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SUS: contornos jurídicos da integralidade da atenção à saúde

Lenir Santos

 

I - Introdução


Recentemente, diante do dilema colocado para o Sistema Único de Saúde quanto ao fornecimento de serviços de saúde e medicamentos decorrentes de decisões judiciais, escrevi um pequeno texto sobre o conceito de saúde esculpido no art. 196 da CF e as atribuições do Sistema Único de Saúde[2] tentando demonstrar que o direito à saúde com sede constitucional é mais amplo e fluido do que as competências do Sistema Único de Saúde, o qual está demarcado pela própria Constituição, não sendo área que pode ser demandada de forma irrestrita pela população, com a garantia do Judiciário.

Retomo parte do tema, buscando destacar, com mais centralidade, que o direito à saúde que ao SUS compete assegurar está fortemente circunscrito à garantia da integralidade da assistência curativa e preventiva prevista em lei.


Aliás, nenhuma política pública onerosa, garantidora de direitos que custam[3], que implicam em obrigações positivas do Estado, poderá ser tida como absoluta, sem que se voltem os olhos para o orçamento público e outros regramentos técnicos e administrativos.


No caso da saúde, sem querermos, neste trabalho, adentrar em doutrinas e conceitos jurídicos mais aprofundados quanto à efetividade dos direitos sociais inscritos na Constituição[4] e a candente questão da alocação de recursos sempre escassos em relação à crescente demanda, é necessário adotar alguns parâmetros[5], todos previstos em lei, para adequadamente conceituar a integralidade da assistência fundamento da assistência curativa e preventiva individualizada -- preceito que, em adequados contornos, irá facilitar e prevenir o tortuoso dilema que se coloca na saúde quando se impõem duras escolhas entre o que garantir e o que mitigar no direito à saúde.


A integralidade precisa ser balizada por princípios, diretrizes e normas constitucionais e legais para, desde logo, impedir o argumento de que tudo, irrestritamente, cabe no direito à saúde.


A saúde pública poderá sofrer um grande revés em virtude do crescimento das ordens judiciais que estão gerando um elevado custo no seu orçamento[6] se não demarcar urgentemente a extensão da integralidade da atenção à saúde. As decisões judiciais trazem graves reflexos para o planejamento da saúde ? às quais poderão estar substituindo as instituições competentes para definir o conteúdo das ações e serviços de saúde. Gustavo Amaral[7] ao abordar a questão das difíceis escolhas na saúde, critica a transferência dessas decisões para o Judiciário, o qual não se encontra legitimado pelo voto para tomar tais opções, num alargamento de competências que não são suas.

II - O art. 196 da CF.


No nosso entendimento, o direito inscrito na Carta Constitucional art. 196 de conceito amplo e genérico está composto por normas programáticas e normas de efetividade imediata, não obrigando o Estado a garantir tudo para todos.


A sua força está exatamente em conciliar medidas protetivas da saúde, as quais irão evitar danos futuros, com medidas concretas de garantia de serviços públicos curativos e preventivos[8].


Esse é o grande valor do abrangente conceito de saúde trazido pela Constituição e melhor explicitado no art. 3º da Lei 8.080/90: considerar como fatores determinantes e condicionantes da saúde a qualidade de vida individual e coletiva. Não bastam serviços que assegurem acesso às ações e serviços de saúde; é necessário prevenir os riscos à saúde mediante a execução de políticas publicas adequada[9].


A dicção da primeira parte do art. 196 é norma programática que deve contaminar toda política pública, exigindo, de forma indireta, a melhoria dos fatores que condicionam a saúde, como alimentação, moradia, meio ambiente, trabalho, renda, lazer, educação e outros, conforme expresso no art. 3º, da Lei n. 8.080/90.


Somente a segunda parte do art. 196 que garante o acesso universal e igualitário às ações e serviços públicos de saúde -- exige do Estado a prestação de serviços públicos curativos e preventivos, os quais devem ser prestados pelos órgãos e entes que compõem o SUS, e ele não autoriza interpretação de que todos têm irrestrito direito a tudo na saúde. Além de não ter esse elastério, não pode ser interpretado isoladamente dos arts. 198 e 200[10] e de outras leis que o regulamentam.


Entender a saúde pública como um serviço que assegura serviços latu sensu, sem nenhuma regulamentação, planejamento, previsão dos recursos financeiros, epidemiologia é um despropósito e uma utopia que poderá levar a sua falência.


O SUS não tem o poder nem o dever de atuar em todas as áreas com implicações na saúde e que não são poucas. Daí poder afirmar que o SUS deve assegurar ao cidadão ações e serviços descritos no art. 200 da CF e explicitados nos arts. 5º e 6º da Lei 8.080/90, sendo responsabilidade de outros setores do Estado e também da sociedade, da pessoa, da família e das empresas (§ 2º do art. 2º da Lei 8.080/90) a adoção de medidas que evitem danos à saúde individual e coletiva, de forma ampla e genérica.


III - Integralidade da assistência à saúde.


Definidas as atribuições do SUS, de acordo com o explicitado no art. 200 da CF, devemos tentar entender o alcance da expressão integralidade da assistência à saúde prevista no art. 6º, d e art. 7º, IV, da Lei n. 8.080/90. É ela que irá dar contorno ao direito à saúde individualizado e garantido pelo SUS.


O art. 7º, II, reza que a integralidade de assistência é o conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema. Aqui cabem umas perguntas: para quem? Com que recurso? Qual assistência? Quais os critérios do planejamento e elaboração de planos de saúde? Vejamos.


A) Primeiro contorno ou limitação da integralidade: integralidade para quem?


Não podemos nos esquecer que a Constituição garante acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. A universalidade do acesso mencionada no art. 196 é a garantia de que todas as pessoas sem barreiras contributivas diretas ou outras têm o direito de ingressar no SUS. A universalidade compreende todos quantos queiram ir para o SUS enquanto a integralidade não compreende tudo.

Por sua vez, a igualdade da assistência mencionada na Constituição, art. 196 e definida no art. 7º, IV, da Lei n. 8.080/90, impede a existência de preconceito ou privilégios de qualquer espécie nos serviços de saúde. Não se pode oferecer tratamento diferenciado às pessoas em razão de credo, cor, classe social, ou seja, em nome de critérios que não sejam epidemiológicos, de urgência e emergência ou terapêuticos etc. (Muitas ordens judiciais que garantem determinados serviços poderão estar ferindo o direito à igualdade, por garantir, muitas vezes, um direito não abrangido pelo SUS).

A universalidade assegura o acesso de todos na saúde, mas a pessoa precisa querer adentrar o SUS, uma vez que a assistência integral somente é garantida àqueles que estão no SUS: Quem optou pelo sistema privado não pode pleitear parcela da assistência pública porque ela pressupõe a integralidade da atenção e a integralidade da atenção, por sua vez, pressupõe que o paciente está sob terapêutica pública, escolheu o sistema público[11].

Integralidade da atenção é uma ação de mão dupla: paciente e profissionais devem manter uma vinculação, não podendo o SUS ser uma atividade complementar do setor privado, apenas fornecendo exames, medicamentos, realizando cirurgias ministradas por profissionais que não pertencem ao setor público da saúde.


A primeira imposição para que a integralidade ocorra é o paciente observar as regras do SUS no tocante ao acesso. Pode acessar os serviços, mas tem que respeitar seus regramentos. Se o SUS vincula a assistência farmacêutica à prescrição, pelo seu profissional, do medicamento; se vincula a cirurgia, fisioterapia, exames complementares à uma prescrição de profissionais do SUS, o paciente não poderá, mediante prescrição privada, ir buscar os serviços públicos. Se não houver esse respeito às normas públicas, teremos um esfacelamento, um fracionamento da atenção e um sistema público complementar ao sistema privado ao invés de um sistema público integral.

A sociedade brasileira escolheu um sistema de saúde misto: publico e privado. O público, gratuito e o privado, pago. A população tem a liberdade de escolha. E ao fazer essa escolha fará uma opção pelos serviços públicos ou pelo privado, com todas as suas conseqüências.


Se optar pelo publico, deverá observar os seus regramentos, como a regionalização dos serviços, as referências e contra-referências, calendário de vacinação, porta de entrada dos serviços de acordo com o agravo à saúde e a sua complexidade, padronização de medicamentos etc., lembrando sempre que o SUS é um sistema público aberto: quem quiser poderá usufruir dele, mas sempre observando as suas imposições administrativas e técnicas. Poderá utilizar os serviços ou deixar de utilizá-los, livremente.

Alias, mesmo quando o cidadão opta pelo sistema privado, também fica sujeito aos seus regramentos, do mesmo modo que dele poderá entrar e sair quando quiser. O que não pode, na saúde pública, é o paciente buscar um mesmo tratamento nos dois sistemas ao mesmo tempo: consulta privada, exames públicos. Diagnóstico privado, cirurgia pública. Isso rompe com o conceito da integralidade da assistência, uma vez que os profissionais de saúde do SUS não poderão ficar a mercê da terapêutica exigida pelos profissionais de saúde do setor privado,complementando-o. Ou se adentra ao SUS e submete-se aos seus parâmetros técnicos, científicos, administrativos; ou se opta pelos serviços privados.

Vale lembrar que no sistema privado, em especial, nos planos de saúde privados[12], ninguém pode fazer um exame se a sua prescrição for de um médico do SUS. As regras impostas pelos planos privados são de observância obrigatória para seus consumidores. Ora, no público, a regra é a mesma.

A qualquer tempo, o cidadão poderá escolher entre um e outro sistema; mas ao fazer a escolha pelo público necessitará respeitar as suas normas, seus princípios e diretrizes, bem como os critérios de sua organização administrativa.

Pela dicção do artigo acima (art. 6º, d), a assistência terapêutica integral, incluída a farmacêutica, pressupõe que o paciente do SUS obteve um diagnóstico e passará, a partir daí, a ter direito a todas as ações e serviços de saúde exigidos para o seu caso, em todos os níveis de complexidade. Nesse momento, o SUS fica obrigado a ser resolutivo, ou seja, ter capacidade de atender o paciente de todas as formas, a fim de cumprir com a sua obrigação de garantir-lhe a assistência integral, ainda que para isso, tenha que lançar mão de recursos privados, complementares e pagar por eles.

Trazemos à discussão a Lei n.9.313/96 que garante a todos independentemente de estarem sob tratamento no SUS medicamentos para AIDS. Se todos têm direito irrestrito a tudo na saúde, não haveria necessidade de tal lei; também o conteúdo do art. 6º, d, da Lei n. 8.080/90 se abarcasse as pessoas que não estão sob tratamento no SUS -- já agasalharia tal pretensão.

Isso confirma a tese de que a assistência farmacêutica ali mencionada no art. 6º, I, d, se restringe às pessoas que integralmente tenham optado pelo sistema público de saúde. Caso contrário, bastaria este dispositivo para se garantir medicamentos da AIDS para todos, independentemente de lei específica.

A assistência terapêutica integral pressupõe que o paciente esteja em tratamento no SUS. Feito o diagnóstico, prescrita a terapêutica, o SUS deverá arcar com ela, integralmente, incluindo, é obvio, a assistência farmacêutica. Se não o fizer, aí sim, poderá ser compelido judicialmente a fazê-lo, por omissão. A realidade é que a Lei 8.080/90 assegura a integralidade da assistência apenas àquele que optou pelas regras de atenção ao SUS.


B) Segundo contorno ou limitação da integralidade: EC 29/2000. Quais recursos financeiros?

Segunda delimitação é a prevista no art. 198, § 2º, da CF, que impõe percentuais de aplicação das receitas dos entes federados na saúde. Dentro do limite imposto pela Constituição é que devem situar os gastos com a saúde (obvio que poderão ser alocados mais recursos). Como o direito à saúde pressupõe obrigações positivas do Estado direitos que custam -- não há como entendê-lo ilimitado, se limitadas são as fontes de recursos.


O próprio art. 36, da Lei 8.080/90 reza que o planejamento e a orçamentação da saúde deverão compatibilizar as necessidades da política de saúde com as disponibilidades de recursos em planos de saúde dos entes federado, num reconhecimento da finitude dos recursos versus infinidades das demandas ou necessidades. Com a EC 29 (que alterou o art. 198 da CF), a saúde passou a contar com percentuais mínimos para o seu custeio. Assim, o direito à saúde deve ser implementado dentro do montante de recursos constitucionais destinados ao seu financiamento.

O montante de recursos financeiros previstos na EC 29 confere, pois, mais um contorno à integralidade da assistência: compatibilização das necessidades em saúde com as disponibilidades de recursos, conforme o previsto na EC 29/2000.


C) Terceiro contorno ou delimitação da integralidade: normas técnicas e cientificas e incorporação de tecnologia Qual assistência?

A terceira limitação é a competência da União e do Estado de impor regulamentos técnicos, normas técnicas e científicas, protocolos de conduta e a obrigatoriedade de pautarem-se por critérios epidemiológicos para a definição da política de saúde, planos de saúde, adoção de condutas terapêuticas, padronização de medicamentos, incorporação de tecnologia etc. (arts. 15, V, VIII, XVI da Lei n. 8.080/90). Este último item incorporação de tecnologia -- se não houver uma prudência na adoção de tecnologias crescentes e onerosas, voltadas muito mais para a garantia do capital do que para o bem estar do cidadão -- esta, por si só, porá fim aos recursos da saúde.

Quem assistiu ao recente filme O Jardineiro Fiel, do Diretor brasileiro Fernando Meirelles, por mais ficção que contenha, própria do cinema, revela verdades que não se pode negar. A indústria farmacêutica nem sempre tem olhos humanitários; seu fim último não é a cura, mas sim o lucro dos acionistas[13].

Se tal remédio, mais barato, cura tanto quanto um mais caro, é óbvio que a indústria vai utilizar todos os seus recursos para vender o mais caro. Quem precisa balizar esse comércio é o Poder Público, tanto no que tange à regulação do mercado fabricante e comerciante quanto à demanda dos serviços públicos de saúde. A regulamentação do medicamento genérico é um exemplo de controle que o Poder Público pode e deve exercer nesta área.

As ações judiciais para obtenção de determinado medicamento nem sempre têm por fundamento real evitar maiores agravos à saúde. Muitas vezes ele é apenas o mais caro, como é o caso do interferon peguilado.

O mesmo ocorre com o avanço tecnológico. Estaria ele somente voltado para a melhoria da saúde? É lógico que não. O lucro é o que está em primeiro lugar. Daí, mesmo que desnecessários determinados aparatos tecnológicos, eles tendem a ser incorporados no sistema de saúde como imprescindíveis por força de influências e outras formas de pressão do capital sobre as reais demandas da saúde.


Por pertinente, transcrevemos aqui trecho de Aaron e Schawartz, conforme citação de Gustavo Amaral[14] O fator mais relevante para o aumento dos custos com saúde em todo o mundo, e em particular nos Estados Unidos, é o contínuo progresso da tecnologia médica. (...) Ao contrário de outras indústrias, investimentos de capital e desenvolvimento tecnológico raramente resultam em substancial economia de custos de trabalho na indústria da saúde. A demanda por tecnologia de cuidados de saúde parece que não irá deixar de crescer.

Desse modo, a integralidade da assistência deverá pautar-se por regulamentos técnicos e científicos, protocolos de condutas, limites para incorporação de tecnologia, protocolos farmacológicos. A integralidade da assistência, sob esse ponto de vista, não é um conceito que admite toda e qualquer terapêutica existente ou demandada por um paciente ou profissional de saúde. Há que se ter critérios científicos e técnicos, atualizados cientificamente para a embasar a incorporação desta ou daquela tecnologia, desta ou daquela terapêutica ou medicamento.

D) Quarto contorno ou delimitação da integralidade: critérios para o planejamento, planos de saúde e orçamentação. Como planejar, o que planejar?

O quarto ponto delimitador é o disposto no art. 7º, VII, da Lei n. 8.080/90 que impõe como princípio do SUS a utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, alocação de recursos e orientação programática. Esse é principio norteador dos planos nacional, estaduais e municipais de saúde e por conseqüência do gasto com saúde.

O critério epidemiológico (art. 7º, VII), de organização de serviços e populacional (arts. 35 e 37) devem pautar a política de saúde e a definição das prioridades, as quais devem estar consubstanciadas em planos de saúde ? base de todas as atividades do SUS (art. 36, parag. único, Lei 8.080/90) -- financiado com a totalidade dos recursos previstos na EC 29/2000 e as transferências obrigatórias de recursos entre os entes federados. Alias, o § 2º do art. 36 veda a realização de qualquer despesa não prevista em plano de saúde.

O art. 35 da mesma Lei, quando dispõe sobre o critério de rateio dos recursos da União para Estados e Municípios e dos Estados para seus Municípios, estabelece, novamente, o critério epidemiológico, o de organização de serviços e o demográfico como norte para o planejamento e programações em saúde.


Assim, cabe à autoridade na saúde planejar os serviços de saúde, de acordo com a epidemiologia, a organização de serviços e a demografia da região e elaborar a proposta orçamentária em conformidade com a EC 29, não sendo legítimo ao Judiciário interferir no plano de saúde elaborado nos termos da lei.

IV - Conclusão


Nenhum sistema de saúde público sem organização, parâmetros, critérios epidemiológicos, protocolos de conduta, regulamentos técnicos, critérios de incorporação de tecnologia e limites de gastos dará conta de atender a demanda ofertada na sociedade, cada dia mais sofisticada e que poderá, muitas vezes, ter muito mais a ver com interesses financeiros do que com interesses humanísticos.

Todavia, não podemos ter a ingenuidade de acreditar que os governos também não tentam mitigar o direito à saúde mediante diversos subterfúgios. Por isso não podemos perder de vista os dois lados da moeda nos pleitos da saúde:


a) as evasivas de governos inconseqüentes que tentam desprover de conteúdo os direitos sociais, priorizando políticas que os esvaziam de sua qualificação constitucional. Contra isso, na saúde, temos como ponto de partida o disposto na EC 29 que vincula percentuais mínimos para a saúde e que devem ser cumpridos sem maquiagem e outros artifícios e outros ditames legais e constitucionais[15]; e


b) os excessos que as pessoas pretendem para si em absoluto desrespeito ao interesse coletivo que são, muitas vezes, reforçados, por ordens judiciais que interferem e atrapalham o planejamento da saúde. Contra isso, somente o bom senso de juízes e promotores poderá minimizar a demanda por medicamentos e procedimentos complementares de pessoas que escolheram o sistema privado e pleiteiam do SUS serviços complementares, sem obrigar-se a respeitar à sua normatividade; ou, ainda, de pessoas que, mesmo estando no SUS, pretendem medicamentos e procedimentos que estão fora de protocolos e regulamentos técnicos fundados em conhecimentos científicos atualizados.


Por fim, o Poder Judiciário, na saúde poderá ser um grande aliado contra os abusos e as evasivas do Executivo, mas não pode decidir quanto gastar nem como gastar, uma vez que isso já está definido em leis, sendo essa competência do Legislativo e do Executivo. Não tem o Judiciário legitimidade para alterar leis orçamentárias, percentuais de tributos vinculados, critérios legais do planejamento da saúde. Quanto gastar, a EC 29 já o diz; em que gastar, o art. 200 da CF, de maneira mais abrangente, e a Lei n. 8.080, em seus arts. 6º, 7º, VII, art. 35, 36 e 37 já o fazem.

Qualquer demanda judicial da saúde deve ver respondidas algumas questões, como:

a) Qual o conteúdo dos planos de saúde discutidos e aprovados nos conselhos de saúde (representação da sociedade na definição da política de saúde local, estadual e nacional); estão sendo cumpridos?


b) Quais as reais responsabilidades do ente federado no âmbito dos pactos de gestão[16] documento definidor, entre os entes federados, de suas responsabilidades com a saúde; estão sendo cumpridas?


c) Há compatibilidade da política de saúde com as disponibilidades de recursos financeiros, conforme recursos mínimos derivados dos percentuais previstos na EC 29 (15% para os Municípios, 12% para os Estados e valores iguais ao do ano anterior, acrescido da variação do PIB para a União)? A EC 29 está sendo cumprida?


d) O paciente escolheu o sistema público de saúde, com todas as suas nuances organizativas, técnicas, principiológicas etc.?


e) A terapêutica prescrita pelo profissional público de saúde está em conformidade com os regulamentos técnicos, os critérios epidemiológicos, os protocolos de conduta, tecnologia admitida, a padronização de medicamentos do SUS?


f) Esses regulamentos estão sendo periodicamente revistos, a fim de manter a necessária (de acordo com o critério epidemiológico) atualização técnico-científica?

As decisões judiciais quando desbordam de sua competência interferem de forma negativa na organização e implementação do SUS, colocando em risco o princípio da igualdade, uma vez que aqueles que recorrem ao Judiciário podem ser mais beneficiados do que aquele que adentrou no SUS voluntariamente, além de poder estar atendendo, de maneira indireta demanda das industrias de medicamentos.

Ao Judiciário compete coibir os verdadeiros abusos das autoridades públicas na saúde, não deixando nunca de analisar se estão sendo aplicados recursos financeiros de acordo com os percentuais mínimos constitucionais; se a execução dos serviços se funda em critérios epidemiológicos, técnicos e científicos; se mantém as unidades de saúde abastecidas de todos os medicamentos da RENAME[17] e se a revê periodicamente, fundada em dados científicos etc.

Esses fatos qualificam verdadeiramente o sistema público de saúde, inibindo omissões das autoridades públicas e interesses individuais que poderão implodir o sistema público de saúde que deve ser solidário e cooperativo por excelência.
 


Campinas, 24 de junho de 2006.

 



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