Gastão Wagner de Sousa Campos
Para Machado de Assis os gênios abrem picada e os comuns dos mortais as trilhamos David Capistrano da Costa Foi um desbravador, passou a vida aventurando caminhos diferentes do habitual. O fogo que o impulsionava e que também o consumia era a vontade mudar o mundo. Transformar a terra em um lugar em que o homem e a mulher não estivessem submetidos à exploração ou à dominação. Davi foi um gênio da luta popular, acreditava na vida, na alegria, no prazer; e, como é peculiar aos criadores, não media os limites com a mesma régua que do bom senso. Ele tripudiava bom senso, ria-se dos que não ousavam remar contra a maré dos que não almejavam o invisível. Foi um especialista em tomar o céu de assalto. E mais, ele conseguia envolve um monte de gente em seus projetos revolucionários.
Entusiasmava a muitos com se sonhos concretos, com sua habilidade de enxergar possibilidades de mudança onde somente enxergávamos mesmice. Um dirigente, um organizador, um líder. Eu o conheci em 1977, o Zé Rubens nos apresentou. Naquela época ele estava envolvido com a criação do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (CEBES) com a revista Saúde em Debate. Rodou meio Brasil buscando apoio, sócios, para a nova e entidade que desempenharia papel tão relevante na articulação do movimento sanitário brasileiro .
Além disto, ele também assumia a coordenação de um programa de saúde pública no Vale da
Ribeira/SP. Agentes de saúde reformulação das práticas sanitárias, prevenção e participação
comunitária, tudo isto naquela época, há 23 anos! ocasião, ele atraiu médicos, enfermeiros e
populares de várias regiões do país, pessoas que se integraram à Saúde Pública para nunca mais
abandoná-la. Eu fazia o Curso de Saúde Pública da FSP /USP , escolhi fazer meu estágio prático
com o David, no Vale. Lá ele a começou a namorar a Haidê, futura mãe de três dos seus quatro
filhos biológicos. Sim, porque o David funcionou também como pai postiço para um montão de mar
gente, era acolhedor, interessava-se pela história pessoal dos amigos, sustentava-nos e nos
impulsionava a ousar fazer. De vez em quando, brigávamos , feio, ele era exigente, cheio de
idéias próprias, mas estimulava os filhos e companheiros à liberdade, à autonomia, e uma coisa
nem sempre se encaixava com a outra. Mas essas desavenças eram risco na água, passavam logo.
Como se não bastasse tudo isto, o David também cismara de reformular o movimento comunista ,
queria transformar o Partidão, combinar socialismo com democracia, a influência seus dos
italianos, do pai dele, sei lá, era uma de suas obsessões. Me lembro de uma sexta-feira, ele me
convidou para ajudá-lo a ir distribuir o jornal do partido líder. entre militantes. Era a época
da ditadura, o jornal fora editado na Europa, fotografado e viera com para o Brasil em
negativos. Aqui fora novamente datilografado, e impresso e estava sendo distribuído. Eu me
prontifiquei, claro, David, que bairros eu assumo?". "Não, me respondeu ele, falo de Londrina,do
Florianópolis, Porto Alegre, e algumas outras cidades do sul!'. "Em um fim de semana?" , me
ama espantei. "É, consigo um carro emprestado, vamos. fomos, o David era assim. Na viagem, ele
ainda aproveitou para acertar umas coisinhas do CEBES.
Segunda-feira estávamos de volta à São Paulo, trabalhando normal.
O David sofreu muito com a derrocada do socialismo. Muito; na carne. Antes ele já desistira do
movimento comunista tradicional Em começos dos oitenta ele aderiu ao Partido do Partido dos
Trabalhadores. Na ocasião ele me confessou, "o projeto do PT ainda é confuso mas São eles que
estão com o povo e com a mudança social, e não estas outras organizações de esquerda que
passaram a viver em
função de si mesmas. De qualquer forma, ele sofreu com isto. A queda do muro e a ruína da URSS
foi outro golpe duro; no fundo, ele guardava a esperança de uma reforma de tudo aquilo. Ia Na
saúde pública, ele, depois do Vale da Ribeira, pintou e bordou lindos projetos: o Centro de , a
Saúde de Vila Prudente em São Paulo, a secretaria de saúde de Bauru/SP, de Santos/SP, a saúde
da família em São Paulo, a saúde materna no Ministério da Saúde e muito mais que
influenciou.
O David combinava uma crença iluminista na ciência e no progresso com uma crítica feroz à
medicalização, ao controle social e às injustiças decorrentes do modelo capitalista de
desenvolvimento. Ele era assim, um ser contraditório, em permanente interrogar-se, um barato
conviver com ele. Com suas certezas que ele mesmo desmontava na semana seguinte, para
substituí-Ias ,por outras tão sólidas quanto as primeiras e que não obstante se desmanchariam
diante da complexidade da vida que o David nunca recusou tragar inteira.
Meu diagnóstico foi que o David morreu de tanto viver, lutou sempre, ganhou muitas batalhas e
perdeu outras, infelizmente, ou felizmente, sei lá, pagou o preço o de viver assim com tanta
paixão.
Viva o David !
Honra e glória ao David e a todos que misturam suas vidas com a luta pela democracia, justiça e
felicidade!
Gastão Wagner de Sousa Campos
Médico e Professor da UNICAMP