Tese sobre critérios de uso e seleção de embriões em pesquisas com células-tronco rende três prêmios a cientista mineiro e reacende debate sobre o polêmico tema.
» Thaís Pacheco
Belo Horizonte - Uma tese de doutorado feita por um mineiro já lhe rendeu três premiações: o Grande Prêmio da Universidade Federal de Minas Gerais (UFGMG) de teses, na área de ciências humanas e sociais; o Prêmio Capes como melhor tese de filosofia do Brasil, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes); e o Grande Prêmio Capes, em toda a área de ciências humanas. Como fruto dessa última premiação, Lincoln Thadeu Gouvêa de Frias ganhou uma bolsa de pós-doutorado, a ser iniciada em breve. O pesquisador concluiu em 2010 seu doutorado apresentado ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, cujo assunto é polêmico: a ética do uso e da seleção de embriões.
Não é à toa que o tema seja delicado: somente no Brasil, 20 mil embriões estão congelados em clínicas, onde casais ou mulheres solteiras fazem 30 mil tratamentos para engravidar anualmente. Calcula-se que, no mundo, hoje, 5 milhões de pessoas são fruto da reprodução assistida. E o sonho de ter um filho não é barato: um tratamento de fertilização in vitro pode sair por até R$ 30 mil.
Em seu estudo, Frias abordou o uso e a seleção de embriões na pesquisas de células-tronco e o diagnóstico genético pré-implantação, o DGPI, utilizado nas fertilizações in vitro. O pesquisador fez um recorte no estudo para citar apenas embriões de até 14 dias, que, segundo ele, é um conjunto de células indistintas, "longe de ter qualquer coisa parecida com sistema nervoso, como sentir dor ou se dividir para se tornar gêmeos."
De acordo com o presidente da Associação Brasileira de Reprodução Humana (ABRH), Artur Dzik, 14 dias é um tempo bom para a análise filosófica. "Do ponto de vista prático, temos tecnologia para cultivar o embrião no máximo por seis ou sete dias. A gente tem o conceito da vida embrionário quando ele se desenvolve", define Dzik, que é ginecologista e especialista em reprodução humana em uma clínica de São Paulo.
É o significado de "vida" uma das questões levantadas por Frias. "Apesar da pesquisa científica significar a morte de alguns embriões, ela é justificada basicamente porque não faz sentido atribuir direito de vida a eles", justifica o doutor, que tentou se distanciar de argumentos que partiam de crenças religiosas. "Falar que os embriões têm direito à vida porque pertencem à espécie humana não é bom por uma série de razões. Quando vemos filmes como Avatar, em que eles não são humanos, começamos a respeitá-los quando demonstram autonomia, autocontrole, capacidade de respeitar interesses dos outros, características que nos tornam pessoas", exemplifica o filósofo.
De acordo com Lincoln, antes de 14 dias, um embrião ainda não tem as características que fazem com que o seres humanos sejam importantes. Mas aí ele esbarra em outro argumento, o da potencialidade daquele embrião de se tornar um ser humano. "Em nenhuma outra coisa a gente analisa potencial. A grosso modo, só porque o Atlético tem potencial de ser campeão, você vai escrever o nome dele na taça?", rebate. Atualmente, no Brasil, não há legislação sobre esse tipo de pesquisa e uso, embora a ciência nacional esteja em pé de igualdade com países desenvolvidos no quesito reprodução assistida, com grandes e importantes clínicas atuando na área há mais de duas décadas. Já a pesquisa de células-tronco ainda está em fase experimental.
Sobre o tema, Dzik dá a opinião da ABRH: "Melhor não ter legislação que ter má legislação. Temos nosso Conselho Federal de Medicina (CFM), do qual tiramos a normatização ética para a reprodução. Nos valemos disso: não pode desprezar embrião, mexer geneticamente ou escolher o sexo. Já a situação de usar embrião para pesquisas de células-tronco não é decisão do médico, mas da sociedade", afirma.
Para a reprodução assistida, há a regulamentação baseada no Código de Ética do CFM e as normatizações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre o destino dos embriões não usados na fertilização. "Como não há leis, temos de seguir esse código de ética médica. Atualmente, o médico deve intervir o mínimo possível. O que ele deve fazer é a fertilização, propiciar o encontro do óvulo com o espermatozoide. Não é para escolher o sexo do bebê a gosto do paciente, a menos que haja indicação de problemas genéticos ligados ao sexo", resume Marco Melo, ginecologista obstetra e especialista em reprodução humana da Clínica Vilara, em Belo Horizonte.
Para a fertilização in vitro, alguns embriões são gerados, mas poucos usados. Depois do procedimento, os demais embriões vão para um congelador. "O Código Civil, pela Anvisa, e o Código de Ética do CFM impedem o descarte. Há duas opções: os embriões congelados até 2008 podem ser doados para pesquisas de célula-tronco e os demais, para adoção assistida, em que outro casal os utiliza", explica Melo. Pacientes que não desejam nenhuma das duas opções devem pagar uma taxa anual de manutenção para a clínica onde os embriões estão congelados.
É nesse ponto que a tese de Lincoln entra em ação novamente. "Durante o sexo normal, sem reprodução assistida, dois terços dos embriões morrem. Se a gente realmente se preocupa com esses embriões em potencial, deveríamos investigar tecnologias para evitar essa perda. Outro teste bom é fazer o seguinte questionamento: se uma clínica de fertilização pega fogo e em uma sala há mil embriões e na outra um bebê e você só tem chance de salvar um deles, qual você salvaria?" provoca.
Lincoln diz que alguns argumentos têm muito poder retórico, mas descartam o que é racional e razoável. "Essa discussão do uso de embriões é pautada pela pergunta de onde começa a vida. Até onde sabemos, no sentido biológico, a vida só começou uma vez, há 4,5 bilhões de anos, quando a primeira mólecula se replicou. O que cabe saber é quando começa a ser um indivíduo que tenha seus direitos respeitados", argumenta o filósofo.
Transmissão de doenças
Quando o especialista em reprodução humana têm acesso aos embriões, ele tem muitas informações. Ainda não é possível a ciência definir cor de pele ou dos olho. Mas é possível, sim, saber o sexo e analisar os 23 pares de cromossomos que os humanos têm, determinando qual embrião pode gerar uma pessoa com doenças. Ainda assim, esse conhecimento não é todo usado. "Fazemos a análise quando há indicação, ou seja, quando o paciente tem histórico de alguma doença genética. Bebês podem ter 15 mil doenças, então, não vou analisar todas, apenas as que os pais têm conhecimento. Até porque a técnica do DGPI não é acessível para todo mundo, pode custar até R$ 30 mil", explica o ginecologista Selmo Geber, especialista em reprodução humana e diretor regional da rede latino-americana de reprodução assistida. Geber lembra que a técnica do DGPI foi desenvolvida para evitar a transmissão de doenças de alto risco, como hemofilia e fibrose cística.
"Essas discussões são muito polarizadas e costumam despertar ódio. Por isso, é importante ressaltar a conclusão final. Não digo que o embrião é descartável e não tem significado nenhum, mas merece respeito e, por isso, não deve ser usado para qualquer fim", ressalta Frias. Ele lembra que fala também de células-tronco para desenvolver terapias capazes de reverter problemas como mal de Alzheimer e de Parkinson, e fazer tetraplégicos voltarem a andar. "E no caso do DGPI, a importância é tentarmos evitar que as pessoas tenham doenças devastadoras. A síndrome de Lesch-Nyhan, por exemplo, faz a criança morrer por volta dos 3 anos, depois de muito sofrimento", cita Frias.
"Até onde sabemos, no sentido biológico, a vida só começou uma vez, há 4,5 bilhões de anos, quando a primeira mólecula se replicou" Lincoln Frias, filósofo.
Ponto Crítico/ Reprodução assistida
É necessária uma discussão ética sobre o uso de embriões?
Selmo Geber
Ginecologista
não "O debate está bem resolvido no Brasil, que tem tecnologia para esse tipo de tratamento. A renovação de nosso código de ética foi moderna. Estamos melhor que antes. Não dá para discutir questão ética da medicina com a população não médica. Quem regula, eticamente falando, é o Conselho Federal de Medicina, pois são procedimentos médicos. Em congressos, todos participam. Mas eles não podem decidir porque não fazem parte da sociedade médica."
Alessandro schuffner
Ginecologista
sim "Há o ponto de vista ético geral e o do controle de medicina. Meu código ético, do Conselho Federal de Medicina, é diferente daquele do sociólogo ou do biólogo. Atualmente, não há discussão. Deveria ter com todos os envolvidos. Há discussões em cada subgrupo, mas ninguém reuniu todo mundo. Acho que a sociedade pede isso. Os geneticistas, por exemplo, não estão envolvidos no debate dos médicos, eles são ainda mais abertos a ele."
R$ 30 mil pode ser o preço de uma fertilização in vitro
20 mil embriões estão congelados e armazenados em clínicas brasileiras
34 anos se passaram desde que nasceu o primeiro bebê de proveta no mundo
5 milhões de pessoas hoje, no mundo, são fruto de reprodução assistida
30 mil tratamentos são realizados por ano no Brasil
200 clínicas de reprodução estão instaladas no Brasil