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Judicialização da saúde: causas, consequências e ação - por Lenir Santos

Judicialização da saúde: causas, consequências e ação - por Lenir Santos
 
Fonte: Empório do Direito
 
Colunas e ArtigosHot Empório
 
Por Lenir Santos – 23/06/2016
 
A partir de 2003[1], a judicialização da saúde começou a tomar fôlego, ocupando hoje lugar de destaque nas discussões do direito à saúde no país, tendo em 2009 sido realizada a primeira audiência pública pelo STF (STA 175) que definiu alguns parâmetros, com o CNJ editando Recomendações, como as que dispõem sobre a criação de núcleos de apoio técnico aos julgadores, o fórum de saúde, as comissões técnicas. Contudo, se se avançou nas discussões entre o Judiciário e Executivo, que hoje se sentam à mesa para debaterem a garantia do direito à saúde e seus limites, não se avançou na desjudicialização.
 
Os seus custos têm sido crescentes e atingem a casa de mais de dois bilhões de reais, sendo que muitas decisões (80% sobre medicamentos), vêm transformando o SUS numa farmácia pública[2] ao arrepio de suas ações e serviços organizadas de forma sistêmica e integrada, exigente da articulação interfederativa, não cabendo atuação isolada, como se o SUS fosse fornecedor de produtos, insumos e medicamentos.
 
A causa primeira da judicialização é a inadequação dos serviços públicos de saúde às necessidades da população. Entretanto essa causa principal deu ensejo a caronas e atalhos oportunistas[3] que tomaram corpo e hoje se confundem e se misturam com as inadequações do sistema. Ao seu lado, vicejam interesses de indústrias farmacêuticas na garantia de mercado sem registro ou no atropelo de etapas processuais, como a própria pesquisa clínica; há interesses de advogados, médicos e laboratórios; reserva de mercados para medicamentos onerosos em detrimento dos mais baratos dentre outros.
 
Por outro lado, a falta de formação em direito sanitário pelos operadores do direito, a ausência de varas especializadas em saúde, dado o volume das ações que somam 200 mil; as incompreensões quanto à complexa organização e funcionamento do SUS; o alargamento do conteúdo do direito à saúde em razão de vácuos legislativos que devem definir a integralidade da atenção à saúde, como é o caso da Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (Renases) não ajudam a diminuição da judicialização, pelo contrário, contribuem para o seu aprofundamento.
 
A integralidade da assistência à saúde, definida no inciso II, do art. 7º da Lei 8080, precisa de urgente alteração para vincular-se à Renases e Rename; e a RENASES, por sua vez, precisa ser editada, depois de pactuada com o Conselho Nacional de Saúde (sociedade) e entre os gestores da saúde, cabendo suas atualizações à Conitec. Enquanto for possível autorizar pessoas para se tratar no exterior; obter medicamento sem registro; procedimentos onerosos que podem ser substituídos por outros mais econômicos, o SUS sofrerá revezes em sua organização sistêmica e igualitária.
 
Pesquisa sobre as demandas judiciais e concessões de liminares que permitam conhecer o que é justa reivindicação e o que é incúria administrativa seria muito oportuna para orientar os gestores da saúde e o Poder Judiciário administrativamente. Reforçar e valorizar a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia em Saúde (Conitec) é outra medida relevante. Esse órgão do Ministério da Saúde deve ser respeitado como incorporador técnico-científico no país, que também avalia custo-benefício, não se podendo aceitar outra via, exceto se houver abuso em sua atuação. Protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas atualizadas, também são pontos essenciais, bem como as evidências técnico-científicas dos medicamentos, procedimentos e tecnologias em relação ao benefício produzido.
 
A incorporação de tecnologia em saúde prescrita pelo médico e concretizada pelo judiciário ao arrepio da Conitec, fere o princípio da igualdade prevista no art. 196 da Constituição e o disposto na lei 8080. Não se pode incorporar tecnologia a ser garantida a uma única pessoa, sob pena de ferir o princípio do atendimento igualitário, além de não caber ao médico analisar custo-benefício, obrigatório, mas que somente pode ser feito pela Conitec. O Decreto 7.508, de 2011, determina em seu art. 28, como devem ser prescritos os medicamentos no SUS, mas também nem sempre são respeitados pelos médicos e pelo Judiciário.
 
Outro relevante ponto a ser considerado é a forma organizativa e o funcionamento do SUS. O SUS não é uma porta aberta sem regulamentação. O SUS, como qualquer outro sistema se pauta por diretrizes e bases operativas, organizando-se em região de saúde, lócus da garantia do direito à saúde. É na região de saúde que se fixam metas regionais, em acordos interfederativos, que pactuam as responsabilidades dos entes na região de saúde. Esse acordo, conforme disciplinado no Decreto 7.508, de 2011, é o contrato organizativo de ação pública da saúde (COAP), que fixa as responsabilidades dos entes na região de saúde quanto à execução de serviços, seu financiamento regional e a avaliação de resultados.
 
A responsabilidade dos entes federativos na região de saúde é sistêmica, interligada, interdependente visando cumprir o art. 198 da Constituição, o art. 8º da Lei 8080 e o Decreto 7.508, de 2011 no tocante à organização das ações e serviços do SUS, de modo hierarquizado quanto à complexidade de serviços, sendo sua principal porta de entrada, a atenção primária em saúde, respeitada as portas especiais, como a urgência e emergência.
 
A responsabilidade solidária determinada pelo Judiciário desrespeita a integração dos serviços dos entes federativos e a interdependência operativa. A forma de organização do SUS não permite a um município de pequeno porte a existência de certos serviços, como transplante e outros atos de maior complexidade. É necessário refutar o que não é sistêmico no SUS, a via pela qual os entes federativos se movem na região de saúde e interregiões. A responsabilidade solidária não sistêmica rompe com a definição estrutural do SUS (caput do art. 198 da Constituição) e isso precisa ser revisto pelo Judiciário.
 
Essas questões vêm sendo debatidas nos últimos anos e precisam sair do papel para contribuir para a desjudicialização da saúde. A judicialização será justa se atender às necessidades de saúde das pessoas dentro dos regramentos do SUS (igualdade de atendimento, Renases, Rename), coibir abusos, retrocesso ou constrangimento da efetividade do direito à saúde, dentro de parâmetros de equidade. Há luz no fim do túnel, mas não temos enfrentado essa travessia adequadamente, por isso continuamos a discutir muito o que já sabemos.
 
A recente decisão liminar do STF, na ADI 5501 (suspensão da Lei 13.29, de 2016, da fosfoetalolanima), inovou algumas medidas, ao determinar que não se pode prescindir do registro sanitário de medicamento, sob pena de descumprimento do dever estatal de redução do risco de doenças (art. 196 da CF) e da obrigação de o Poder Publico zelar pela segurança e qualidade dos produtos em circulação. A busca pela cura de enfermidades não pode se desvincular do correspondente cuidado com a qualidade das drogas distribuídas aos indivíduos mediante crivo científico; o registro é condição para o monitoramento da segurança, eficácia e qualidade terapêutica do produto, sem o qual a inadequação é presumida. Dispôs, ainda, não caber ao Congresso Nacional viabilizar, por ato abstrato e genérico, a distribuição de qualquer medicamento, sem os estudos clínicos correspondentes, em razão da ausência de elementos técnicos assertivos de viabilidade do medicamento para o bem-estar do organismo humano. Essa decisão poderá mudar o entendimento de concessão de medicamento sem registro na ANVISA, o que será um avanço jurisprudencial.
 
Por fim, são mais de 13 anos de judicialização da saúde e um gasto de bilhões de reais aplicados fora dos parâmetros e planejamento sanitário. Muitas causas são conhecidas e de fato são falhas do SUS; outras, caronas, abusos de terceiros e interpretação inadequada da lei. A responsabilidade solidária, que contraria o princípio constitucional de integração e atuação sistêmica dos entes federativos, bem como a ausência da Renases atualizada, a clareza na definição legal da integralidade, são medidas que precisam de ação concreta, sob pena de a Judicialização não retroceder e não corrigir abusos de pessoas inescrupulosas e outras falhas que o próprio sistema encerra. É preciso agir de modo urgente e criterioso em nome da justiça que as ações judiciais deveriam garantir.
 
Notas e Referências:
 
[1] Ante a falta de limites nas pretensões dos litigantes e nas decisões judiciais garantindo a todos, tudo o que um médico prescreve, como se o SUS fosse um balcão de produtos e insumos, um caixa financeiro sem fundo, um sistema sem regulamentação e controle, escrevi um artigo sobre os contornos jurídicos da integralidade da assistência à saúde (2004), chamando a atenção para o conteúdo do direito à saúde que deve se cercar de parâmetros nessas pretensões ante o rumo indiscriminado que pode tomar.
 
[2] Anos atrás publiquei o artigo intitulado “O SUS não é uma farmácia pública”. Santos, Lenir. Acesso: www.Idisa.org.br
 

[3] Ver matéria publicada na Revista Época sobre o desperdício de 9,5 milhões de reais em decorrência de fraude na saúde, da jornalista Cristiane Segatto, de 18.6.2016. 



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