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2011 - Expansão da atuação da Justiça promove a democracia

Por Douglas Alencar Rodrigues
 
"Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral - particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)". (KONRAD HESSE)
Superado o mito da supremacia da Constituição real (preconizado por Ferdinand Lassalle, em conferência pronunciada em 1862) em detrimento da Constituição Jurídica, a partir da teoria da “vontade da Constituição” (defendida por Konrad Hesse, em obra publicada em 1959), todas as atenções voltaram-se para a força normativa da Constituição, instrumento básico de organização do Estado, de suas instituições políticas e de consagração de direitos fundamentais. Mas foi a partir do segundo pós-guerra que o conteúdo desses atos normativos fundamentais experimentou ampliação substancial, como resposta destinada a conter e controlar o poder político e superar os graves problemas de ordem social causados, fundamentalmente, pelo liberalismo econômico forjado a partir do século XIX. Assim, redefinido o seu papel na ordem social, o Estado assumiu a responsabilidade pela concessão de bens jurídicos de conteúdo material ou prestacional, na perspectiva da máxima promoção e realização dos direitos humanos.
Embora com algum atraso, justificado por suas singularidades econômicas e políticas, o Brasil acompanhou essa tendência que marcou as sociedades capitalistas ocidentais ao longo do Século XX, de ampliação e redefinição de seu objeto constitucional, promovendo ampla intervenção na ordem econômica e atuando como autêntico empresário em vários setores da economia. Mas, suplantado o regime liberal com o advento do Estado de bem estar social, o processo constituinte instaurado em 1987, no contexto do processo de redemocratização do Brasil, acabou ensejando mais um histórico embate entre as múltiplas concepções vinculadas à temática dos direitos humanos fundamentais. Como resultado desse processo histórico, e segundo o desenho constitucional de 1988, nossa República foi concebida como Estado Democrático de Direito, tendo por fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana, a valorização social do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1º, II, III e IV, da CF). Em vários preceitos da Constituição estão previstos direitos fundamentais de caráter social (artigos 6º a 11, por exemplo). Além disso, foram listados como fundamentos da ordem social o primado do trabalho e os objetivos do bem estar e da justiça sociais (artigo 193), impondo-se, também, a sujeição da ordem econômica aos ditames da Justiça Social (artigo 170 da CF) e a propriedade à sua função social (art. 170, III, da CF ).
Suplantado o instante de máxima celebração democrática, de positivação de uma nova ordem jurídico-política fundamental, com a retomada plena das liberdades públicas e a consagração de inúmeros direitos humanos fundamentais, teve início a fase seguinte, voltada à definição de políticas públicas e à execução de planos de ação voltados à concretização dos direitos fundamentais nas áreas do trabalho, da saúde, da educação, da segurança pública e da seguridade social. Ao longo desses quase vinte e três anos contados do advento da Constituição de 1988, em que o desenho constitucional original foi refeito por sessenta e sete emendas, os resultados da ação estatal, insatisfatórios em vários campos, fizeram desaguar no Poder Judiciário um contingente imenso de demandas por efetivação dos direitos e garantias sociais inscritas no Texto Maior.
Nos últimos tempos, o crescimento exponencial da atuação do Poder Judiciário, e particularmente do Supremo Tribunal Federal, tem convocado a atenção da sociedade brasileira e provocado debates sobre o modelo de organização política consagrado na Constituição de 1988. Fenômeno ainda não bem compreendido por expressiva parcela da sociedade - que assiste perplexa à definição de questões sociais sensíveis na arena judicial, sem maiores reações das instâncias políticas tradicionais --, a "judicialização da política" decorre não apenas da ampliação do rol de direitos fundamentais de caráter social inscritos na Carta de 1988 e da concepção diretiva e vinculante da Constituição, com os instrumentos processuais de efetivação nela previstos, mas também e fundamentalmente da própria crise funcional e de representatividade experimentada no âmbito do Poder Legislativo, que não tem logrado avançar na edição das leis necessárias ao atendimento das novas demandas sociais.
Embora assuma maior visibilidade no STF, a "judicialização" também está presente na jurisdição difusa, exercida por juízes de todas as instâncias e em todos os quadrantes deste país, em ações individuais e em tantas ações coletivas propostas pelo Ministério Público, associações, sindicatos e outros legitimados, em busca do "estado ideal" previsto pela ordem jurídica. Traços desse fenômeno de expansão do alcance da atuação do poder judicial são também identificados nos tribunais superiores, cujas decisões, vinculadas à uniformização da jurisprudência, acabam afetando grandes contingentes de cidadãos. Mas, se a judicialização da política evita, de um lado, o quadro de anomia ou de ausência de regulação de direitos e interesses tão caros à cidadania, afastando o próprio risco de perda da eficácia sócio-política da Constituição, por outro, acaba promovendo um claro desequilíbrio entre os Poderes da República, esvaziando a força do voto popular e do próprio processo político, com sérios riscos para o avanço da experiência democrática.
Não se trata, aqui, de discutir as credenciais democráticas dos juízes para a ação substitutiva que estão desenvolvendo ou mesmo as causas para a crise de representatividade do Poder Legislativo, sobretudo no estágio atual em que caminhamos a passos largos para uma "democracia virtual". Objetiva-se, apenas, demonstrar que o Poder Judiciário, compreendendo o momento delicado vivido pelas instâncias políticas decisórias tradicionais, vem agindo com cautela e responsabilidade, na perspectiva de produzir os resultados mais legítimos possíveis. Prova disso são os exaustivos e candentes debates travados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento de questões envolvendo pesquisas com células-tronco embrionários, aborto de fetos anencefálicos, marcha pela liberação da maconha, cotas raciais, lei da ficha limpa, uniões homoafetivas, relativização da coisa julgada, entre outras.
Assim, se a "judicialização da política" representa fenômeno irreversível, nada mais razoável e necessário do que a boa "politização dos procedimentos judiciais", com a superação das limitadas regras de participação no processo judicial e a abertura ampla à comunidade de intérpretes da Constituição. No âmbito do STF, aliás, essa possibilidade de participação de diversos interlocutores já está prevista para algumas ações (Leis 9882 e 9866, ambas de 1999), inclusive tendo sido observada com grande sucesso para a coleta de pareceres e dados, em audiências públicas, para a solução da questão relativa às pesquisas com células-tronco embrionárias.
Nesse linha de ampla abertura e democratização do acesso à justiça deve ser examinada a recente decisão tomada pelo Tribunal Superior do Trabalho, vinculada à alteração de seu Regimento Interno, dispondo sobre a possibilidade de realização de audiências públicas para oitiva de pessoas que, "com experiência e autoridade em determinada matéria de grande relevância jurídica e intensa repercussão social", possam contribuir para "o esclarecimento de questões ou circunstâncias de fato, debatidas no âmbito do Tribunal".
A inovação regimental é, sem dúvida, bem vinda e deve ser celebrada como exemplo de compromisso com a máxima democratização do acesso à Justiça, com a abertura à participação de atores sociais interessados na solução das questões de ampla repercussão social. Embora ainda recente, essa nova previsão regimental do TST já foi posta em prática para o enfrentamento de questão sensível e extremamente delicada do ponto de vista econômico e social, cada vez mais presente no universo das relações de produção e que tem promovido grave impacto na órbita dos direitos sociais trabalhistas: a terceirização. Se a experimentação prática desse fenômeno essencialmente econômico tem se prestado a produzir violação maciça de direitos sociais trabalhistas, com afronta aos postulados constitucionais da dignidade da pessoa humana e da valorização social do trabalho, nada mais razoável e oportuno do que debatê-lo amplamente com os atores econômicos e sociais interessados, na busca de caminhos que permitam confiná-lo a parâmetros civilizatórios mínimos.
Espera-se, pois, que os debates no Tribunal Superior do Trabalho sejam úteis não apenas para o julgamento dos quase cinco mil recursos que lhe cabe solucionar sobre a questão, mas também que possam auxiliar o Congresso Nacional na difícil missão de traçar parâmetros normativos mínimos que disciplinem a terceirização, apregoada como mecanismo de modernização do processo de gestão de pessoal e de economia de recursos, mas que, na prática, lamentavelmente, do ponto de vista social, tem se prestando apenas à precarização do trabalho e ao aviltamento da dignidade do trabalhador, como demonstram as milhares de ações constantemente levadas ao Poder Judiciário trabalhista.
Douglas Alencar Rodrigues é desembargador do TRT da 10ª Região e professor do Instituto de Ensino Superior de Brasília (Iesb).


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