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A desconstrução do SUS: a permissão do judiciário para tratamento desigual no sistema público de saúde

Lenir Santos

 

Um dos princípios basilares da nossa República Federativa é a igualdade de todos perante a lei. Contudo, num país marcado pela desigualdade, onde alguns se sentem mais privilegiados que outros, essa desigualdade social, essa segmentação social não para de produzir efeitos os mais deletérios possíveis.

No SUS isso tem sido uma luta constante. Desde a consagração do direito à saúde na Carta Constitucional luta-se para a implantação de um sistema público de saúde. Entretanto, a marca da desigualdade sempre emerge, seja em razão dos apadrinhamentos presentes nos serviços públicos; na garantia de serviços de saúde ou planos de saúde para servidores públicos (Judiciário, Legislativo, Ministério Público, Tribunal de Contas, Executivo); na segunda porta nos serviços públicos de saúde; e agora a imposição pelo Judiciário de serviços diferenciados para quem pode pagar – hotelaria hospitalar e médico particular adentrando o serviço público para se ocupar de paciente que pretende que o SUS o atenda de acordo com as suas preferências e não de acordo com a lei.

Essa decisão recente da Justiça Federal de Santo Angelo-RS, fundada em decisões do STF, é uma aberração impar e assusta aqueles que acreditam numa sociedade mais igualitária e justa.

Além do mais, causa mal estar saber que quem pleiteou e ainda pleiteia tal medida desigual e desestruturante do SUS é o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do SUS, órgão público que deveria velar pelo principio da isonomia previsto na nossa Constituição e ser defensor do sistema público de saúde e sua estrutura legal.

Para que se possa entender o caso, recentemente, o Juiz da 1º Vara Federal de Santo Ângelo - (Execução de sentença contra fazenda pública nº 2003.71.05.005440-0/RS), deferiu pedido do CRM-RS permitindo que o cidadão, quando enfermo, tenha o direito de pleitear no SUS, serviços de hotelaria de maior conforto pessoal em relação àqueles existentes para todos, além de poder, ainda, escolher médico privado para atendimento nos serviços públicos de saúde (SUS).

A leitura da sentença nos estarrece pelo teor do mais completo desconhecimento da estrutura e organização do Sistema Único de Saúde (SUS) tanto quanto pela desigualdade que instala no âmbito dos serviços públicos.

“Defiro o pedido do exeqüente e determino a intimação do Município de Giruá acerca da referida decisão, para que, a partir da ciência da presente:
a) permita o acesso do paciente à internação pelo SUS e o pagamento da chamada diferença de classe, para obter melhores acomodações, pagando a quantia respectiva, quer ao hospital, quer ao médico;
b) abstenha-se de exigir que a internação só se dê após exame do paciente em posto de saúde (outro médico que não o atendeu), e de impedir a assistência pelo médico do paciente, impondo-lhe outro profissional. Cientifique-se o representante legal do Município de que, havendo descumprimento da decisão proferida nestes autos, incorrerá o executado em multa diária, no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais).
Oficie-se à Prefeitura do Município de Giruá. Cumpra-se. Intimem-se. Santo Ângelo, 13 de maio de 2010.
Lademiro Dors Filho - Juiz Federal Substituto - D.E. Publicado em 19/05/2010.

E para piorar a situação, essa decisão se fundamenta em recente Acórdão do STF, de 2009, do Ministro Celso de Mello, no RE 596.445/RS que entende que a jurisprudência do STF se firmou no sentido de conceder ao cidadão o direito de exigir serviços públicos de saúde diferenciados, quando de sua internação (quarto individualizado e conforto superior), mesmo que esse procedimento seja contrário ao princípio da isonomia e não tenha previsão legal por ferir o principio do acesso universal e igualitário no SUS

Eis a integra da decisão do Ministro Celso de Mello:

“A controvérsia jurídica objeto deste processo já foi dirimida pela colenda Primeira Turma deste Supremo Tribunal Federal (RE 226.835/RS, Rel. Min. ILMAR GALVÃO): “Direito à saúde. ‘Diferença de classe’ sem ônus para o SUS. Resolução n. 283 do extinto INAMPS. Artigo 196 da Constituição Federal. - Competência da Justiça Estadual, porque a direção do SUS, sendo única e descentralizada em cada esfera de governo (art. 198, I, da Constituição), cabe, no âmbito dos Estados, às respectivas Secretarias de Saúde ou órgão equivalente. - O direito à saúde, como está assegurado no artigo 196 da Constituição, não deve sofrer embaraços impostos por autoridades administrativas no sentido de reduzi-lo ou de dificultar o acesso a ele. Inexistência, no caso, de ofensa à isonomia.Recurso extraordinário não conhecido.” (RE 261.268/RS, Rel. Min. MOREIRA ALVES) Cumpre ressaltar, por necessário, que esse entendimento vem sendo observado em sucessivos julgamentos, proferidos no âmbito desta Corte, a propósito de questão essencialmente idêntica à que ora se examina nesta sede recursal (RE 228.750/RS, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RE 496.244/RS, Rel. Min. EROS GRAU – RE 601.712/RS, Rel. Min. CARLOS BRITTO – RE 603.855/RS, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, v.g.). O exame da presente causa evidencia que o acórdão ora impugnado diverge da diretriz jurisprudencial que esta Suprema Corte firmou na matéria em referência. Sendo assim, considerando as razões expostas, conheço e dou provimento ao presente recurso extraordinário (CPC, art. 557, § 1º-A). Publique-se. Brasília, 18 de dezembro de 2009. Ministro CELSO DE MELLO – Relator”.

Esse entendimento - que vem sendo firmado no STF desde 2000 - se assenta numa decisão do Ministro Ilmar Galvão - RE 226.835/1999 – que, à época, garantiu ao paciente internação em quarto privativo, sob o fundamento de que o paciente acometido de leucemia mielóide aguda teria o direito de manter-se internado em quarto individual em razão de sua doença não permitir contato com outros pacientes, sob o risco de contágio em razão da fragilidade de seu sistema imunológico.

A causa de pedir expressa no RE dizia respeito a paciente com leucemia mielóide aguda que necessitava de isolamento em quarto privativo. As pessoas que sofrem dessa doença necessitam manter-se isoladas para prevenir contágios, diante de sua fragilidade imunológica. Essa necessidade terapêutica deveria ter sido garantida pelo SUS, na ocasião, sob pena de cerceamento do direito à saúde, por tratar-se de uma situação que requeria tratamento diferenciado em razão da doença do paciente.

In casu, o pedido de acomodações diferenciadas – quarto individual em relação à quarto com mais de um paciente ou enfermaria – fazia todo o sentido terapêutico e deveria ter sido garantido de imediato pelo SUS, tendo o paciente, diante da limitação ao seu direito e do risco de agravo à sua saúde pelo não atendimento do pleito, se socorrido do Poder Judiciário, que lhe concedeu o direito de se manter internado em quarto individual em razão de sua doença

O fundamento daquele pedido, datado de 1999, e o fundamento da concessão do direito, foram muito bem caracterizados pelo Ministro Ilmar Galvão, ao ressaltar que as condições especiais do paciente que estava acometido de leucemia exigiam como medida terapêutica, a sua internação em quarto individual, sob pena de sua vida correr risco. Daí ter o Ministro ressaltado que não estava havendo quebra de isonomia naquele caso pelo fato de a Justiça estar tratando de maneira diferenciada situação diferenciada; as situações eram desiguais, por isso não se estabeleceu tratamento desigual entre pessoas numa mesma situação!

Contudo, para deixar todos estupefatos, a situação invocada no pedido concedido pelo Juiz Federal com base na decisão do Ministro Celso de Mello é exatamente contrária: o CRM-RS pleiteou o direito de as pessoas terem tratamento desigual em situações iguais, alegando que pacientes podem, no SUS, ter direitos diferenciados no tocante a serviços de hotelaria: quem puder pagar esses serviços (que nada tem a ver com o direito à saúde por ser mero serviço de hotelaria hospitalar - conforto hospitalar) passa a ter o direito de pleiteá-lo, devendo o dirigente público do SUS dar um jeito de providenciá-lo, ainda que esse tipo de serviço não exista no SUS, exatamente por se constituir em violação do principio da isonomia por conceder privilégio e tratamento diferenciado aos pacientes do SUS, fato vedado pelo Direito (Art. 196 da Constituição e art. 7º, IV, da Lei 8.080, de 1990).

Por outro lado, a decisão judicial se faz acompanhar por uma outra medida absurda que é permitir no SUS a escolha de médico privado – que não integra o SUS – para atuar dentro do sistema público de saúde.

Isso fere de morte o principio basilar da isonomia, de que todos são iguais perante a lei, ao criar diferenciação de qualidade de serviços: para muitos (os pobres) internação em quarto com mais de um paciente; para poucos, os que podem pagar, que se crie no serviço público de saúde, de acesso universal e igualitário (art. 196, da CF), categoria diferenciada de serviços, na contra-mão do disposto no art. 7º, IV, que define dentre os princípios do SUS, a igualdade da assistência, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie.

Ora, permitir internação em quarto individual é um privilégio que não existe no SUS e nem poderia existir. Como seria essa hipótese em outros serviços públicos de acesso universal, como a educação: criar laboratórios melhores para aqueles que se dispuser a pagar pela diferença? Poderia, dentro desse principio, criar no Poder Judiciário salas confortáveis para aqueles que pagarem por um atendimento VIP? Teremos assim salas VIPs para aqueles que os pleitearem e pagarem por isso?

Outro absurdo jurídico é a possibilidade de se permitir a escolha de médico do setor privado para prestar serviços no serviço público, que exige concurso público de ingresso e toda uma gama de requisitos no tocante a condição de servidor público, investido em cargo ou função pública, e as responsabilidades do próprio Poder Público em relação à prestação de serviços em seu âmbito.

Como permitir que o médico privado do paciente adentre o serviço público e nele passe a atuar como se fora um servidor público? Na educação também poderíamos exigir professores privados para dar aulas aos nossos filhos porque não acreditamos no professor servidor público? O mesmo com o Judiciário? Como pode uma determinação desse porte vir do Judiciário, responsável pela aplicação da lei e da justiça? Em que lei está definido que se pode haver diferenciação de classe nos serviços públicos de saúde, criando-se acomodações de hotelaria diferenciadas para aqueles que se dispuserem a pagar? Onde? E onde a previsão de pagamento completar de honorários médicos? Ou seja, pagamento por fora no SUS?

O SUS é composto por todas as ações e serviços públicos de saúde (art. 198, da CF), não estando incluídos os serviços privados. Ora, seria um descalabro permitir que o SUS venha a ser um sistema de saúde complementar do setor privado, permitindo que o paciente possa escolher um médico privado e um tipo de hotelaria e nem precise ir às unidades básicas de saúde para encaminhamento aos serviços de maior complexidade, conforme reza a própria Constituição, ao definir, no art. 198, que o SUS deve se organizar em redes regionalizadas e hierarquizadas de serviços. Rede hierarquizada significa uma relação hierárquica em relação à complexidade de serviços.

Hierarquia de serviços pressupõe encaminhamentos de um serviço de menor complexidade para um serviço de maior complexidade, nos termos do art. 8º, da Lei 8.080, de 1990:

“Art. 8º As ações e serviços de saúde, executados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), seja diretamente ou mediante participação complementar da iniciativa privada, serão organizados de forma regionalizada e hierarquizada em níveis de complexidade crescente.”

E os encaminhamentos devem ser feitos pelo médico da atenção básica (unidades básicas de saúde), excetuando, é obvio, os casos de urgência e emergência. O SUS é um sistema e não um amontoado de serviços fracionados, sem articulação nenhuma, onde cada um pleiteia e faz o que quer.

No mundo desenvolvido – Inglaterra, Canadá, Espanha, Itália, França, o sistema de saúde é hierarquizado em relação à complexidade de serviços, não sendo possível o paciente ir direto a um serviço de maior especialização sem passar pela atenção primária. O mesmo se diga em relação à acomodação diferenciada que também não é permitida! Até a princesa do Reino Unido, ou da Espanha, deve manter-se em acomodação igual aos súditos em nome do princípio da igualdade de todos perante a lei. Aqui no Brasil, vale o principio da Casa Grande e Senzala.

Se vamos reproduzir no SUS, e porque não dizer, nas universidades públicas, no acesso à Justiça e demais serviços públicos, o sistema de classe social – a Casa Grande e a Senzala - permitindo que quem pode mais, escolha o que lhe convém e do modo que lhe convém e não como está disposto na Lei, estaremos ferindo de morte a Constituição Federal.

Além do mais, certamente, as pessoas pobres – não terão acesso à internação – que já é insuficiente no SUS – porque a mesma mal existirá: estará toda organizada para atender aqueles que podem escolher por hotelaria hospitalar de categoria superior, tal qual um hotel de três, quatro, cinco estrelas.

Uma pergunta que não pode deixar de ser feita: hotelaria hospitalar é saúde? Ou é um conforto pessoal? Isso tem a ver com o direito à saúde? Em nome de hotelaria especial as pessoas pobres ficarão com o seu acesso reduzido aos serviços médico-hospitalares. E isso é isonômico? É possível permitir que médicos privados adentrem serviços públicos e recebam por isso?

Por fim, a decisão proferida pelo Ministro Celso de Mello – por absolutamente equivocada e fundada, toda ela, em decisão do STF que não previa a internação em acomodação diferenciada, mas sim acomodação em quarto privativo por ser ínsito à terapêutica do paciente – necessita urgentemente ser revista pelo STF em nome do princípio da isonomia – violado flagrantemente - e do sentido de justiça!

Em resumo, a decisão do STF e do Juiz da Vara Federal de Santo Ângelo fere: a) o princípio da igualdade de atendimento; b) a gratuidade dos serviços de assistência à saúde prevista no art. 43 da Lei 8.080, de 1990; c) a organização do SUS que não permite nenhum tipo de privilégio, nenhum tipo de pagamento, taxa tarifa, preço público, tampouco a escolha de médico privado para atender paciente dentro do SUS; d) o principio da hierarquização de serviços. Não existe no SUS serviços de hotelaria diferenciados nem possibilidade de médico privado atender paciente SUS. Serviços diferenciados não podem ser criados nem por lei nem por decisão judicial por ferir a Constituição Federal. E o Poder Judiciário está exigindo isso!

Como vamos construir o SUS com todas essas absurdas interferências desestruturantes e desiguais?

 



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