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Outra tragédia desnecessária

17 de março de 2014
 
EDMAR OLIVEIRA
 
Médico psiquiatra e autor de livros sobre prática em saúde mental
 
 
Pela segunda vez, agora com a morte de Eduardo Coutinho, o poeta Ferreira Gullar ataca a luta antimanicomial. A primeira quando viveu uma tragédia familiar. Como militante da causa, não posso deixar de contestar. O poeta usa o argumento de que a internação teria evitado a tragédia. A luta antimanicomial não é contra a internação, mas contra o manicômio. Mesmo com "campos de futebol e salas de leituras", a estrutura manicomial demonstrou ao longo dos anos o seu caráter perverso. Esses mesmos lugares podem ser espaços de abandono.
 
 
O manicômio, para ter retorno econômico, usa a economia de escala que tem se mostrado trágica na saúde. De boas intenções o inferno se faz. O hospital psiquiátrico clássico, por mais reforma que tenha passado, como as antigas comunidades terapêuticas ou mesmo os novos hospitais anunciados no artigo do poeta, em pouco tempo esgotam-se em manicômio, em lugares de abandono nos quais a tragédia fica longe de nossas vistas. Foucault e Basagliajá demonstraram com competência a falência desses equipamentos.
 
 
A luta antimanicomial defende os centros de atenção psicossocial (Caps), os lares abrigados, os centros de convivência, os serviços comunitários que substituem o hospital psiquiátrico clássico. A internação em Caps 24 horas ou no hospital geral é necessária para um surto mais grave que os serviços comunitários possam estar acompanhando. Portanto, não somos contra a internação.
 
 
Acerta o poeta quando diz que fecharam leitos e concordamos que não foram implementados, pelos governos, os serviços comunitários necessários a essa substituição em algumas regiões, como é o caso do Rio de Janeiro. Não precisamos ficar com saudades do manicômio, mas cobrar dos dirigentes uma correta política de expansão de serviços comunitários necessários à substituição dos leitos fechados. E há muitos ainda a serem fechados. Essa é para nós, da luta antimanicomial, uma questão inegociável. Onde foram implantados serviços comunitários suficientes o fechamento do manicômio não fez falta, como em alguns estados nordestinos.
 
 
Erra o poeta quando diz que a tragédia podia ser evitada com a internação psiquiátrica. A complexidade do caso de Daniel necessitaria de um cuidado que pareceu não existir, por alguma razão que não podemos compreender neste momento. Porque antes não sabíamos o que acontecia com ele. Nos créditos de vários filmes de Coutinho, Daniel aparece como membro da equipe. No artigo do poeta é aventada a hipótese de Coutinho negar a doença do filho, o que já é sintoma.
 
 
Surpreso, o poeta descobre que não sabia que o cineasta tinha um filho esquizofrênico. Mais surpresa é a irmã do cineasta também não conhecer o problema do sobrinho, como vimos na televisão. Coutinho levava uma vida reclusa sem deixar que sua intimidade aparecesse.
 
 
Impressionante descobrirmos que quem vivia de fazer aparecer, nos seus documentários, a vida íntima de quem entrevistava, se recusava a falar sobre sua vida pessoal. No documentário Coutinho.doc -- Apartamento 608, que mostra o making off de Edifício Master, ficamos sabendo que Coutinho morou naquele edifício no passado, mas sua mão exigindo o corte não permite que saibamos em que situação ali residiu. E porque voltou ali para revelar a vida dos moradores. Deixa claro que não quer ser mostrado, mas, ao mesmo tempo, discute no making off os métodos que deveriam ser usados para revelar seus personagens reais.
 
 
Quem fazia as perguntas certas para revelar a intimidade do interlocutor (esse é o grande mérito do cineasta), não respondia aos que, talvez, não souberam lhe fazer perguntas. O efeito terapêutico da fala é evidente num depoimento de um dos seus entrevistados que foi ao enterro: "Ele me fez ser importante". E foram muitos os personagens de seus filmes que foram ao Cemitério São João Batista prestar uma última homenagem ao documentarista. Coutinho mudou, pela palavra e pela imagem, a vida daquela gente.
 
 
Mas nós não soubemos perguntar ao cineasta de um jeito que o fizesse falar. Como também não tínhamos antes sensibilizado Gullar. Mesmo os poucos serviços comunitários da zona sul do Rio, um numa universidade federal, outro num hospital municipal, certamente tratariam com todo carinho os filhos do poeta e do cineasta, se fossem acionados. Há um preconceito da classe média com o SUS que precisa ser desfeito. Além do preconceito com a doença mental.
 
 
Ainda assim, em respeito às tragédias acontecidas e à opinião de seus intérpretes, prefiro acreditar que nós, os que desejamos e trabalhamos por uma sociedade sem manicômios, não fomos capazes de sensibilizar o poeta e o cineasta como eles nos sensibilizaram com seus poemas e suas imagens. Coutinho e Gullar nos alimentaram a alma e nós não soubemos como ajudá-los com os dramas vividos e para os quais poderíamos, juntos, ter construído um final melhor. Se eles quisessem. Ou se tivéssemos a capacidade de ouvi-los nos seus silêncios, como sabia fazer Coutinho e como nos revela Gullar em sua poesia.
 
Fonte: Correio Braziliense


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