Endereço: Rua José Antônio Marinho, 450
Barão Geraldo - Campinas, São Paulo - Brasil
Cep: 13084-783
Fone: +55 19 3289-5751
Email: idisa@idisa.org.br
Adicionar aos Favoritos | Indique esta Página

Entrar agora no IDISA online

Conferência Nacional de Saúde: esgotamento e crise

Paulo Capel Narvai (*)
 
Não é que esteja tudo errado com a Conferência Nacional de Saúde (CNS), apenas há muita coisa equivocada, coisas que não funcionam e outras que não deveriam mais estar sendo feitas. É preciso mudar. Mudar logo, mudar muito e se renovar, para se fortalecer. Este é o ponto de vista central do trabalho intitulado “Conferência Nacional de Saúde: esgotamento e crise” que submeti ao 5º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde (São Paulo, 17 a 20/4/2011), organizado pela ABRASCO. O estudo resulta de pesquisa que tomou como objeto de investigação a estrutura e o funcionamento da 13ª Conferência Nacional de Saúde (2007), com foco nas etapas municipal de São Paulo, estadual paulista e nacional. Foram analisados regulamentos e regimentos de conferências e feita observação participante, na condição de delegado.
 
Neste artigo, sumário de um paper em preparação, indico as principais conclusões da pesquisa e avanço em algumas sugestões ao processo de organização da 14ª Conferência Nacional de Saúde.
 
Finalidade – Desde que as CNS são realizadas (1941) sua finalidade tem variado, indo do “facilitar ao governo federal o conhecimento das atividades concernentes à saúde” (1941) ao “fortalecimento da participação social na perspectiva da plena garantia da implementação do SUS” (2007), passando pela avaliação das condições de saúde, avaliação de programas, dentre outras. É crucial rever a finalidade da CNS. O que queremos, em nossos dias, com a realização de conferências de saúde? O que estamos fazendo com e nas conferências está em conformidade com o que queremos desse evento? Digo “estamos fazendo” e “queremos” colocando-me no pólo dos que defendem o direito universal à saúde e dão combate sem trégua aos que mercantilizam (monetariamente, eleitoralmente...) os cuidados de saúde e aos que querem fazer negócios com saúde e, nesse setor, acumular e reproduzir capital.
 
Estrutura e Funcionamento – É preciso mudar radicalmente a estrutura da CNS, que segue reproduzindo o formato delineado na 8ª CNS, com grupos de debates e uma plenária final, no último dia, para a qual são empurradas as decisões da conferência. Esse formato está esgotado e insistir nele é um erro grave, que está comprometendo a própria credibilidade da Conferência Nacional de Saúde. Seguir realizando mesas e grupos de debates na etapa nacional, e suprimir pequenos avanços como foram as plenárias temáticas, é um retorno equivocado a dificuldades que todos conhecemos bem. Na 13ª funcionaram as plenárias temáticas, uma modalidade que possibilitou antecipar decisões e livrar a plenária final da leitura, discussão e votação de algumas centenas de propostas. Ao analisar o Regimento da 14ª CNS, divulgado recentemente, observei que esse avanço da 13ª foi abandonado. É um erro. Com essa decisão, centenas de propostas serão levadas à Plenária Final, congestionando-a ainda mais. Pode ser que essa decisão tenha resultado de alguma avaliação da 13ª, à qual não tive acesso. Desconheço, portanto, os motivos que levaram à supressão das plenárias temáticas como instância de tomada de decisão pelos delegados. Se essa supressão estiver articulada com outras iniciativas para melhorar o funcionamento da Conferência, pode ser que eu esteja errado (tomara que sim), mas, como ato isolado, essa supressão não resolverá problemas estruturais e pode ser sim um retrocesso importante. Um dos problemas identificados na pesquisa é que a CNS ainda não chegou à era da informação. As etapas municipal e estadual seguem desconectadas da etapa nacional e o fato de terem aparecido 373 propostas inéditas na etapa nacional da 13ª CNS, que se somaram às 588 que constavam do Relatório Consolidado das conferências estaduais é demonstração cabal da absoluta desconsideração dessas etapas. Afinal, se após realizar conferências envolvendo cerca de 1 milhão e 300 mil pessoas, em todas as 27 unidades federativas e em 4.413 municípios, foi necessário acrescentar mais 64% de propostas “inéditas” na etapa nacional, então esse esforço por todo o país foi, nesse aspecto, inútil – ou quase isso. Felizmente, consta do Regimento da 14ª CNS que não mais serão aceitas essas propostas na etapa nacional. É preciso, agora, fazer valer esse Regimento – e não rasgá-lo, como aconteceu na 13ª CNS. E para que não seja mais necessário inserir propostas inéditas na etapa nacional, urge que se supere essa verdadeira “barreira da China” que, com o passar do tempo, foi se erguendo entre a etapa nacional e as demais etapas. Para muita gente, a Conferência Nacional de Saúde começa e acaba na etapa nacional. Não é mais possível conviver com isso. Nós precisamos retornar ao Sérgio Arouca, quando, a propósito da 8ª CNS como um processo, em que a etapa nacional era inseparável das, à época, chamadas “pré-conferências” estaduais, dizia que “A Conferência deixou de ser quatro dias para ser um grande processo o ano todo e que, mobilizando a sociedade brasileira, a ciência, a academia, os profissionais, possa caminhar (...) para a construção de um grande projeto (...) uma verdadeira reforma sanitária”. Nós precisamos retornar à perspectiva do Arouca, e informatizar a CNS, viabilizando esse “grande processo o ano todo” a que ele se referia, mas, agora, com o uso da internet e todos os instrumentos e ferramentas que a era da informação nos disponibiliza, para aprofundar a luta pelo direito à saúde e, com isso, ampliar e fazer avançar a democracia brasileira. As Conferências de Saúde, não obstante seus problemas e dificuldades, são uma monumental conquista da cidadania, que não apenas a fortalece, mas também serve de exemplo para outros setores da vida nacional, notadamente os envolvidos diretamente com as políticas públicas. Por isso, por sua história de protagonismo e vanguarda, a CNS não pode temer mudanças. Deve, ao contrário, buscá-las incessantemente.
Informatizar a CNS – A CNS precisa também superar o constrangimento antidemocrático de, na etapa nacional, suprimir propostas aprovadas nos Municípios e nos Estados/DF. Em contextos democráticos, como o que vivemos no Brasil, não se trata mais de eliminar propostas válidas, legítimas, democraticamente aprovadas no processo da CNS. Basta aferir o grau de concordância dos delegados com cada proposta, reconhecendo-as todas como representativas e importantes. Respeitar minorias, e não massacrá-las. Desse modo, a CNS deve evoluir para superar o clima de conflagração que tem marcado as conferências, alimentado tensões, desrespeitando minorias e se caracterizando por excluir e não por auscultar. A CNS precisa auscultar o país, e superar o ambiente de “praça de guerra” que tem predominado. O formato, e a dinâmica, atuais favorecem o confronto em detrimento da consulta. Sem falar que tem gente que, optando pelo confronto puro e simples (muitas vezes raivoso), pensa que “está na luta” quando está, simplesmente, sendo malcriado e desrespeitando a quem não deveria. Para superar o clima de guerra e avançar democraticamente, a CNS precisa ser construída on-line, com cada Proposta sendo escrita coletivamente, pelos delegados municipais, estaduais e nacionais, mediante acesso qualificado ao site da CNS (aliás, é simplesmente inconcebível que a Conferência Nacional de Saúde não tenha um site específico, destinado exclusivamente para esse fim). Uma tarefa imediata, para a 14ª CNS é, portanto, criar um site e começar a escrever, imediatamente, a partir das conferências locais, as propostas que serão analisadas na etapa nacional. Nesta, por sua vez, é preciso aposentar definitivamente os crachás de votação. É indispensável adotar um sistema eletrônico de votação, dotar cada delegado de um terminal de votação digital e publicar imediatamente, no “telão”, os resultados de cada votação, identificando o grau de adesão a cada proposta. Não há impedimento técnico intransponível. É possível e é preciso fazer isto, avançar, modernizar a CNS e deixar no passado das nossas memórias o “espetáculo democrático” dos crachás subindo e descendo, em votações intermináveis, e em recontagens que não nos deixam saudade.
 
Tamanho e instalações – Tem predominado nas CNS, desde a 8ª Conferência (1986), a idéia de que conferência boa, bem-sucedida, é conferência “massiva”. O número de delegados e
convidados cresce a cada edição da CNS (na 13ª foram 3.182 participantes: 2.627 delegados, 336 convidados e 219 observadores). Então, avalia-se que quanto mais gente em Brasília, melhor a Conferência. Confunde-se democracia com quantidade de participantes; acúmulo de forças, com acúmulo de gente. É um despropósito. Conferência boa é conferência democrática, que cumpre sua finalidade, funciona bem e proporciona instalações adequadas e algum conforto aos participantes. Nas últimas conferências as instalações têm deixado muito a desejar – não obstante o esforço e dedicação abnegada dos organizadores. Os problemas vão de cadeiras inadequadas à qualidade do som, passando por conforto térmico, ventilação, alimentação. As filas intermináveis para o restaurante frequentemente “tiram” os delegados das atividades. Na 13ª CNS houve momentos em que havia mais gente no restaurante (nas filas e comendo) do que na plenária. É preciso reavaliar, com prudência e cautela, por certo, os números de delegados e convidados que a Conferência precisa e quer ter. Hoje, com esses problemas organizativos, a CNS parece estar negando a lei dialética que trata da transformação da quantidade em qualidade: nesse caso, a quantidade de participantes está comprometendo a qualidade – e não se transformando dela.
 
Plenária Final – Temos assistido a uma enfadonha rotina de conferências inacabadas, com plenárias finais que têm de deliberar sobre mais de 1.000 propostas, tendo cerca de 500 minutos para isso. No caso da 13ª CNS, a plenária final aprovou 857 propostas e 157 moções. Iniciou-se às 10h03 do dia 18 e se encerrou às 2h31 do dia 19/11/2007, com dois intervalos para o almoço e para o jantar. Durou exatos 685 minutos de atividades; quase 17 horas, considerando os intervalos. Não se pode mais repetir erros desse tipo. Chega a ser grosseiro. As plenárias finais deveriam decidir sobre não mais do que uns 50 itens/propostas e deles se ocupar com tempo, aprofundando prós e contras, possibilitando que diferentes pontos de vista pudessem ser expressados nesse momento máximo do processo. (Aliás, é crucial que todos, delegados e organizadores, compreendam que a CNS é um processo, com vários eventos em todo o território brasileiro, e não é, apenas, “um evento em Brasília”) E, então, democraticamente, votar o que for necessário, sem açodamento, sem pressa, sem atropelos. Muito importante: é preciso cumprir os horários. Começar atividades com 2 ou 3 horas de atraso é inaceitável. Deixar ministros de Estado e outras autoridades esperando mais de duas horas pelo início de uma mesa de debates, como aconteceu na 13ª CNS com o Ministro Luiz Dulci, Secretário Geral da Presidência da República, é um desrespeito ao convidado, mas é, também, um grave desrespeito ao delegado e a todos que ele representa. Não é “bonitinho”, nem “cultural” fazer isso. É falta de educação mesmo. Uma boa conferência de saúde deve começar (e terminar) com... educação. Respeitar horários é exercício de educação, deve ter função pedagógica num evento como a CNS. E, então, que venha a 14ª CNS: ousada, criativa, inovadora. Ninguém quer mais do mesmo, com exceção dos inimigos do SUS e do direito universal à saúde, que ficam satisfeitos e felizes da vida com cada tropeço nosso.
 
_____________________________
 
(*) Sanitarista. Professor Titular de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Ativista pelo direito à saúde e proteção social (ajudou a fundar e a dirigir o CEBES, a construir a ABRASCO e a Associação Paulista de Saúde Pública), é militante histórico do movimento da Reforma Sanitária e veterano de Conferências de Saúde, nas quais fez quase tudo, desde a 8ª CNS. Participou de dezenas de Conferências, gerais e temáticas, como debatedor, convidado, delegado e membro de comissões organizadoras e de relatoria. Dentre as últimas imprudências cometidas nesse campo, estão ter ajudado a organizar a 4ª Conferência Nacional de Saúde Indígena (2006) e assessorado a Comissão de Relatoria da 1ª Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento de Sistemas Universais de Seguridade Social (2010).


Meus Dados

Dados do Amigo

Copyright © . IDISA . Desenvolvido por W2F Publicidade