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O "descompromisso" regulatório brasileiro

24 de junho de 2014
 
Marcos legais às vezes suprimem direito de liberdade de empresa. Por Francisco Müssnich e Rafael Véras
 
Uma das principais razões pelas quais o Estado brasileiro reordenou sua posição na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público foi a celebração do denominado "compromisso regulatório" (regulatory commitment). Trata-se de uma espécie de "blindagem" das instituições públicas por meio da qual foram criadas entidades autárquicas infensas às influências político-partidárias, que tinham por objetivo conferir a necessária segurança aos investidores de que os contratos celebrados com o poder público seriam cumpridos.
 
Tal conjuntura, por certo, não significou a ausência de intervenção estatal na economia. Ao contrário. O Estado passou a intervir com mais intensidade no domínio econômico, porém regulando as atividades exercidas pelo setor privado, com vistas à correção de "falhas de mercado" e de "falhas de governo".
 
Todavia, essa "nova" função regulatória tinha como limite o princípio da liberdade de iniciativa. Dito em outros termos, ainda que determinadas atividades, em razão de sua relação com os interesses da coletividade, sofressem os influxos da regulação, isso não autorizaria que tal intervenção regulatória suprimisse os direitos de liberdade de empresa.
 
É um equívoco estipular obrigações típicas de serviços públicos para o exercício de atividades econômicas reguladas
 
Por conseguinte, a intervenção regulatória do Estado na economia: 1 - não poderia representar uma expropriação do exercício de atividades privadas (regulatory takings); 2 - no âmbito do planejamento econômico, deveria ser indicativa (e não obrigatória) para o setor privado (174 da Constituição); e 3 - deveria criar incentivos para que a exploração de atividades econômicas seja levada a efeito pela iniciativa privada, cabendo ao poder público a sua exploração subsidiária (173 da Constituição).
 
Diante dessas premissas, seria possível se afirmar que o "compromisso regulatório" firmado, pelo Estado brasileiro vem sendo cumprido? Nos parece que não.
 
O cenário atual é de total "descompromisso" regulatório. Isso porque, em nosso país, a função regulatória vem sendo desenvolvida em desacordo com as três vertentes anteriormente expostas, em violação ao princípio da liberdade de iniciativa. Explica-se.
 
Não raras vezes, as agências reguladoras brasileiras, a pretexto de induzirem determinada atividade econômica ao atendimento do interesse público, acabam por esvaziar o núcleo da liberdade de iniciativa do setor privado. Um exemplo ilustra o ponto.
 
Em 2008, a Anvisa editou a resolução 54, que dispõe sobre as embalagens de produtos fumígenos derivados do tabaco.
 
A referida norma estabelece que as empresas fabricantes de cigarro deveriam fazer contrapropagandas em suas embalagens, indicando todas as possíveis doenças causadas pelo consumo deste produto. O excesso é evidente. Nesse particular, a regulação foi muito além da preservação da saúde dos consumidores, se imiscuindo na liberdade de empresa dos fabricantes.
 
Outra vicissitude da regulação brasileira é a estipulação de obrigações típicas de serviços públicos para o exercício de atividades econômicas reguladas.
 
Não se desconsidera que a regulação deve funcionalizar determinadas atividades ao atendimento de políticas públicas, mas isso não autoriza que o Estado imponha obrigações típicas de serviços para o exercício de atividades privadas.
 
Isso vem ocorrendo, por exemplo, no setor portuário. A Antaq editou a resolução nº 3.290/2014, a qual, em seu artigo 8, exige que os interessados em explorar terminais privados apresentem "garantia de proposta" e "garantia de contrato". Ora, quais seriam os prejuízos suportados pelo patrimônio público se essas empresas não conseguirem realizar os investimentos no seu próprio terminal privado?
 
Como se pode perceber, o vício nessa norma regulatória é tentar equiparar atividades privadas reguladas a serviços públicos, o que está em dissonância com a assimetria regulatória dessas atividades, além de instituir planejamento forçado para o setor privado, o que viola o artigo 174 da Constituição. Não obstante, é relevante destacar-se que, embora se trate de atividades econômicas reguladas, os "terminais privados" devem ser funcionalizados ao atendimento do interesse público, razão pela qual não podem estar isentos de obrigações mínimas regulamentares (tais como um prazo inicial para exploração de suas atividades, por exemplo); do contrário, a regulação também estaria em dissonância com a referida assimetria regulatória setorial.
 
Por derradeiro, cite-se a constante instituição de um regime de privilégios para estatais não extensíveis às empresas do setor privado. A mudança do marco regulatório das atividades de exploração e pesquisa é ilustrativa neste particular. A Lei 12.304/2010 autorizou a criação da PPSA, empresa pública que terá por objeto a gestão dos contratos de partilha celebrados nas áreas do pré-sal.
 
A inconstitucionalidade desse modelo está na previsão de que o vencedor da licitação dos blocos deverá constituir consórcio com a Petrobras e com a referida estatal. Tal previsão, por si só, já seria inconstitucional, por violação aos princípios da liberdade de iniciativa e de associação. Mas não é só. Esta estatal terá "poder de veto" no comitê operacional deste consórcio, prerrogativa que afronta a Constituição, que sujeita tais entidades ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários.
 
O resultado disso tudo: um único licitante interessado para o leilão de Libra, tendo a União que se contentar em receber o valor mínimo em custo e óleo nos contratos de partilha de produção.
 
As ideias apresentadas nesse breve ensaio, como pode perceber o leitor mais atento, não tem qualquer viés político-partidário. Ainda que estejamos às vésperas das eleições. Trata-se de críticas jurídicas, e não ideológicas a tal ou qual governo. O objetivo é fomentar o debate acerca do cumprimento dos compromissos firmados pelo Estado; e a razão é simples: estamos em uma democracia e não abrimos mão da liberdade em todos os seus sentidos.
 
Francisco Müssnich é professor de direito societário da PUC/RJ e sócio do BM&A - Barbosa, Müssnich & Aragão.
 
Rafael Véras é professor da FGV Direito Rio e sócio do Firmo, Sabino & Lessa - FSL.
 
Fonte: Valor Econômico


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