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A saúde que queremos é a saúde que podemos?

Por Lenir Santos, Advogada especializada em Direito da Saúde. Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Sanitário da UNICAMP-IDISA. Coordenadora do IDISA
Na ânsia que nós, construtores da saúde brasileira, temos em convencer a todos sobre a necessidade de melhorar os investimentos na saúde pública, citamos sempre os países que garantem saúde universal a seus cidadãos como exemplos a serem seguidos. Canadá, Espanha, Inglaterra, Itália, França e o montante de recursos que ali se investem. Contudo, nunca nos lembramos de analisar a riqueza desses países, o seu tamanho demográfico, seu modelo assistencial e as regras de coexistência entre saúde pública e privada. Na realidade, não conhecemos nenhum país com mais de 60 milhões de habitantes que garanta saúde de forma universal: Canadá – 33 milhões; Inglaterra – 50 milhões; França – 65 milhões; Itália – 60 milhões; Espanha – 45 milhões; Suécia – 9 milhões; Noruega – 7 milhões.
Além do mais, todos esses países têm elevado PIB, alto per capita e percentual de gasto público aplicado em saúde em relação ao PIB (6 a 8%), definição clara do que o Poder Público garante no âmbito de seu sistema público de saúde (o Canadá, por exemplo, não garante assistência odontológica, tanto quanto a Inglaterra), modelo assistencial centrado na atenção primária e a permissão para a iniciativa privada explorar a saúde economicamente é quase mínima e muito regulada, diferentemente do que ocorre com o Brasil.
A liberdade que se reserva à iniciativa privada, como é o caso da França e Espanha, além de pequena, é bastante controlada pelo Poder Público. Na Inglaterra não há esta liberdade, tanto quanto no Canadá, e o Poder Público, nestes países, regulam com rigor a incorporação tecnológica, a ponto de discriminar por faixa etária alguns tipos de transplante, como ocorre na Inglaterra.
Em nosso país cresce sem controle o volume de prestação privada de serviços assistenciais de média e alta incorporação tecnológica e custos remunerados por produção pelo Poder Público, além do inusitado crescimento da terceirização da mão-de-obra na saúde pública e gerenciamento privado de estabelecimento público e duplas portas nos serviços públicos, além de grande crescimento de várias formas de subsídios públicos aos planos e seguros de saúde.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) menciona, em seu Relatório 2010[1], que tem sido uma preocupação constante dos países que garantem a universalização da saúde, os seus crescentes custos, citando a Alemanha como exemplo, ainda que a OMS sempre incentive a sua universalização.
O Brasil fez a opção constitucional de garantir saúde gratuita a todos. Por outro lado, também garantiu à iniciativa privada a liberdade para explorá-la economicamente.  De um lado, uma saúde gratuita; de outro, uma saúde paga. Convivemos com um sistema público e um setor privado (já que não se pode falar em sistema privado por faltar-lhe os mínimos elementos integrativos), ainda que haja uma competência explícita constitucional de regulação, controle e fiscalização das ações e serviços de saúde (públicos e privados) pelo Poder Público, até então não explorada. E mesmo quando se regular o setor privado deve-se respeitar as normas constitucionais previstas nos arts. 170 a 181 que tratam da Ordem Econômica e Financeira.
Por volta de 40 milhões de pessoas tem planos privados de saúde. Saúde paga. Nossos parlamentares, magistrados, servidores públicos, a maioria, tem planos privados de saúde garantidos, frequentemente, com dinheiro público. Os trabalhadores reivindicam planos de saúde em seus dissídios coletivos. A saúde é gerida por autoridades que não a usam. Estes são os nossos paradoxos nacionais. Parece haver uma preferência de uma determinada classe social pela saúde paga e devemos perguntar por quê.
São 191 milhões de brasileiros usando o sistema público de saúde (dos quais 150 milhões exclusivamente, e 40 milhões que duplicam com o uso de planos e seguros privados). Saúde gratuita. Nenhum país do mundo garante saúde universal para uma população deste tamanho. Mesmos os mais ricos. O dinheiro público é escasso para uma população deste tamanho – hoje na ordem de 140 bilhões de dólares: metade público, metade privado, com um gasto per capita público de US$ 385 (o público e o privado juntos gastam US$875)[2]. O público gasta o mesmo valor do privado para manter uma saúde integral para 150 milhões de pessoas. Abaixo quadro elaborado pelo Dr. Gilson Carvalho:
 


Se não se faz saúde de maneira decente, de acordo com estudos de especialistas, com menos de US$ 1.000,00, per capita, seria viável garantir um sistema de saúde para quase 200 milhões de pessoas de forma universal[3], com os recursos que temos e sem clareza prática quanto ao modelo da atenção à saúde, quanto ao padrão de integralidade, sem regiões e redes de saúde institucionalmente organizadas?
Nesse passo cabe a pergunta se a saúde que queremos é a saúde que podemos. Mas que saúde queremos? Esta deve ser a primeira pergunta. Uma saúde pública centrada na atenção hospitalar (secundária e terciária), inacessível a todos? Ou uma saúde centrada na atenção primária com a incorporação tecnológica rigorosamente regulada para ser de fato um sistema acessível a todos e caber no bolso de nosso país? Um sistema igual para todos. Aquilo que se pode dar para um tem que ser possível para todos.
Neste contexto, e num país de paradoxos, com alguns podendo manter-se vivo em razão da utilização de aparatos tecnológicos inacessíveis a grande maioria da população, enquanto outros ficam mais de 12 horas numa fila para cuidar de um braço quebrado, é imperioso definir o modelo de atenção e o padrão de integralidade da assistência à saúde que o país é capaz de garantir a toda sociedade de forma igual.
A Constituição ao dispor que a saúde pública se organiza em rede integrada, regionalizada e hierarquizada em nível de complexidade crescente já definiu o modelo assistencial do país. Um modelo piramidal, devendo a assistência à saúde ser organizada por níveis de atenção crescentes: da atenção primária (base da pirâmide) à atenção terciaria ou de maior densidade tecnológica, o topo da pirâmide.
Entretanto, falamos e escrevemos uma coisa e na prática fazemos outra. Um exemplo. Se a assistência à saúde deve ter uma base fincada na atenção primariaordenadora do sistema de referência para os demais níveis de complexidade de serviços, como explicar a criação de serviços de regulação isolados da atenção primáriaNão seria o caso de dotar a atenção primaria de competência estrutural para ordenar as referências, além, é lógico, de dotá-la de estrutura e recursos suficientes para agir como filtro e ser resolutiva em mais de 80% dos casos, como ocorre em países com a Espanha e Inglaterra?
Até hoje não cumprimos a Constituição, uma vez que não organizamos o sistema em rede de atenção à saúde, regionalizada e hierarquizada. Vivemos uma dualidade: um sistema posto na Constituição e na lei e um sistema imposto por práticas inampianas, herança do antigo Sistema Nacional de Saúde (Lei 6.229/75), revogado pela Lei 8.080/90 que unia os serviços públicos e privados num só sistema. No SUS o privado não o integra, apenas podendo complementá-lo, mediante contrato ou convenio.
Além do mais, bem sabemos que os custos da saúde nunca diminuem, sendo sempre crescente ante os avanços tecnológicos, o aumento da expectativa de vida associados a uma política de consumo das indústrias da saúde, que hoje já visa à pessoa sã como consumidora de produtos e serviços de saúde, criando-se falsas prevenções, necessidades e cura.
Temos que refletir por que não estruturamos, até hoje, o modelo de saúde imposto pela Constituição que é o centrado na atenção primária, lembrando que a Constituição impõe à Federação um sistema de saúde organizado em níveis de complexidade de serviços. Por que um atraso de mais de 21 anos na criação de verdadeiras redes integradas de atenção à saúde e as regiões de saúde?
Por isso defendemos que:
a) a atenção primária seja de fato estruturada para ser a ordenadora do SUS e resolutiva em 85% dos casos.
b) o Poder Público realize as necessárias reformas no âmbito da Administração Pública para garantir melhor governança ao sistema de saúde.
c) práticas federativas sejam de fato aplicadas nas questões tributárias para garantir maior autonomia financeira aos Estados e Municípios, evitando-se um modelo de transferência de recursos.
d) seja reavivado e fortalecido o papel do Estado como coordenador estadual e regional do SUS.
e) a sociedade se aproprie e participe dos destinos da saúde, e se for necessário, avalie a possibilidade de se pagar mais impostos para a saúde mediante controles sociais efetivos.
 f) o Poder Público incorpore processos que permitam ao cidadão um verdadeiro acompanhamento e controle dos serviços públicos, mediante serviços de permanente escuta do cidadão e incorporação de suas opiniões;
b) o ressarcimento pelas operadoras de planos de saúde, previsto em lei, seja de fato realizado quando seus usuários usam o sistema público de saúde.
Para responder a pergunta se a saúde que queremos é a saúde que podemos, precisamos, primeiramente, saber que saúde queremos e se esta saúde cabe na riqueza do país e, então, implantá-la verdadeiramente, com participação de  todos, Estado e Sociedade conjuntamente.

[1] http://www.who.int/whosis/whostat/ES_WHS2011_Full.pdf
[2] http://www.who.int/whosis/whostat/ES_WHS2011_Full.pdf
[3] A grosso modo, a conta que podemos simular é: US$1.000,00 x 200 milhões de pessoas = por volta de 350 bilhões de reais/público.


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