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Trágica Sátira

Problemas de saúde de gente famosa, especialmente aqueles que põem à prova a abnegação, coragem e paciência dos doentes, testam simultaneamente a generosidade dos sentimentos de fãs, admiradores ou detratores, a compreensão sobre a patologia, terapia e o conhecimento sobre o sistema de saúde.  Em geral, ninguém tira nota máxima na prova, até porque alguns se interessam mais pelas reações às provações de seus afetos, outros às explicações dos especialistas ou à forma e qualidade do atendimento.  O adoecimento e tratamento do ex-presidente Lula também gerou várias narrativas a partir do mesmo evento.  A exceção à regra, na divulgação do episódio, foi o tom e conteúdo da polêmica sobre o atendimento ou não no SUS.  Tamanha foi a estridência do debate que os sentidos do SUS, quer como idéia abstrata de política universal, quer como serviços de saúde a serem utilizados ou não, ficaram mais nítidos.  Do ressentimento mesquinho de opositores, cuja experiência concreta de uso e adesão aos valores do SUS é no mínimo muito incipiente, restou um legítimo desafio político e ético. A pergunta que não pode mais ser contornada é: desistimos, na prática, da construção de um sistema universal de saúde?  Estamos rumando a passos largos para um sistema de saúde similar ao da África do Sul, onde 16% da população que tem plano de saúde consome 60% do total das despesas com saúde, ou não?
 
O que diferencia o Brasil de países em desenvolvimento com economias ascendentes não é a posse de poucos hospitais de excelência. Tal como ocorre por aqui unidades hospitalares bem equipadas e dotadas de corpo clinico de universidades prestigiosas não são apenas templos luxuosos e exclusivos de tratamento para celebridades políticas e artísticas. Desempenham objetivamente uma importante função na interligação entre profissionais de saúde com os centros internacionais de produção de conhecimento e em termos de atualização tecnológica. Alguns desses hospitais  integram o circuito do turismo médico,  no qual os preços de cirurgias plásticas, cardiológicas, ortopédicas, e de fertilização, entre outros procedimentos, podem ser cotados em diversos países tais como Brasil Índia, México e Tailândia.   
   
A singularidade brasileira é o SUS. A participação ativa na renovação tecnológica ditada pelos países produtores de equipamentos e insumos é um vetor a ser considerado e devidamente valorizado. Mas não deveria induzir a escrita da política de saúde com linhas tortas. Entre 2009 e 2010, houve crescimento da malha de serviços privados de saúde no Brasil e reforço dos investimentos em hospitais particulares. Na cidade de São Paulo, o fluxo do atendimento aos “turistas-pacientes” cresceu. Consolidaram-se esquemas assistenciais inovadores, mas excludentes. Em 2009, o valor estimado de uma internação nesses estabelecimentos de R$10.239,00 para a cobertura, no máximo, de cerca de três milhões de pessoas, foi muito superior ao pago pelo SUS, R$873,91.          
 
Sem planejamento adequado, as iniciativas para instalação de mais alguns hospitais “privado-filantrópicos” e privados voltados a um público seleto, em algumas cidades brasileiras, poderão modernizar o atendimento médico, mas intensificarão a iniquidade.  O crescimento do mercado de planos e seguros de saúde, não compensado por investimentos nos hospitais públicos, resultou na retração da rede hospitalar do SUS. Entre 2004 e 2009, a taxa de leitos por 1.000 habitantes diminuiu de 2,4 para 2,3. Os indicadores de oferta das regiões Norte e Nordeste, respectivamente 1,8 e 2,0 leitos por 1.000, persistem muito distantes do parâmetro de 2,5 a 3, definido pelo Ministério da Saúde em 2002.
 
O transplante da singular trama conformada por hospitais privados, universidades públicas e conexões com órgãos executivos locais e nacionais de uma determinada unidade da federação para contextos distintos é uma operação não recomendada para organizar e gerir serviços e sistemas de saúde.  Médicos e unidades assistenciais para a corte nem sempre demonstraram ser a única, ou a melhor, alternativa para o enfrentamento de problemas de saúde dos súditos, e até mesmo da realeza.  Um exemplo: a janela de tratamento para infarto agudo do miocárdio (o tempo adequado entre o início dos sintomas e a realização dos procedimentos para preservar o órgão) é de 2 a 4 horas. Para esses casos, o melhor médico e a melhor instituição de saúde não são aviões de carreira ou jatos particulares.  É preciso que o mapa da rede de serviços de saúde no Brasil se justaponha às necessidades de saúde de populações territorialmente localizadas. Consequentemente, a  dupla concentração espacial e econômica, do atendimento hospitalar nas mãos de quem sabe fazer mais com mais recursos – na realidade, com muito mais receitas, inclusive provenientes de aportes públicos e seleção de riscos–não é a solução para o SUS.
 
É mais do que sabido que o colóquio entre pacientes e médicos que pertencem ao mesmo “meio” é fácil e fluido em função de uma pressuposta correspondência entre hábitos mentais e lingüísticos. A hierarquia social crescente é proporcional à intensidade dos vínculos de amizade entre os mais notórios profissionais de saúde e seus clientes. Nada muito diferente de outras tantas relações características de sociedades desiguais.  Com o devido afastamento entre as relações pessoais e as responsabilidades públicas as medicinas das cortes ocupam espaços restritos na definição das políticas de saúde. A inversão ocorre quando uma parcela da medicina privada se instala na corte e passa a ditar regras para a organização do conjunto do sistema de saúde, favoráveis à expansão de seus nichos de mercado e tendentes ao aprofundamento da estratificação e exclusão. Cria-se então, desde o borramento das fronteiras entre público e privado, uma barreira adicional ao debate político e ético. E, o punhado de frases de efeito, postas em circulação para justificar favorecimentos a determinados grupos e interesses termina por compor uma trágica sátira.             
Ligia Bahia
Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro
ligiabahia55@gmail.com.br

 



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