelo novo com desmedicalização da população para preservar a saúde e a felicidade das pessoas ou não vamos dar conta, praticando um sistema de saúde equivocado.
Temos um outro grande problema que é a perda de recursos via corrupção. Vira e mexe alguém da saúde é pego. É medicamento, é exame, é órtese, é prótese... Víamos essas críticas nos jornais leigos de grande circulação.  Eu me surpreendi certo dia com o Jornal da Associação Médica de Minas Gerais colocando os chefes de associações médicas de especialidades, falando dos percentuais que os profissionais médicos estão levando por receitas de determinados produtos. O Jornal da Associação Médica de Minas Gerais, não é jornal leigo não: tinha declaração, com retrato, nome e cargo do colega profissional. Nós vamos botar o dedo nessa ferida ou não vamos?
Vimos na mídia quem financiava a associação de pacientes de câncer que fez uma ação contra o Ministério da Saúde por causa da quebra de patentes? Quem estava financiando? Saiu na imprensa. Era quem? O laboratório fabricante do medicamento cuja patente estava sendo quebrada! Nós vamos discutir isso ou não? Pegando o dinheiro público e dividindo pelo número de pessoas e por cada dia do ano, deu R$ 2,39 no ano de 2011. Eu brinco que é o vale coxinha. Não sei se aqui se compra coxinha ainda por esse valor... Esse índice eu batizei como “Índice EJ e RG”. Eduardo Jorge e Roberto Gouveia, dois grandes amigos meus, médicos paulistas, que foram parlamentares e grandes defensores do SUS. Foram eles que fizeram e divulgaram esse cálculo, que todo ano eu atualizo.
Se nós pegarmos o ano de 2011, que é o último ano de que dispomos de dados de gasto de recursos próprios com a saúde, os Municípios que deveriam colocar como piso 15% de suas receitas próprias colocaram em média 21% com 13,5 bi de recursos a mais que o mínimo. Os Estados com a obrigação de colocarem 12% colocaram 14% mas ainda devem cerca de 35 bi dos anos anteriores que deixaram de colocar o mínimo em saúde. Este dado não é meu, é do Ministério da Saúde. Está lá no SIOPS, quem quiser pode constatar. Nós precisamos ver essas coisas. Onde e quem está deixando de cumprir o seu papel? Senão, nós vamos fazer fogo amigo, atirar em quem mais está fazendo pela saúde do brasileiro que são os municípios sempre objeto de nossas críticas.
Outro tópico é a renúncia fiscal. Dinheiro que o governo deixa de arrecadar e que está relacionado à saúde. Trouxe o dado mais recente, do Ministério da Fazenda, sobre renúncia fiscal relacionada à saúde no ano de 2012. Chegou-se a 19,8 bilhões de reais no total. Imposto de Renda das pessoas físicas, 9,7 bilhões; das jurídicas, 3,1 bilhão; das filantrópicas, 2,6 bilhão; de medicamentos, 4,4 bilhões.
Nesse momento do meio de 2013, temos três questões a discutir: qual é o montante de dinheiro federal que precisamos a mais na área da saúde, qual a melhor forma de calculá-lo e de onde se vai tirar. Estamos colhendo assinaturas para apresentar um projeto de iniciativa popular em que se exija do Governo Federal o gasto de no mínimo 10% da Receita Corrente Bruta. Se aprovado este projeto a saúde teria cerca de 40 bi a mais
Algumas fontes substitutivas, o governo já lançou de imediato quando caiu a CPMF: aumentou a alíquota do IOF e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSSLL), e em médio prazo tem o projeto da reforma tributária.  Quero alertá-los: a pior coisa que pode acontecer à saúde é a aprovação do projeto de reforma tributária que está em votação no Congresso, levado pelo governo Lula. Já está ruim hoje, sem a reforma e com ela, do jeito que está, vai ser pior. E não é estudo meu não, tem uns dez estudos, inclusive de Economista  da Unicamp, que estão ajudando nessa discussãomostrando que a reforma tributária vai prejudicar a área social.
Algumas saídas estão presentes como possibilidades de trazer mais recursos para a saúde: a) a proposta do governo de criação da Contribuição Social para a Saúde, que é a volta da CPMF diretamente para a saúde; b) recursos de melhora da arrecadação; c) possibilidade de uso de parte do superávit primário; d) realocação de recursos tirados de outras áreas.  Este momento é o pior que a saúde pode atravessar, a nossa crise de financiamento. O governo manipulou o parlamento e conseguiu aprovar a regulamentação da EC 29, sem colocar um centavo a mais para a saúde. É praticamente impossível que nesta década se pense em aumentar o dinheiro na área da saúde.
Não pretendo me aprofundar na discussão da CPMF, mas um dia nós, a intelectualidade, os estudantes, os trabalhadores, vamos ter “depressão” ao lembrar que achamos muito bom o dia em que a CPMF acabou. Os que iriam enriquecer sem a CPMF foram para a telinha e disseram, ou financiaram a outros para que dissessem: “Sem a CPMF vai ser melhor, vai ser um mundo novo, começaremos o dia primeiro de 2008 com mais empregos, tudo vai baixar de preço”. Assim foi vendido para nós, cidadãos brasileiros. E no dia primeiro, nada, absolutamente nada, mudou de preço para menos. Pelo contrário, mudou para mais. Por quê? Porque todos nós demos um presente de Papai Noel para o empresariado brasileiro: nós demos o presente de continuarem mantendo a CPMF embutida no preço de seus produtos (49 bi). Nenhuma obrigação de pegar o dinheiro embutido nos preços e depositá-lo nos cofres públicos. Foi lucro líquido e certo para eles. Não tínhamos nenhuma capacidade de fiscalizar se isso iria acontecer, e aconteceu. Continuamos pagando, só que agora não mais para a área social.
Os desafios estão aí. O financiamento como prioridade.  Estamos na  situação de ter o melhor cardápio e não ter dinheiro para comprar os ingredientes para fazer a comida nova e a comida suficiente. Mesmo sem mais dinheiro para a saúde, tem várias coisas que melhoram. Melhora a discussão do que é ou não ação e serviço de saúde, melhora a questão da transparência, da visibilidade, mas tudo isso sem mais dinheiro, mesmo melhorando, pouco efeito vai ter. Não vou entrar nesses detalhes.
Lembrando a participação da comunidade como outro desafio nosso, grande desafio. Eu acho que nós não conseguimos fazer a participação da comunidade e muito pouco e erradamente estamos mexendo com o controle social. Temos conferência, conselhos na periferia da periferia, sem fazer aquilo que realmente deveria ser feito. Conselho e conferência têm que fazer só duas coisas: cuidar do plano e verificar se o plano está sendo cumprido. É isso que está na lei, mas nós ficamos discutindo picuinhas e partidarizando muitas vezes os conselhos de saúde. Partidarizando para o lado do governo ou para o lado contra o governo, mas deixando de fazer a ação preponderante. Lembrando o poder do conselho: nada pode acontecer na saúde que não esteja no plano, e nada pode ir para o plano que não seja aprovado pelo conselho de saúde. 
Outro embate é a questão da quebra da universalidade. Ainda tem gente defendendo que o SUS tem que ser só de pobre, ou dizendo mesmo: “não, nós temos que cuidar da periferia, etc.”. Ontem eu estava num debate no Canal Saúde e uma das perguntas que apareceu na telinha na hora do debate foi exatamente isso: por que nós não adotamos a ideia de que o SUS só atenda a população pobre? Porque esta não foi a vontade dos constituintes, a vontade da população. Fizemos um sistema que seja universal e integral, que é de todos, não pode excluir ninguém. Nem rico, nem pobre.
O risco da negação da intersetorialidade. Já falei bastante para vocês isso: nós estamos escondendo a questão da “equidade”, uma palavrinha que não está na Constituição, que não está na Lei Orgânica da Saúde. Mas a equidade é só um reforço em cima da igualdade. A equidade é a igualdade justa: é dar mais para quem mais precisa e dar igual para quem precisa igual, equidade vertical e equidade horizontal. E o erro aqui também é a gente pensar que o SUS tem que ser preferencialmente para os pobres. A nossa linha de corte é necessidade de saúde. Se forem os pobres os que têm mais necessidades, vamos beneficiá-los. Não por serem pobres, mas porque têm mais necessidades de saúde.
 A questão da integralidade. Eu defendo a integralidade sobre regras, a integralidade regulada que está na Constituição. Eu tenho uma integralidade trincada na hora em que o governo faz uma farmácia popular onde se pode cobrar um real que seja. Quebrou-se a gratuidade do sistema, e nós não reagimos. A partir desse momento, qualquer prefeito pode dizer assim: “vou cobrar 50 centavos por exame de urina, de fezes, de sangue, cobrar um real por cada consulta”, porque a gratuidade foi quebrada. É a integralidade trincada. Nós temos decisões, inclusive do Judiciário, entendendo que um punhado de coisas referentes aos condicionantes e determinantes é ação de saúde, outro punhado não é. É um truncamento do conceito: integralidade trincada. O pior é a integralidade turbinada.
 Nós estamos criticando, e aqui mesmo foi lembrada, a turbinagem do Judiciário, do Ministério Público. Vou dizer a vocês, eu não estou preocupado com a turbinagem do Ministério Público, a turbinagem do Judiciário fazendo o papel e fazendo as receitas valerem. O Ministério Público e o Judiciário não produzem receitas médicas. As receitas nascem do Sistema de Saúde, público e privado. Nascem de profissionais com CRM e tudo. Então, nós temos que mexer nisso aí. Eu estou muito preocupado é com a turbinagem dentro do próprio sistema: é muito maior que a turbinagem feita fora. É a turbinagem dos nossos profissionais exagerando nos exames, exagerando nos remédios, exagerando na UTI, exagerando na internação. Ela é larga, é ampla. A turbinagem de fora é proporcionalmente pequena, mas nós sempre gostamos de pôr os defeitos lá fora e não vemos os nossos defeitos. Nós não temos controle sobre o uso de medicamentos, sobre o uso de exames. Nós não temos! Nós não temos paradigmas, temos pouquíssimos protocolos de conduta e não queremos mexer nisso, mas nós precisamos construir a integralidade regulada.
Terminando, o SUS dos meus sonhos é o que ajude as pessoas a viverem mais e melhor, com menos remédios, menos exames, menos consultas, menos internações, menos UTI, menos especialistas e com mais humanização e mais integralidade. Eu costumo dizer (porque eu tenho uma mão no microfone e com a outra posso fazer no máximo o número cinco) que nós temos cinco zonas nebulosas, ou zonas cinzentas, dentro do exercício da saúde. As cinco, altamente sensíveis à promoção da saúde. A primeira é a alimentação. Se quiser saber de alimentação, não busque o sistema de saúde, nem público, nem privado. Quando muito, informações sobre restrições alimentares para os doentes, bem poucas sobre como não ficar doente. Atividade física é outra. Sexualidade humana, outra zona cinzenta. Não busque o sistema de saúde para discutir o mistério gozoso da vida que a gente deixa de lado. Quarto: saúde mental. Nós temos uma verdadeira ojeriza pelos pacientes mentais. Nós temos que reconhecer isso, porque o reconhecimento vai ajudar a gente a mudar o enfoque. Não sabemos abordar a questão mental relativa ao uso indevido de drogas, ao alcoolismo, fumo, ao estresse. A quinta zona cinzenta é a do envelhecimento e morte. Nós não sabemos cuidar dos idosos, não temos um bom e extenso programa para cuidar deles. Temos uma população que vai envelhecendo e não sabemos cuidar da morte. Nós achamos que devemos evitar que as pessoas morram, quando nós temos que ajudá-las a viver. Mas tem uma hora em que elas vão morrer, e hoje nós e a sociedade achamos que o único jeito de morrer é dentro de uma UTI.  A cada meia hora alguém vai bater lá para não deixar morrer: “ô, não pode morrer ainda, só depois de quatro, cinco massagens é que você vai poder morrer”. Nestas coisas temos que mexer, discutindo com todos os setores que fazem saúde e com os cidadãos usuários. 
Tem esse desafio da defesa solidária: que todo mundo, todos os brasileiros, todas as corporações, todos os movimentos defendam o SUS como conquista de cidadania. A ética de cada corporação tem que estar submissa à ética do cidadão, que é muito maior. Na área da saúde a gente começa a ver cada parte, cada corporação abocanhar o seu. Não é cada pedacinho de corporação de doente, não; é corporação daqueles que cuidam da doença e que querem só o seu pedaço para isso, para aquilo, para aquele outro. E não mexam nas “igrejinhas”, “oratórios”, “capelinhas”, porque isso é uma “zona do agrião”, onde toda movimentação é complicada e difícil. Todo cidadão tem o dever de defender tudo que é de todos, lutando, também, para que esse todo seja suficiente e para todos. Isto é a cidadania solidária do cidadão.
E termino, agora sim, com a “Lei dos Cinco Mais”: MAIS BRASIL, MAIS SAÚDE-SUS, MAIS EFICIÊNCIA, MAIS HONESTIDADE E MAIS DINHEIRO. Para resolver o problema de saúde, não adianta alocar mais dinheiro. Se colocar mais dinheiro, com as coisas erradas que existem no sistema de saúde, vamos perder mais dinheiro. Temos que defender MAIS BRASIL. Mexer no Brasil. Não há possibilidade de termos pessoas sãs em um país doente, que discrimina os que menos têm. Que não assegura emprego e renda garantidores dos condicionantes e determinantes da saúde. É preciso fazer MAIS SUS! Praticar mais os objetivos, funções, diretrizes e princípios do SUS. Em terceiro, MAIS EFICIÊNCIA. É uma zona perigosa. Nós somos ineficientes e temos que reconhecer que não é só o setor público: é o público e o privado. Nós administramos muito mal e achamos que vamos resolver fazendo novos organogramas e novas divisórias nas secretarias de saúde. Mas não mudamos a essência do processo administrativo porque nós não sabemos, não temos experiência. Nós não temos rotina, cada vez que sai uma turma de uma secretaria ou sai a turma do Ministério da Saúde é o caos de novo. Eu tenho muito orgulho: quando deixei o cargo de secretário da saúde (eu era funcionário e fui para o Ministério) apenas uma pessoas que estava em cargo comissionado saiu que era um ex-secretário que estava dirigindo o hospital municipal), nós tínhamos na saúde cerca de 2.700 funcionários, todos eles de carreira. MAIS HONESTIDADE. Temos na saúde um lugar onde tradicionalmente existe corrupção, e nós precisamos reconhecer isso. Reconhecer a corrupção com todos os matizes dela. Corrupção não é aquilo que fazem lá longe. Corrupção é aquilo que fazem aqui, na compra de remédios, na compra de equipamentos, na construção de unidades, no desvio de medicamentos dentro da unidade de saúde, no uso exagerado até por agente comunitário de saúde, que sai das unidades levando o bolso cheio para as suas comunidades, medicalizando excessivamente e erradamente a população. Nós temos que botar os dedos nesses itens todinhos de corrupção. Também é corrupção ser contratado e ganhar por oito horas diárias de trabalho, ficar no serviço as oito horas, mas sem fazer nada. Também é corrupção ser contratado por quatro horas, ganhar por quatro horas e só ficar uma hora no serviço.  Isso tudo é corrupção, e nós temos que discutir e tomar posições. Finalmente, nós precisamos também de MAIS DINHEIRO. Com todos os outros mais e sem dinheiro, pouco faremos. De outro lado, mais dinheiro sem corrigir o Brasil e fazer o SUS mais EFICIENTE E HONESTO, apenas pioraria os resultados.
Termino com a frase de Elisa Lucinda, gosto muito dela. Depois dessa discussão todinha que fiz mostrando os 25 anos de SUS-CESSO e a crise e desafios que temos, acho que essa frase de Elisa Lucinda fecha bem. Elisa Lucinda é uma atriz global, a Doutora Selma de “Páginas da Vida”. Lembram dela? Uma negra de olhos claros. Ela é poetiza e escritora desde meninota. Tem um grande poema que se chama “Só para contrariar”, e quem declama é Ana Carolina. É a última frase que eu vou dizer para vocês. Diante de tudo isso, eu faço dela as minhas palavras. Ela diz: “a minha esperança é imortal. Sei que não vai dar para mudar o começo, mas se eu quiser, se nós quisermos, vai dar para mudar o final”.

 
 GUIA DAZZI LEGISLAÇÃO SAÚDE 31.07.2013
 

[1]     Texto produzido a partir de conferência proferida no II Congresso Catarinense de Saúde Coletiva, 2008 e atualizado os dados para 2013 para publicação de uma segunda edição.  Linguagem coloquial  da palestra degravada.
 
[2]     Graduado em medicina pela Escola de Medicina e Cirurgia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UNIRIO, mestre em Saúde Pública pela FSP-USP, doutor em Saúde Pública pela FSP-USP. Atualmente é professor convidado da Universidade de Taubaté e de várias outras universidades públicas e privadas, pesquisador do Instituto de Direito Sanitário Aplicado – IDISA
 
BOA SEMANA
 


Meus Dados

Dados do Amigo

Copyright © . IDISA . Desenvolvido por W2F Publicidade