Endereço: Rua José Antônio Marinho, 450
Barão Geraldo - Campinas, São Paulo - Brasil
Cep: 13084-783
Fone: +55 19 3289-5751
Email: idisa@idisa.org.br
Adicionar aos Favoritos | Indique esta Página

Entrar agora no IDISA online

Diferença de classe

12 de maio de 2014
 
SUS foi concebido para mudar o padrão assistencial baseado no seguro para o direito universal
 
Qualquer mortal que desconheça detalhes íntimos do sistema de saúde terá dificuldades para entender a convocação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de uma audiência pública, a ser realizada no fim deste mês, para debater a diferença de classe nas internações do SUS. Como assim, diferença de classe em um sistema de saúde do século XXI que se pretende universal e igualitário? A pergunta tem duas respostas corretas: não, não é possível, e não, mas acontece. Esse diferencial, via oferta de melhores acomodações e atendimento personalizado para pacientes, é apenas um entre muitos outros. O que o STF vai examinar é uma das formas antigas e residuais das "diferenças de classe" na saúde pública, aquela estabelecida pelo pagamento direto de pacientes ao médico e uma Santa Casa conveniada com o SUS, pela internação em quarto particular. O médico, credenciado ou não, ganha uma remuneração adicional (o que o SUS paga mais o valor cobrado ao paciente) e o hospital pode estabelecer um preço pelo quarto individual.
 
Essa distinção existe desde que o Funrural passou a pagar um montante fixo para que as Santas Casas atendessem quem trabalhava no campo e era categorizado como não contribuinte. Indigentes e trabalhadores rurais ficavam internados em enfermarias e os trabalhadores especializados podiam optar por um atendimento personalizado. O Inamps, órgão que repassava recursos públicos para as Santas Casas, admitia oficialmente a "livre escolha de profissionais por parte da clientela previdenciária". Naquela época, tudo o que a Previdência Social do regime militar fazia era atribuído ao autoritário modelo estatal-privatista. A referência dos defensores da saúde pública era o Plano de Metas de 1963, que, durante o governo João Goulart, previu a organização da infraestrutura pública para a saúde, uma vez que a existência de "particulares que dependem cada vez mais do auxílio do poder público para seu custeio representam uma orientação contrária aos princípios da organização democrática que tornam incompatível o emprego do dinheiro público para fins de caridade ou filantropia".
 
O SUS foi concebido para mudar o padrão assistencial baseado no seguro para o direito universal, como uma alternativa de reconexão dos projetos interrompidos pelo autoritarismo com o futuro democrático. Mas a onda neoliberal, sucedida por marés pragmáticas ininterruptas, tragou as intenções de construir um amplo sistema público de saúde. As velhas práticas sobreviveram e outras, ainda mais potentes, se legitimaram. Está certo que não se pode cobrar pelo uso privilegiado de leitos. E o fato de hospitais filantrópicos serem operadoras de planos de saúde, pode? Não tem cabimento que os médicos recebam por fora pelo atendimento no SUS e uma cooperativa médica, sem fins lucrativas, que tem proteção fiscal, pode financiar time de futebol? E o que dizer das ameaças de instituição de duplas filas em hospitais públicos? Esses dispositivos são compatíveis com a Constituição?
 
Seria proveitoso que o entendimento do tema pelo STF partisse da compreensão de que a sobrevivência e o surgimento de novas práticas discriminatórias em contextos democráticos não têm explicações e soluções simples. Proibir o funcionamento do varejo e fechar os olhos para o atacado não detém a expansão e o surgimento de circuitos diferenciadores. Os planos vendidos a preços baixos permitem a entrada dos pacientes como particulares e depois a transferência para hospitais públicos ou cobrança do atendimento pelo SUS. Essa distinção de classe, que é conhecida como "o doente entra pelo plano e sai pelo SUS", serve para internações em unidades intensivas por períodos prolongados, uso de medicamentos caros e transplantes.
 
Segurar o touro pelo rabo ajuda mas, para deter a marcha da diferenciação no atendimento à saúde, é importante que o julgamento do fato inclua as alegações que o justificam. Assim a repercussão da decisão poderá se estender para outras situações de distinção subsidiadas com recursos públicos. O argumento que é direito do paciente pagar "diferença de classe" - e especialmente a concepção de que é possível e até benéfico para o SUS o uso combinado do público com o privado, para prover atendimento para clientelas especificas - justifica todas as diferenciações financiadas com parcelas menores ou maiores do fundo público. Há empresas ganhando
 
LIGIA BAHIA
 
e desde que o Funrural passou a pagar um montante fixo para que as Santas Casas atendessem quem trabalhava no campo e era categorizado como nadem votados 99 recursos de contestação pelos planos de saúde. A política de saúde do regime militar foi a de estímulo explícito ao empresariamento da saúde. Na versão contemporânea de privatização, os mesmos termos aparecem invertidos: o pobre SUS só subsiste graças a um setor privadodependente, mas disfarçado de autônomo. A Constituição de 1988 não autoriza que os recursos públicos sejam usados para nenhuma diferenciação de classe e os enunciados das manifestações de junho avisam, para quem esqueceu, que o sentido dos sistemas de saúde é a redução das desigualdades.
 
Ligia Bahia é professora da UFRJ ligiabahia55@gmail.com
 
rios de dinheiro direta ou indiretamente provenientes dos impostos pagos por todos, em nome de uma suposta ajuda ao SUS. Perto da escala das operações financeiras e comerciais sustentadas pela transferência direta ou indireta de pacientes do privado para o público, as remunerações indevidamente auferidas por médicos e Santas Casas não passam de caraminguás.
 
O ressarcimento ao SUS continua sendo contestado e não aplicado integralmente. Sete anos depois do parecer do STF em 2003, julgando-o constitucional, um dos recém-indicados para a diretoria da ANS declarou com todas as letras sua contrariedade à decisão da Suprema Corte. A diretoria da ANS, a qual o indicado pode vir a integrar, julga inúmeros processos de planos de saúde contra o ressarcimento. Por exemplo, na 396ª Reunião Ordinária da Diretoria Colegiada da ANS, de 7 de março de 2014, foram votados 99 recursos de contestação pelos planos de saúde. A política de saúde regime militar foi a de estimulo explicito ao empresariamento da saúde. Na versão contemporânea de privatização, os mesmos termos aparecem invertidos: o pobre SUS só subsiste graças a um setor privado-dependente, mas disfarçado de autônomo. A Constituição de 1988 não autoriza que os recursos públicos sejam usados para nenhuma diferenciação de classe e os enunciados das manifestações de junho avisam, para quem esqueceu, que o sentido dos sistemas de saúde é a redução das desigualdades.
 
Ligia Bahia é professora da UFRJ
 
ligiabahia55@gmail.com
 
Fonte: O Globo


Meus Dados

Dados do Amigo

Copyright © . IDISA . Desenvolvido por W2F Publicidade