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Sobre o poder deliberativo dos conselhos de saúde

 

SOBRE O PODER DELIBERATIVO DOS CONSELHOS DE SAÚDE
 
FLAVIO GOULART  [1]
 
A participação social na área da saúde tem especificidades marcantes pelo seu caráter democratizante, que denotariam o avanço da saúde em relação a outras áreas de governo. Mas, se há avanços, há também dilemas não resolvidos, por exemplo, a promoção de falsas expectativas nos participantes dos conselhos de saúde, relativas a um suposto poder efetivo e autônomo de decidir sobre a política de saúde.
 
Como apontei anteriormente[2], certas tendências preocupantes podem ser percebidas no cenário da participação social em saúde. São elas: (a) autonomização, levantando a expectativa social de que nos conselhos de saúde residiria, de fato e de direito, um quarto poder; (b) plenarização, mediante a transformação dos conselhos de saúde em meros fóruns de debates entre os diversos segmentos sociais, nem sempre com a participação do Estado, o qual, aliás, por definição normativa (e não propriamente legal), é fortemente minoritário; (c) parlamentarização, com formação de blocos ideológicos e partidários intra-conselhos e tomadas de decisão por votação, não por consenso; (d) profissionalização, dadas as fortes exigências da participação social, abrindo caminho para a constituição de verdadeiros profissionais da participação; (e) auto-regulação, que representauma particularidade praticamente exclusiva da área da saúde.
 
 
A prerrogativa de deliberar, citada na Lei 8142/90, merece destaque especial. Segundo o dicionário Houaiss (2004), deliberar é verbo transitivo direto e indireto pronominal, que tem, entre suas acepções, decidir(-se), após reflexão e/ou consultas e ainda, empreender reflexões e/ou discussões sobre algo no intuito de decidir o que fazer.
 
Os fatos da vida real mostram que deliberação, na prática concreta dos conselhos de saúde, não se constitui exatamente como tomada de decisão autônoma e dotada de capacidade de produzir, por si só, transformações externas ao circuito onde foi gerada, enquadrando-se, talvez, na segunda acepção do dicionário (empreender reflexões e/ou discussões). Neste aspecto parece ocorrer grande distância entre a realidade, e mais ainda, entre o que dizem as leis e o que se depreende das práticas participativas reais do País, de um lado e, de outro, o pensamento (ou o desejo...) daqueles que estão imersos seja na formulação das idéias ou mesmo no cotidiano da participação social em saúde.
 
Com efeito, não é demais lembrar, a deliberação dos conselhos esbarra no dever da homologação por parte do Executivo, que tem fortes responsabilidades ditadas pelas leis e é submetido à vigilância do Legislativo, dos Tribunais de Contas e do Ministério Público, sob a égide, entre outros instrumentos legais e normativos, da Lei de Responsabilidade Fiscal.
 
Um aspecto particular da área da saúde é que a referência ao poder deliberativo está presente tanto nas atribuições dos conselhos como das conferências de saúde (Lei 8142). É mais uma variável na equação, criando uma situação de triplicidade, pois afinal, este poder seria atribuído não só às plenárias das conferências, mas aos conselhos e também ao Executivo, sendo este último o único que o detém, de fato e de direito. Cumpre-se, assim, uma jocosa observação do cientista social espanhol Manuel Castells: eu participo , tu participas, nós participamos... eles decidem.
 
Imagino que tal poder deliberativo, associado que é a um conceito e uma práxis de autonomia, seja uma espécie de relíquia leninista, devidamente trazida à luz pelos reformadores da saúde no Brasil, derivada da formulação original do poder operário e suas funções ao mesmo tempo legislativas e executivas.
 
O uso contínuo e reiterado das expressões deliberação e poder deliberativo e o que delas decorrem sem dúvida acarreta expectativas dos membros do jogo participativo, que não podem tomar decisões de fato, já que do outro lado da mesa elas não deverão, mas sim poderão (ou não) serem cumpridas – e isso é de direito. Considerando que agora a condução dos conselhos tende a não mais pertencer ao gestor do SUS, dá-se que a homologação do Executivo deixa de ser realizada como compromisso para ser exercida como mera concessão, pois que o organismo onde é gerada se coloca fora do Executivo, não mais como seu componente, embora os defensores da referida condução externa às vezes utilizem este mesmo argumento para defender sua capacidade de decidir e influir nas políticas, como, aliás, afirmou textualmente em 2007 o atual presidente do Conselho Nacional de Saúde, o farmacêutico e líder sindical Francisco Batista Jr.
 
Na verdade, o elenco de atribuições dos conselhos de saúde, já definido na Resolução 333 do CNS deixa claro que deliberar (tomar decisões que impliquem em mudanças no sistema de saúde) pode não ser exatamente o que se sonha, pois seus atributos se referem a formular, mobilizar, fiscalizar, auto-regular-se, discutir, opinar, propor, exercer visão estratégica etc., conforme se depreende da leitura da quinta diretriz do referido documento normativo. Assim, no que está escrito, não há grande diferença entre os conselhos de saúde e das demais áreas de governo; as grandes diferenças são simbólicas, relativas à maneira como os participantes dos conselhos de saúde encaram suas funções.
 
O próprio CNS, em documento de 2003 reconhece que deliberações relativas à formulação de estratégias que pertençam à alçada privativa do Gestor (grifo do autor) necessitam ser homologadas, mediante sua transformação em ato oficial de governo. Além disso, acrescenta-se que apenas a organização interna e as eventuais articulações com os outros conselhos, com o Poder Legislativo e com outras instituições da sociedade, devem estar incluídas na autonomia conciliar, não dependendo da homologação para se realizarem.
 
Depreende-se, aubda, que os conselhos de saúde não deveriam, também, se constituir como meros fóruns de debates, focados na ideologia, com aspirações de vir a ser um quarto poder, mas simorganismos de formulação, apoio e sustentação estratégica de políticas de interesse coletivo, necessariamente vinculados ao Estado.
 
Quando se fala em autonomia, paridade e poder deliberativo deve se reconhecer uma enorme distância seja por parte daqueles que participam efetivamente dos conselhos, em qualquer segmento, seja pelos que conceberam o modelo vigente, entre o idealizado e o real, ou entre o ideológico e o jurídico-administrativo. Tal disjunção acarreta prejuízos notáveis para as práticas de participação, que poderiam ser traduzidos por camuflagem, desperdício de energias e até mesmo certo transformismo, ou seja, aquilo que mostra o que não é, de fato.
 
Se o verdadeiro e final poder de deliberação é atributo do Executivo, como afirmam e reafirmam as leis, outras tarefas, também nobres, podem e devem ser assumidas pelos conselhos, de acordo com o que está referido na Resolução 333 do CNS: formular, mobilizar, fiscalizar, auto-regular-se, discutir, opinar, propor, exercer visão estratégica. Entre o ideológico e o jurídico, em suas formas puras, é possível encontrar uma terceira via, que ultrapasse aquele movimento ideológico, tão típico (e necessário) oriundo dos anos de arbítrio, para uma necessária evolução: a ação política em ambiente que deixa de ser de competição partidária e ideológica e de conspiração, passando a ser de construção solidária do bem comum.
 
Em suma, a participação social não é uma panacéia. Antes, representa um processo oneroso para o cidadão comum e costuma ser apropriada e mantida por determinados grupos sociais, como funcionários públicos, letrados, pessoas mais velhas, homens, militantes políticos. A participação social, contraditoriamente, pode ser também um instrumento antidemocrático. É preciso saber lidar com ela.
 
 

FLAVIO GOULART
(61) 3368 1034 - 8133 3235
 


[1] Médico. Doutor em Saúde Pública. Consultor autônomo em Saúde Pública. Membro fundador do CONASEMS. Ex-Professor Universitário (UFMG, UFU, UnB). E-mail: goulart.fa@gmail.com
[2]GOULART, FA. Dilemas da Participação Social em Saúde no Brasil. Revista Saúde em Debate – CEBES. Rio de Janeiro. Março 2010 (data prevista de circulação)

 



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