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2009 - Relatório do Estágio Eletivo(RV-30) do Programa de Residência Médica em Medicina Preventiva e Social

Relatório do Estágio Eletivo (RV-30) do Programa de Residência Médica em Medicina Preventiva e Social “Conhecendo o Sistema de Saúde Venezuelano a partir da Atenção Primaria em Saúde: A Experiência da Política Barrio Adentro”

Bruno Mariani de Souza Azevedo
Residente de 2º ano de Medicina Preventiva e Social
Orientadores: Prof. Dr. Sérgio Rezende Carvalho
Prof. Dr. Heleno Rodrigues Corrêa Filho
Coordenador de estágio: Francisco S. González R.

Capítulo 1 – O projeto e suas justificativas

A tradição político-econômica brasileira sempre esteve atrelada aos interesses do capital internacional. De forma que investimentos sociais e em infra-estrutura só se iniciaram mediante as demandas destes e restritos às mesmas.
O crescimento da economia, o desenvolvimento de uma classe operária e de uma classe média urbana causou pressão para uma mínima expansão destas políticas sociais. Assim vão surgindo as instituições responsáveis pela assistência médica e pela previdência, deixando a cargo exclusivo do Estado apenas as ações chamadas de saúde pública (como as campanhas de vacinação, sanatórios, hospícios, leprosários etc). Este era o modelo meritrocrático, no qual só tinha direito a assistência quem pudesse pagar, tivesse carteira assinada, gerava segmentação e diferenciação.
Esta história inicia-se com a instauração da República, em 1889. A República Velha foi marcada por ações campanhistas (como a conhecida vacina obrigatória contra Varíola e Febre Amarela) e reformas sanitárias, particularmente nas zonas portuárias, evoluindo para a criação das Caixas de Aposentadorias e Pensões, com a lei Elói Chaves. (Paim, 2003)
O populismo da Era Vargas (décadas de 30 e 40) e a aliança com os principais sindicatos abrem espaço para o estabelecimento de uma cidadania regulada, bastante exemplificada pela criação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões das diversas categorias de trabalhadores. Demais categorias não contempladas não gozavam de direitos como acesso à assistência de saúde. (Estado e Políticas Públicas, 1998)
O Regime Militar autoritário traz consigo forte cunho neoliberal, políticas econômicas concentradoras de renda, internacionalização da economia, com vistas à viabilidade financeira do empreendimento público. Desta forma políticas sociais são focadas nos indivíduos que possam consumir esse tipo de recurso. (Paim, 2003)
A chegada até o SUS é marcada por disputas políticas e sociais. Desde idéias preambulares desta nova política abortadas pelo golpe militar até a superação de organizações centralizadoras, burocráticas, hospitalocêntricas e médico-centradas. As Ações Integradas de Saúde, no início da década de 80, expandem a população segurada pelo INAMPS e o SUDS, a partir de 1985, dá rumo à descentralização de poderes e financiamento na saúde.
A Constituinte de 1988 implanta a lei 8080 como um amadurecimento de todo esse processo, dos movimentos populares de saúde e sua pressão sobre o Governo e de todas as formulações no campo da Saúde Coletiva. Traz, em teoria, um modelo mais próximo ao de Estados de Bem-Estar Social, um modelo universal redistributivista, ou seja, rompe com o modelo segmentado. (Estado e Políticas Públicas, 1998)
Com a Reforma Sanitária completando 20 anos de sua concretização legal através da Constituição de 1988, vários artigos que fazem balanços sobre os êxitos, dificuldades, entraves e problemas da implantação do sistema têm circulado nos meios acadêmicos.
Dentre as dificuldades ressaltam-se questões como o manejo das relações de trabalho abaladas por terceirizações, salários e vínculos precários, ausência de planos de carreiras e falta, inadequação ao SUS ou ausência de programas de educação permanente e de formação profissional; crítico subfinanciamento com fragmentação de repasses federais (ainda que esta situação tente ser revertida pelo Pacto de Gestão), falta de prática avaliativa dos serviços e ampliação e descontrole “das práticas de sobrevivência” de profissionais e prestadores de serviços. (Santos, 2007) (Vasconcelos & Pasche, 2006). Resta lembrar algumas características das políticas públicas brasileiras com as quais o SUS ainda pena em se defrontar, quais sejam um sistema de saúde público dual, tradição centralizadora, verticalizante e que relaciona a saúde como um direito vinculado ao mercado de trabalho, um setor privado largo, com poderio econômico e político, heranças que remetem a uma assistência médico-centrada, hospitalocêntrica, que demanda complexo industrial médico hospitalar sofisticado e lucrativo. Tudo permeado por uma lógica neoliberal de Estado mínimo que ajudou a desacelerar a implantação de uma rede de unidades básicas e outros arranjos da oferta e da utilização desses serviços (desarticulando o crescimento decorrido do PACS/PSF e a cobertura da assistência de nível primário com as de nível secundário e terciário, comprometendo a integralidade da assistência), desoneração das operadoras privadas de planos e seguros de saúde à custa do SUS, tetos financeiros para repasses federais e medidas de contenções de gastos. (Santos, 2007) (Cohn, 2006)
Vasconcelos & Pasche (2006) assumem uma perspectiva de que há um esgotamento nas iniciativas e nos instrumentos de gestão para estruturar o sistema descentralizado, segundo eles é o esgotamento do padrão incremental que vigorou até o momento. De toda forma, Cohn (2006) admite que a estratégia Programa de Saúde da Família, senão no modelo de atenção, traz o embrião da mudança da forma de financiamento (por necessidade de saúde e não segundo produção).
O periódico Ciência & Saúde Coletiva dedica 17 páginas de sua sessão “Debate” a essa questão. Primeiramente Gastão Wagner traz o debate através de alguns pontos que considera como meios para garantir o movimento de mudança necessária para enfrentar os obstáculos que emperram o avanço do SUS. Assim levanta questões como a articulação do movimento político em defesa do SUS às lutas das reformas da ordem social e política brasileira, o subfinanciamento e a forma de repasse de recursos, o processo de mudança do modelo de atenção, o esclarecimento das responsabilidades sanitárias, a estratégia de saúde da família como ampliadora de acesso, integralidade e autonomia, a revisão do modelo de gestão e as parcerias entre universidades e serviços de saúde. (Campos, 2007) Em seguida outros três destacados autores fazem suas observações e críticas. O debate ainda está em aberto. Muitas questões atravessam o SUS neste momento e a discussão da viabilidade de um sistema público e universal no Brasil, dos seus desafios, limites e alternativas, é patente e constante.
Esta discussão não se limita, obviamente, aos meios acadêmicos e militantes do SUS. Os diversos setores midiáticos exploram a questão como forma de aumentar sua audiência, políticos e partidos como forma de atrair votos. Jornais de grande circulação expõem diversos tipos de opiniões, secretários e ex-secretários de saúde, ministros e ex-ministros de saúde. Talvez devido ao lobby de toda a indústria privada da saúde são poucas as opiniões claramente em defesa do SUS totalmente público, fala-se em esgotamento do modelo de gestão público, da estratégia de saúde da família ou até mesmo do próprio SUS. Pode-se dizer que é um sistema em disputa.
Com estes pontos em mente parece que novas idéias são necessárias, novas alternativas para lidar com novos e antigos impasses. Onde buscar as inspirações para a criatividade que este momento exige? Talvez a pergunta que devemos fazer seja anterior, para onde mesmo que deve apontar essa criatividade? Com tantos interesses na mesa, com o movimento políticos, econômicos e sociais apontando para tantas direções distintas, qual rumo tomar? As respostas aqui serão múltiplas e em diversos âmbitos de governabilidade e talvez não seja necessário criar novas alternativas ou novas reflexões. As experiências existentes no mundo e na história da humanidade são muito numerosas e suficientemente diversas para inspirar respostas ou novas idéias. Assim, comparar com o que está sendo feito em outros países pode ser um bom ponto de partida. Para Conill (2006) “comparar é buscar semelhanças, diferenças ou relações entre fenômenos que podem ser contemporâneos ou não, que ocorram em espaços distintos ou não, para melhor compreendê-los”. Diversas tipologias para auxiliar na comparação de sistemas foram criadas ou modificadas, a mesma autora destaca parâmetros como recursos, organização, financiamento, gestão, prestação de serviços e regulação. (Conill, 2006)
Se buscarmos as influências na história das políticas públicas de saúde do Brasil, para pensar no “com o que comparar” talvez apontássemos primeiro o caso dos Estados Unidos. Um sistema pluralista empresarial permissivo, que se baseia na disputa de mercado e que, hoje, tem grandes problemas com o custo elevado para impacto não proporcional sobre os indicadores de saúde e com a cobertura deficitária. Em 1948, a criação do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido traz como pontos importantes a garantia de acesso universal, o financiamento estatal fiscal, a descentralização e o clínico geral como porta de entrada para a assistência. É um novo marco na organização dos sistemas de saúde e vai influenciar diretamente as reformas sanitárias ao redor do mundo. As contribuições da corrente teórica da Promoção à Saúde adotada em regiões do Canadá pautando o acesso universal, a descentralização, o controle social, a saúde da família como porta de entrada e a articulação entre os diversos níveis de complexidade da atenção traz fortes influências sobre o movimento de Reforma Sanitária brasileira, iniciado na década de 70. (Conill, 2006) (Carvalho, 2005)
Na América Latina e no Caribe Latino temos uma situação bastante heterogênea entre os países, com grandes variações na organização dos sistemas, gastos públicos e privados e indicadores de saúde. Uma tipologia sugerida para estes modelos de sistemas de saúde os coloca em quatro categorias, que não existem isoladamente, se misturam, mas para efeitos didáticos é interessante: modelo segmentado (no qual se insere a maioria dos países), privado atomizado, de contrato público (no qual se insere o Brasil) e o modelo público unificado. (Conill, 2006) Minha inserção na militância política, seja no movimento estudantil, seja nos movimentos pelo SUS, sempre trouxe muito em questão pontos colocados por este último modelo e que, nestas discussões deveriam ser mais adotadas pelo SUS. Deveriam mesmo? Esta é uma das perguntas que motivaram este trabalho.
O modelo público unificado tem como algumas de suas características o financiamento e a prestação de serviços serem feitos pelo Estado, administrados de forma vertical, com acesso universal e integração de toda população. Um forte exemplo deste modelo é Cuba. A Saúde Pública na ilha iniciou-se ainda o período colonial, dava-se pelo financiamento caritativo da classe dominante através da Real Sociedad Patriótica de Amigos Del País para o El Real Tribunal Del Protomedicato. Este órgão, na primeira metade do século XIX, era responsável pela fiscalização do exercício médico e farmacêutico e assessorar as medidas sanitárias, principalmente em casos de epidemia. A Junta Central de Vacunación era encarregada de aplicar e distribuir a vacina anti-varíola e as Juntas de Sanidad responsáveis pelas ações sanitárias (fosse nas epidemias ou fora delas) e pelos hospitais e asilos sob controle da Igreja Católica (Juntas de Beneficencia). (Delgado Garcia, 2005)
O primeiro modelo de atenção ambulatorial iniciou-se ainda na primeira metade do século XIX, eram os facultativo de semana. Consistia em ter um médico e um cirurgião de plantão que faziam rodízio entre todos os profissionais da cidade para atender aos mais pobres, focando-se no atendimento das urgências e emergências (e se necessário encaminhavam para os hospitais de caridade), além de se ocuparem com atividades forenses e da fiscalização das condições de higiene dos estabelecimentos públicos. A devastadora epidemia de cólera de 1833 trouxe à tona a necessidade de atendimento domiciliar. De início havia muito rigor para o cumprimento destes rodízios, mas na segunda metade do século, com o crescimento populacional, principalmente urbano, e com os problemas trazidos pela Guerra dos Dez Anos esse sistema começou a falhar. (Delgado Garcia, 2005)
Em 1871 o serviço de atenção ambulatorial do facultativo de semana foi oficialmente substituído pelo Serviço Sanitário Municipal, que compreendiam a atenção ambulatorial das Casas de Socorros, o atendimento domiciliar aos pobres e serviços forenses. As Casas de Socorros se prestavam a atender as urgências e emergências e tinham uma baixa cobertura no território nacional, ou mesmo na capital, Havana. (Delgado Garcia, 2005)
Em seguida no chamado período da República Liberal Burguesa (1902-1958), sob a influência da Escuela Cubana de Higienistas se desenvolvem as Juntas de Sanidad y Beneficencia herdadas da colônia, que são elevadas a nível ministerial com a criação da Secretaría de Sanidad y Beneficencia. Neste período as Casas de Socorros estendem-se, de forma heterogênea, por toda a ilha, algumas aumentam sua capacidade resolutiva, mas apenas algumas, em Havana, mantêm o atendimento domiciliar. Assim, até este momento, a atenção ambulatorial esteve nas mãos plantonistas de instituições mutualistas, de alguns hospitais estatais e dos consultórios médicos privados. (Delgado Garcia, 2005)
Com a Revolução Socialista de 1959 começa a experimentação do sistema nacional de saúde pública, em que as instituições mutualistas, a medicina privada e as Casas de Socorros dão lugar a um novo modelo de atenção primária de saúde. Primeiramente a Policlínica Integral (1964), de caráter preventivo e curativo, seguida pelas Policlínicas Comunitárias (1974) e, finalmente, os médicos e enfermeiros de família (1984). (Delgado Garcia, 2005)
Sanso (2005) avalia que a saúde da família surge como a convergência de quatro fatores importantes: mudança do quadro epidemiológico mediante os avanços sociais, insatisfação da população com os serviços de saúde, reflexões derivadas da dramática situação provocada pela epidemia de dengue hemorrágica de 1981 e a vontade política de se atingir a meta da OMS para 2000, “saúde para todos”.
A implantação da saúde da família trouxe grandes mudanças para a organização do sistema, em particular na atenção médica, no nível primário. Resgatou a atenção médica ao ser humano, ampliando sua dimensão como ser biopsicossocial e levando o ambiente em consideração. A cobertura atingiu a casa dos 100% com um enfermeiro e um médico de família para cada 150 a 200 famílias. (Sanso Soberats, 2005)
A despeito da pronfunda crise vivida pelo país na década de 90, considera-se que a existência deste modelo atenuou a dramática situação. Apesar disto o próprio modelo enfrentou uma crise de financiamento, manutenção e de credibilidade tanto junto aos usuários, quanto junto aos trabalhadores. Em 2002 um novo projeto do Ministerio de Salud Publica permitiu o reequipamento dos serviços de assistências, além de suas ampliações e modernizações, ampliando o acesso e a resolutividade local. (Sanso Soberats, 2005) Este autor também responsabiliza o modelo de Saúde da Família pela diminuição do baixo peso ao nascer e da mortalidade infantil, pela melhora e ampliação das consultas de pré-natal e de puericultura, além da manutenção do programa de imunização, melhora na atenção ao idoso, aumento da expectativa de vida ao nascer e por políticas de planejamento familiar e educação sexual. Tudo isto tendo mantido sua evolução mesmo nos anos 90.
Os princípios da solidariedade e do internacionalismo faz com que os profissionais cubanos sejam muito valorizados ao desempenhar missões em outros países que estão em situações de saúde mais delicadas. Contato com alguns atores do sistema de saúde cubano revelou que estaria ocorrendo uma reestruturação devido ao grande número de médicos que estão atuando nas brigadas internacionalistas.
De toda forma Cuba despontou como exemplo para a redefinição dos sistemas de saúde de vários outros países (inclusive o Brasil). Um dos mais recentes exemplos é o da Venezuela. Neste país, até 1936 a saúde não era associada ao conceito de Estado. As ações de saúde estavam mais vinculadas à medicina popular e tradicional local. A partir de então, pressionado pelo desenvolvimento da indústria petrolífera, cria-se o Ministério da Saúde e Assistência Social. É um período de desenvolvimento do sistema de saúde voltado ao combate das doenças endêmicas e epidêmicas, caracterizado por forte dependência tecnológica e programática, mas que assentou as bases do que se desenvolveria posteriormente. (República Bolivariana de Venezuela)
Assim como muitos outros países, a Venezuela também se propôs a cumprir as orientações da Declaração de Alma Ata, visando “Saúde para Todos no ano 2000”. A Atenção Primária em Saúde era ponto decisivo desta declaração e a partir de 1978 ganhou importante visibilidade. Apesar disso, a pressão do neoliberalismo, nos últimos 15 anos do século XX, teve mais força. Através de entidades como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, recomendava-se a diminuição da presença do Estado no financiamento das políticas sociais. O resultado foi a privatização, descentralização, desregulação de preços e a grande abertura para investimentos estrangeiros. A população empobreceu e a desigualdade aumentou. A privatização chegou à seguridade social e na saúde teve como resultado a distorção da atenção primária, com serviços públicos “pobres para pobres”, programas focais e exclusão do controle social. No final da década de 90 a atenção primária a saúde já estava abandonada, havia estímulos públicos para construção de serviços privados de saúde, o cuidado estava centrado no hospital (privado) e o setor de diagnose e tratamento estava na mão das indústrias farmacêuticas e de equipamentos médicos. Os indicadores econômicos e de saúde eram desalentadores.(Alvardo, Martínez, Vivas-Martínez, Gutiérrez, & Metzger, 2008) (República Bolivariana de Venezuela, 2001).
A Constituição de 1999 traz a discussão sobre a saúde para o centro novamente, entendendo-a de maneira integral, com componente preventivo, ambiental e transformando da realidade socioeconômica do indivíduo e da sua comunidade. Intencionava-se expandir radicalmente a rede de atenção primária à saúde, mas a formação dos profissionais de saúde voltada para o mercado privado colocou-se como um primeiro empecilho. Junto com a mudança do sistema de saúde discutiu-se a mudança das práticas de formação destes profissionais. (República Bolivariana de Venezuela)
Princípios como os da co-responsabilidade, solidariedade, protagonismo e participação popular, estabelecendo uma nova relação entre Estado e Sociedade, reforçando o papel das comunidades na formação, execução e controle da gestão pública, contaminam o debate sobre a saúde nesta constituinte. (República Bolivariana de Venezuela, 2001) Após sua regulamentação o Ministério da Saúde foi reestruturado e o Sistema Público Nacional de Saúde foi criado. Este deu especial ênfase para promoção e prevenção, participação de comunidades organizadas e fortalecimento da atenção primária. O foco nas necessidades de saúde da família e a progressiva eliminação das taxas de uso aumentaram muito o acesso aos cuidados de saúde. O Plano Estratégico de Saúde (PES) do ministério estabeleceu diretrizes para a promoção de saúde e aumento da qualidade de vida. (Alvardo, Martínez, Vivas-Martínez, Gutiérrez, & Metzger, 2008)
O Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social para o período de 2001 a 2007, para o qual o PES serviu de arcabouço filosófico e político, reforça a saúde como um direito de todos os cidadãos, tendo o Estado o dever de prover um sistema de acesso universal, descentralizado, intergovernamental, intersetorial e participativo. Reconhece que a garantia da equidade seria um dos maiores desafios daquele momento. (República Bolivariana de Venezuela, 2001)
Assim, em 2003, através de um convênio de cooperação internacional firmado entre Venezuela e Cuba inicia-se o Plan Barrio Adentro, como ponto de partida para o desenvolvimento de uma rede de atenção primária à saúde. (República Bolivariana de Venezuela) Neste convênio, no artigo IV, Cuba disponibiliza os serviços médicos, especialistas e técnicos para prestar serviços nos lugares onde eles ainda não existam e para oferecer treinamento aos trabalhadores venezuelanos dos diversos níveis, o governo venezuelano se compromete a cobrir moradia, alimentação e transporte destes trabalhadores. (Misión Barrio Adentro, 2003)
O Plano Barrio Adentro se desenvolveu em fases. A primeira foi de diagnóstico e implantação apenas em algumas cidades, verificando a aceitação dos médicos cubanos por parte da comunidade. Havia certa incredulidade do sucesso desta empreitada, mas a presença destes profissionais além de ter trazido a proximidade outros, também influenciou na organização e mobilização das comunidades afetadas e de outros que também solicitavam a criação de novas missões. Em dezembro de 2003 um decreto presidencial deu novo passo nesta política, o mesmo estendeu o Plan Barrio Adentro para todo o país. Em 2003 alcançou-se a marca de 10179 médicos (as) responsáveis pela saúde integral de 250 famílias cada. Em 2006 já havia sido criado 8686 postos de atenção primária à saúde. (República Bolivariana de Venezuela) (Alvardo, Martínez, Vivas-Martínez, Gutiérrez, & Metzger, 2008)
Assim, ao final de 2003 deu-se início às Misiones Barrio Adentro, constituindo-se como um modelo de gestão pública participativa fundamentado nos princípios da Atenção Primária do Sistema Público Nacional de Saúde da Venezuela, quais fossem: equidade, gratuidade, solidariedade, acessibilidade, universalidade, corresponsabilidade e justiça social, respondendo a estratégias de promoção a saúde e qualidade de vida, com o desenvolvimento humano sustentável e contextualizado à realidade local. (Ministerio del Poder Popular para la Salud-Venezuela, 2005)
A proximidade da população permitiu diagnósticos mais apurados de sua realidade. Os problemas foram sendo identificados e soluções propostas. A população tomando consciência e se mobilizando por atitudes governamentais. Então, outras missões foram criadas, com objetivos diversos: alimentação, alfabetização, ensino médio, técnico e superior, documentação da população, cuidados oftalmológicos, assistência aos sem-tetos e comunidades nativas, acesso a cultura, ciência e produção tecnológica e, por fim, reforma do uso do solo (agrária, com recursos e financiamentos a agricultura). (Alvardo, Martínez, Vivas-Martínez, Gutiérrez, & Metzger, 2008)
A etapa seguinte da constituição do sistema de saúde venezuelano, a Misión Barrio Adentro 2, constitui-se na implantação de centros de apoio diagnóstico (exames de laborátorio e de imagem) e emergência, salas de reabilitação e centros de alta tecnologia (serviços de apoio diagnóstico de alta tecnologia) por todo o país. (Ministerio del Poder Popular para la Salud-Venezuela, 2005). A terceira edição deste projeto, Misión Barrio Adentro 3, dedica-se a modernização tecnológica da rede pública de hospitais do país, com prazo até fins de 2007. Por fim, o Misión Barrio Adentro 4 compõe hospitais de ensino altamente especializados. (Ministerio del Poder Popular para la Salud-Venezuela, 2005) (Alvardo, Martínez, Vivas-Martínez, Gutiérrez, & Metzger, 2008)
Para Alvardo, et al, as Misiones Barrio Adentro se constituem de elementos que se interagem e que dão retorno e sustento uns aos outros. É uma rede de redes. Aposta no desenvolvimento de pessoas e idéias, que cria oportunidades e gera encontros, que identifica necessidades e então cria soluções, gerando novas oportunidades. Apostando na democracia participativa, a participação popular torna-se um eixo desta política, aberta a ação pública, ao conhecimento popular, à construção de dignidade, de identidade e de pertencimento (individual e coletivo). Este autor também elenca algumas características principais desta política, quais sejam: promoção e prevenção de saúde (com influências da Carta de Ottawa), participação social, acesso e cobertura (sendo um posto de saúde para cada 250 a 300 famílias, um centro de diagnóstico e centro de reabilitação para cada 40000 a 50000 habitantes, instalados próximo ao local de moradia da clientela, os centros de tecnologia avançado foram instalados a depender da densidade populacional, sendo 35 no total, por fim alguns centros de saúde urbanos foram convertidos em policlínicas, realizando atendimento de nível secundário), cuidado baseado em necessidades de saúde, com os serviços organizados hierarquicamente pela complexidade do cuidado, uso de tecnologia apropriada e melhoria da qualidade da assistência por nível de complexidade e cooperação internacional e solidária. (Alvardo, Martínez, Vivas-Martínez, Gutiérrez, & Metzger, 2008)
Segundo o site do Ministerio del Poder Popular para la Salud da Venezuela em 2007 as missões já contavam com o seguinte quadro de recursos humanos: mais de 14.000 médicos, 4.000 dentistas, 5.000 enfermeiros, além de outros 10.000 trabalhadores de diversas categorias, sendo que destes profissionais, aproximadamente 25.000 são cubanos e outros 10.000 são venezuelanos. Já haviam sido construídos 2.708 Consultorios Populares, previsionando-se alcançar 7.008 em todo o país ao término das obras, representando um investimento de mais de 271 bilhões de Bolívares (aproximadamente 202 bilhões de reais) (Ministerio del Poder Popular para la Salud-Venezuela, 2005). Outros artigos mostram que as obras estão avançando em ritmo acelerado e estes números só fazem aumentar. A expansão do sistema de saúde e da sua cobertura não conta apenas com ações de infra-estrutura, estão sendo formados muitos “agentes promotores de saúde” e médicos generalistas com foco de atuação na atenção básica. (Alvardo, Martínez, Vivas-Martínez, Gutiérrez, & Metzger, 2008)
A constituição de um Sistema Público Nacional de Saúde se dá a partir das Misiones Barrio Adentro, em redes em cada um dos níveis de complexidade do cuidado. Formando círculos concêntricos da Atenção Primária a Saúde (Barrio Adentro 1 e 2) mais internamente até os hospitais especializados (Barrio Adentro 3 e 4), mais externamente. Todos atravessados pela rede de urgência e emergência.
Um movimento de reforma sanitária tão instituinte desperta curiosidades. Como os atores do sistema venezuelano veem, trabalham e discutem questões como a universalidade, integralidade, eqüidade, a descentralização, regionalização, hierarquização dos serviços e a participação comunitária na organização do sistema? Como é feito este debate entre usuários, membros do controle social, trabalhadores, gestores? Quais novos mecanismos se criaram neste processo instituinte? E nesta relação entre venezuelanos e cubanos? Como se deu a reforma no ensino em saúde para se adequar a esta nova perspectiva do sistema de saúde? E a integração de uma rede com tantos equipamentos e tanta heterogeneidade (venezuelanos e cubanos precisando se relacionar)?

Tantas interrogações surgem de militâncias, estudos e práticas realizados nos dois anos de curso do programa de residência médica em Medicina Preventiva e Social. Essa especialidade insere-se neste modelo de formação (latu sensu – residência médica) na década de 60, em conseqüência ao movimento preventivista, desenvolvido nos Estados Unidos décadas antes. Ao longo das décadas de 70 e 80 os programas têm expansões de vagas, sendo que na década de 80 assumem o ideário da Saúde Coletiva, bastante influenciado pela Reforma Sanitária brasileira. Apesar da crise que os programas sofreram na década de 90, com o fechamento de alguns e a reorientação de outros para Medicina de Família, reconhece-se sua importância fundamental diante da consolidação do SUS e expansão de espaços de gestão. Considera-se que a Residência em Medicina Preventiva e Social “além de ser um momento de formação, também é um dispositivo que atua na construção dos sistemas de saúde, devido a grande potência com que institui práticas de cuidado e cura.” (Massuda, Esteves, Ribeiro, & Filice, 2008)
A Residência Médica é regulamentada pelo Conselho Nacional de Residência Médica, vinculado a Secretaria de Educação Superior, do Ministério da Educação. A atual resolução em vigor que dispõe sobre os requisitos mínimos para os programas de residência médica (Comissão Nacional de Residência Médica, 2006) classifica as atividades de treinamento em serviços obrigatórias como: técnico-operacional, técnico-administrativo e político-institucional, sendo considerado critério de excelência a inserção nos diversos níveis de complexidade da assistência e em múltiplas instituições. Além disso, também abre a possibilidade para que o 2º ano do programa seja conformado segundo o núcleo de interesse para o qual se orienta a formação do Residente. Neste sentido que, no programa da residência do Departamento de Medicina Preventiva e Social, da Faculdade de Ciências Médicas/Unicamp insere-se o Módulo Opcional (RV-30), “concentrado no treinamento em serviço com o objetivo de propiciar ao médico residente, futuro médico sanitarista, vivenciar situações não experimentadas durante os estágios realizados, ou aprofundar sua formação em alguma área e/ou campo de estágio anterior” (Comissão de Residência do DMPS, 2008).
Traçando a trajetória que o programa ofereceu aos residentes ingressos em Fevereiro de 2007, tivemos passagens bastante significativas por serviços de atenção primária, secundária e terciária e de gestão distrital, além de interessante aporte teórico na Saúde Coletiva, particularmente nas áreas de Análise Institucional, Políticas Públicas, Gestão e Planejamento, Epidemiologia e Educação em Saúde. Particular destaque para os temas referentes às áreas de Políticas Públicas, Planejamento e Gestão, nos quais houve a maior carga horária, inclusive com a participação como aluno em um curso de especialização no tema para gestores do Ministério da Saúde.
Propõe-se a realização do estágio eletivo na Venezuela, como encerramento deste programa de residência, esperando aprofundar vivências nos diversos níveis da gestão e da atenção, especialmente a local, na temática da organização do sistema de saúde e da formação do trabalhador. Destaco a questão da formação do trabalhador, como atividade considerada indispensável segundo a resolução do CNRM e na qual há o interesse de maior aprofundamento. (Comissão Nacional de Residência Médica, 2006) Além destes tópicos, bastante amplos e que abrem possibilidades para diversos tipos de ação, também há o interesse de entrar na discussão acerca da saúde do trabalhador. Acreditamos na força do espaço instituinte em que se encontra o sistema de saúde venezuelano para complementar a formação deste residente e auxiliar em reflexões que, ao serem partilhadas e sistematizadas, possam contribuir com o SUS. E, seguindo as práticas habituais destes dois anos, espera-se que a presença do residente e a troca de informações possam contribuir no desenvolvimento de alguns aspectos das novas práticas venezuelanas. A construção coletiva de saberes não deve parar apenas na troca entre residente e trabalhadores, gestores, professores, estudantes ou usuários com quem terá contato, deve ir além, criar conexões, redes, comunicações entre estes e trabalhadores, gestores, professores, estudantes e usuários da saúde brasileira. Laços devem ser estreitados entre os meios acadêmicos de ambos os países.

 

 

Capítulo 2 – A escrita como método

Durante toda a Residência em Medicina Preventiva utilizei-me do diário de campo como uma ferramenta para auxiliar-me a registrar os eventos e acontecimentos que presenciava ou dos quais tomava parte de alguma forma. Sendo uma pós-graduação eminentemente prática era importante que os acontecimentos fossem registrados para posterior análise e reflexão sobre os dados e fatos produzidos. Era uma forma de maximizar meu aprendizado e sistematizar um retorno aos serviços nos quais estava inserido. A isso podemos chamar de extrapolação instrumental do diário de campo (Lourau, 2004b).
Em todos os momentos esse diário de campo auxiliou no desenvolvimento de projetos, de trabalhos, de relatórios, mas em raros momentos foi realmente divulgado, dado para outros lerem. O diário retornava à instituição em que estava inserido já transformado em idéias pré-elaboradas, em opiniões, em críticas. E é exatamente isso que o distinguia de um diário institucional tal como propõe Hess (1988). Nesta acepção o diário é organizado em torno de uma instituição, em torno da vivência tida na mesma, mas não é
 

Arquivo do diário
Mariani art. Ven. Atenção Basica 1208
Mariani art. Ven. Formação 1208
Mariani art. Ven. Metodologia 1208
Mariani art. Ven. Polit. Pub. 1208


 



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