Endereço: Rua José Antônio Marinho, 450
Barão Geraldo - Campinas, São Paulo - Brasil
Cep: 13084-783
Fone: +55 19 3289-5751
Email: idisa@idisa.org.br
Adicionar aos Favoritos | Indique esta Página

Entrar agora no IDISA online

PETER PAN E A 14ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE

Flavio Goulart (Médico; Doutor em Saúde Pública pela ENSP/FIOCRUZ; Docente aposentado da Universidade de Brasília – Goulart.fa@gmail.com)
 
A 14ª Conferência Nacional de Saúde finalmente aconteceu. Três a quatro mil pessoas foi o número estimado de seus participantes, o que, por si só, sem dúvida, já é um fato expressivo. Quem esteve no grande Centro de Convenções de Brasília nos primeiros dias de dezembro não deixou de perceber o entusiasmo daquela gente e também o caráter festivo de tudo o que acontecia lá. Aliás, festa é bom; festa em torno da saúde, melhor ainda – isso não é nenhum problema.
 
Para além da festa, o manifesto (“Carta”) derivado do evento merece alguma consideração. Impossível deixar de reconhecer que o texto tem legitimidade, reflete um estado de espírito que deve ser valorizado e não deixa de trazer algumas boas idéias relativas à saúde dos brasileiros. Alguma crítica, todavia, se faz necessária, pois há um tanto de impropriedades e, principalmente, de redundâncias e falta de foco no texto.
 
Para começar, as palavras de ordem, repetidas á exaustão: “todos usam o SUS: SUS na Seguridade Social! Política Pública, Patrimônio do Povo Brasileiro Acesso e Acolhimento com Qualidade: um desafio para o SUS”. Como slogan, é extenso, redundante...  Quem aspira tantas coisas corre o risco de perder o foco e não ter clareza sobre o que quer e o que se faz necessário, realmente.
 
E prossegue o manifesto, digno de uma passeata – ou seria um happening? – dos anos 60: “punhos cerrados e palmas, cenhos franzidos e sorrisos”. Poético, sem dúvida! Tanta conclamação e ênfase não deixam de ser válidas, mas já a esta altura da leitura dá pra pensar se a situação atual da saúde no País não exigiria mais do que poesia, palavras de ordem e boas intenções. Qualquer leitor mais crítico, principalmente se não fizer parte da militância, mas sim da cidadania como um todo, quer ver numa conferência nacional de saúde propostas coerentes e factíveis – será que elas, de fato, foram ali geradas?
 
Com efeito, não adianta apenas defender o que já está consagrado na Constituição e nas Leis do SUS. Isso a carta reitera com insistência, se não com exaustividade: saúde como direito de todos, dever do Estado, parte das políticas de Seguridade Social, necessariamente fortalecida como política de proteção social. E mais: descentralização, atenção integral, participação da comunidade, universalidade, integralidade, igualdade, equidade no acesso etc. Coisas que cada pá de cimento do concreto do Eixo Monumental já conhece de cor... Melhor do que isso, só se transmutarem em políticas concretas.
Eis que de repente parece que a poesia e as palavras de ordem abrem passagem para algo mais substancioso, traduzido pela frase: “É necessário transformarmos o SUS previsto na Constituição em um SUS real”. Ótimo, já não era sem tempo! Mas cabe a pergunta, que não deve ser tomada como argumento de uma advocacia diabólica: o que seria, de fato, este SUS “real”? Vamos ver se mais adiante chegaremos a algum esclarecimento a respeito disso...
 
Enquanto o “SUS real” não se anuncia, assistimos a um desfile de afirmativas bombásticas, defendendo propostas do tipo: “desenvolvimento sustentável”; “um projeto de Nação baseado na soberania”; “crescimento sustentado da economia”; “fortalecimento da base produtiva e tecnológica para diminuir a dependência externa”; “valorização do trabalho”; “redistribuição da renda”; “garantia dos direitos constitucionais à alimentação adequada, ao emprego, à moradia, à educação, ao acesso a terra, ao saneamento, ao esporte e lazer, à cultura, à segurança pública, à segurança alimentar e nutricional”. E, de quebra, a consolidação da democracia... Alguém se declararia contra algo assim? Pois bem: há quatro ou cinco parágrafos na Carta destinados apenas a estas afirmativas, reiteradas. Tudo bem, conforme o adágio latino, o que abunda, não prejudica. Mas, e o SUS real?
 
As preocupações com a saúde dos brasileiros não deixam de marcar presença. Mas há que indicar, um a um, seus grupamentos: mulheres, crianças, idosos, população negra, população indígena, comunidades quilombolas, populações do campo e da floresta, ribeirinha, LGBT, pessoas em situação de rua, pessoas com deficiências, patologias e necessidades alimentares especiais. Ninguém mais? A lista é interminável, contempla até os ciganos... Mas o que seriam, afinal, as tais “populações do campo e das florestas”?
 
Sempre cabe a pergunta: para o almejado “SUS real” seria necessário nomear todos, assim de forma tão individualizada e reiterada? Uma frase mais adiante parece esclarecer um pouco mais a questão: “a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra deve estar voltada para o entendimento de que o racismo é um dos determinantes das condições de saúde”, fazendo ainda menção às “Políticas de Atenção Integral à Saúde das Populações do Campo e da Floresta e da População LGBT”. Chegamos ao ponto crucial: a 14ª Conferência, assim como muitos dos eventos recentes da área da saúde, teve sua tônica marcada pela participação diferenciada de grupos militantes, de diversas causas, colorações, religiosidades, orientações...
 
O problema da ótica militante não é outro, se não e mais uma vez, o da perda de foco. Tanta especificação não poderia, com vantagens, ser generalizada mediante uma expressão como “os excluídos, os sem saúde”? Até porque existem pessoas – muitas! – que não pertencem a nenhum dos segmentos referidos entre os acima e que também carecem de uma boa saúde. E afinal, saúde não seria “direito de todos’? A carta não deixa por menos ao afirmar que a 14ª representa “esforço de garantir e ampliar a participação da sociedade brasileira, sobretudo dos segmentos mais excluídos”. Mas o bom senso, praticado saudavelmente para além das fronteiras do mero pensamento desejoso, pode perder o amigo, mas não a chance de questionar: será que é isso mesmo?
 
E não poderia faltar a conclamação pela regulamentação da Emenda Constitucional 29, 10 anos depois. Uma década já, quem diria... Passaram os governos, é bem verdade que a maioria deles da mesma orientação política e, no entanto, nada aconteceu de substancial em relação a tal matéria. Será que existe alguma caveira de burro enterrada sob as cúpulas do Congresso Nacional ou debaixo da rampa do Palácio do Planalto?
 
Mas sobre a famigerada EC 29, já é hora de nos indagarmos: o que a impede de vigorar, de fato? Não seria o caso de nos determos sobre sua suposta viabilidade? Quem sabe buscar outras fórmulas de financiamento? Temos que admitir que, nisso, o documento procura avançar, ao levantar a possibilidade da criação de fontes alternativas de recursos, além da já conhecida e condenada taxação da movimentação interbancária, também conhecida como CPMF – ou variações disso. Está na Carta da 14ª a proposta de se instituir um percentual sobre os royalties do petróleo para a saúde. Quem sabe o pré-sal é a salvação do setor saúde e não apenas dos estados que “possuem” reservas de petróleo em seu litoral?  Sinceramente, para mim, o mar pertence à Nação, não a cada província onde ele, por acaso, se espraia...
 
Tem um tema que parece ser particularmente querido dos participantes da Conferência. Aliás, não só desta, recente, como das demais e também das pautas cotidianas dos conselhos de saúde pelo Brasil a fora. Trata-se da pujante presença de questões ligadas ao mundo do trabalho. São temas diversificados, como saúde do trabalhador, redução de carga horária, melhores oportunidades de progressão, planos de carreira, fim da precarização do trabalho etc. Isso, por um lado, é um avanço, pois não seria possível conceber a saúde funcionando perfeitamente com seus trabalhadores abandonados e vilipendiados. Mas há também o reverso da medalha, qual seja que isso traduza apenas a ação de um mais um tipo específico de militância, a dos sindicalistas da saúde, nas atividades das conferências e outros fóruns de participação social. Mas não sejamos impiedosos, isso certamente faz parte da democracia. A questão é de balanceamento entre o que é aspiração de segmentos mais organizados e militantes e o desejo e a necessidade, muitas vezes ocultos, do restante da sociedade.
 
Gestão 100% SUS é outra proposta mencionada na Carta. Para dizer pouco, muito vaga. O que seria isso? Que ela deva ser sempre estatal? Ou haveria outras possibilidades aceitáveis, de combinação de instrumentos públicos na gestão, não necessariamente dentro da fórmula “8112/8666”? Este é um campo de permanente polêmica no movimento dos trabalhadores de saúde, embora nos segmentos da sociedade como um todo o assunto não adquira tanta relevância. Usuário quer ver o SUS funcionando, não importa como isso é feito. Para o cidadão comum, a estabilidade no emprego talvez valha menos que o compromisso de quem pode ser demitido se não fizer a coisa certa. A conferir... As águas de tal debate estão virulentamente contaminadas pelas iniciativas de estados, como São Paulo, onde sempre os governos são acusados de privatizadores da coisa pública. Mas mesmo ali existem estudos sérios, não necessariamente “militantes”, que mostram que em algumas medidas há sucesso, tanto para os trabalhadores como para os usuários. Há uma cortina de fumaça que impede a boa visibilidade dos argumentos, entretanto. A questão que a 14ª CNS parece não ter abordado é a da existência de possibilidades de mudanças e avanços em relação a concepções mais radicais relativas à coisa pública, como já acontece em alguns estados governados, não pelo PSDB, mas pelo próprio PT, como Bahia e Sergipe.
 
A Carta se encerra de modo incisivo, ao exigir simplesmente a “implantação de todas as deliberações da 14ª Conferência Nacional de Saúde”. Já lemos isso nos muros parisienses, em 1968: “sejamos realistas, exijamos o impossível!”. Como palavra de ordem, é perfeita, mas como possibilidade concreta, que o confirme o envolvente Ministro Padilha, a conversa é bem outra.
 
No meio da vacuidade, um ponto fora da curva: a proposta de serviço civil obrigatório. Salve, pelo visto há também pontos de contato com a realidade na Carta!
 
É hora de voltarmos à indagação relativa ao “SUS real”, que deve surgir da transformação do “SUS constitucional”. A expressão “SUS real” é adequada, embora se possa questionar se foi exatamente o significado sobre o qual os militantes se debruçaram na ocasião. “SUS real” lembra, inescapavelmente, “socialismo real”, ou seja, aquilo que os partidos comunistas de todo o mundo fizeram das brilhantes idéias de Marx, coisificando-as e deturpando-as, na maioria das vezes. Visto por tal ângulo, “SUS real’ deveria ser algo que deveríamos rejeitar, não aspirar...
 
Poderíamos, todavia, ver a questão sob ponto de vista diferente. O “SUS real” poderia ser, simplesmente, o ‘SUS possível”, ou seja, aquilo que pudemos construir dentro das injunções políticas, econômicas e culturais de um país como o Brasil. Se é tal o conceito utilizado na Carta, há que se comemorar certo avanço na discussão, pois não têm sido rara, entre alguns intelectuais brasileiros da área da saúde coletiva, um profundo desgosto relativo ao que teria sido feito das belíssimas idéias que orientaram a construção legal do SUS. Nestes escritos, a mensagem que se passa é de derrocada e necessidade de começar a construção de novo, voltar aos anos românticos da Reforma Sanitária ou coisa assim.. A idéia do “SUS possível” parece ter, portanto, vínculo mais forte com a realidade, pelo menos mais despojado de um saudosismo que parece não ter base histórica real. Aqui é forçoso lembrar da frase célebre de Voltaire sobre as leis e as salsichas...
 
Para encerrar, então... É sobre um “SUS possível” que os militantes presentes na 14ª CNS concentram suas energias, pelo visto. A construção está aí. Para de pé, mas aqui e ali é preciso reforçar suas estruturas e melhorar sua aparência. Auguramos que o relatório final, ainda em fase de preparação sob a batuta competente de Gastão Wagner, nos traga realmente indicativos adequados sobre tal reforma. É preciso escapar da redundância e da vacuidade. Isso foi o que pautou as conferências anteriores e representa um caminho equivocado.
 
As questões trazidas ao debate fazem parte da infância do SUS. Apegar-se a elas e não propor avanços nos remete à antiga lenda inglesa de Peter Pan, aquele personagem que se recusava a assumir sua maturidade, vivendo numa “Neverland” permanente. Que tal, enfim, se pudéssemos ver no relatório que está sendo elaborado menções significativas e objetivas aos reais problemas presentes e futuros do SUS? Exemplos não faltam, como: a solução do impasse de uma década relativo à EC 29 e, por extensão, da busca de novas fontes de financiamento para a saúde; a quebra dos preconceitos que ainda marcam o território da incorporação de lógicas de qualidade, eficácia e eficiência nos serviços de saúde, quase sempre vulgarizadas como “privatização”; a busca de alternativas para a expansão efetiva do mercado de trabalho em saúde, porém baseados em lógicas flexíveis que atendam ás demandas da realidade dos municípios brasileiros; a superação de máximas geradas em décadas passadas (dois exemplos: “todo poder aos municípios” e “o SUS deve oferecer tudo para todos”...) em troca de novos modelos fundados na regionalização, na formação de redes, na regulação assistencial.
 
Assim, quem sabe, Peter Pan, a fada Sininho, Wendy e o Capitão Gancho poderiam fazer parte apenas das fábulas infantis, não da participação social no SUS... Além do mais, o Brasil não é a Terra do Nunca.


Meus Dados

Dados do Amigo

Copyright © . IDISA . Desenvolvido por W2F Publicidade